18 de janeiro de 2008
O país inclinado para sul
Por Vital Moreira
A decisão de deslocalizar o novo aeroporto de Lisboa para sul do Tejo, no seguimento do estudo comparativo do LNEC, coloca três problemas, que não devem ser escamoteados com ligeireza. O primeiro é o papel dos estudos "técnicos" na decisão política e na responsabilidade dos decisores políticos; o segundo é o impacto do novo aeroporto na ocupação urbanística do território e na hipertrofia da área metropolitana de Lisboa e sul do Tejo; a terceira é a crescente descentração do país, do Norte do Tejo, onde reside a maior parte da população, para sul.
Quanto ao primeiro ponto, é agora evidente que o Governo fez tudo para reduzir a opção pela nova localização a uma questão técnica, para se limitar depois a carimbar a solução indicada pelo estudo comparativo do LNEC - o que fez com inusitada celeridade -, sem deixar sequer conhecer os seus fundamentos. Sucede que, como agora se sabe, o Governo instou esta instituição a ser "conclusiva", sem se limitar, como era o propósito inicial, a comparar os sete factores seleccionados, deixando para o Governo a ponderação da importância relativa de cada um deles.
Correspondendo indevidamente a esse interesse político, o LNEC, tendo dado vantagem à localização a sul do Tejo em quatro dos sete factores considerados, declarou a correspondente "vitória aos pontos", numa avaliação global que deveria ter sido deixada para a decisão política, depois da devida ponderação do peso relativo de cada um dos factores. Essa inesperada, e despropositada, conclusão global do estudo (fazendo equivaler a importância de todos os factores) permitiu ao Governo limitar-se a endossar politicamente o veredicto "técnico". Mesmo que a decisão devesse ser a mesma, ela deveria ser uma decisão governamental, politicamente fundamentada, e não um expedito carimbo numa opinião pretensamente "técnica", que convenientemente já trazia uma conclusão (intrinsecamente
política).
A questão é tanto mais importante quanto é certo que a conclusão é tudo menos incontroversa. Dos sete factores considerados, o único em que a vantagem da nova localização é indiscutível é a maior facilidade e capacidade operacional do aeroporto na nova localização (sendo, aliás, discutível se ela não é redundante para as necessidades previsíveis...). Quanto aos demais factores, uns são favoráveis à Ota, a começar pelo factor ambiental e pela maior proximidade e acessibilidade da grande maioria dos utentes do aeroporto, ou são pelo menos pouco convincentes, como sucede desde logo com o factor dos custos, que foi desde o início um dos grandes cavalos-de-batalha contra a Ota. Embora tendo dado uma vantagem marginal à nova localização nesse aspecto, a verdade é que se tivesse sido incluído, como era devido, o custo adicional da nova travessia rodoviária sobre o Tejo, tornada necessária pela nova localização do aeroporto, então a conclusão seria muito provavelmente a inversa.
Seja como for, uma decisão desta importância estratégica para todo o país (e não somente para Lisboa), que afecta decisivamente a política de ocupação do território e o equilíbrio territorial do país, não deveria ter sido encarada como se fosse uma questão técnica. Os estudos técnicos podem vetar ou validar soluções políticas. Não podem substituí-las. Aos técnicos o que pertence ao foro técnico, aos políticos o que pertence ao foro da política. Esta decisão merece ficar nos nossos anais democráticos como um caso exemplar de desresponsabilização política e de instrumentalização das opções técnicas.
A nova localização do aeroporto envolve uma evidente opção quanto à ocupação do território que não pode ser desvalorizada. Enquanto a Ota tinha a ver com um território envolvente já muito afectado pela ocupação humana, e ambientalmente desqualificado, situado na confluência da área metropolitana de Lisboa e do Oeste, territórios densamente ocupados, a nova localização insere-se num território até agora praticamente virgem em termos ambientais, estendendo a área metropolitana de Lisboa e sul do Tejo pela charneca adentro, até aos limites do Alentejo (de facto, a freguesia de Canha, onde ficará o novo aeroporto, confina com o concelho de Vendas Novas). Como alertou justamente João Cravinho no seu consistente e preocupante requisitório contra a nova solução, por mais medidas de limitação que se tomem, o novo aeroporto, até porque centrado no conceito de "cidade aeroportuária", trará inexoravelmente um alastramento exponencial da ocupação urbanística para o interior numa zona de especial riqueza ambiental.
Ainda no capítulo urbanístico e ambiental não é preciso calcular com precisão o acréscimo dos milhares de quilómetros de deslocações rodoviárias por ano que a nova localização periférica do aeroporto implica - cálculo que o LNEC estranhamente se absteve de fazer -, para se ter uma ideia do impacto ambiental directo da solução agora escolhida. Acresce que a construção da(s) nova(s) travessia(s) rodoviária(s) do Tejo, tornada(s) necessária(s) para aceder à infra-estrutura, vai também implicar um acrescido afluxo reverso de automóveis da Margem Sul para Lisboa, congestionando ainda mais a capital quanto a esse aspecto.
Por último, a localização ao aeroporto a sul do Tejo acentua dramaticamente a crescente descentramento do país para sul, que a opção pela rede do TGV já prenunciava. Em vez de ficar situado perto do centro de gravidade populacional nacional, como era o caso da Ota, na fronteira entre a Grande Lisboa, o Oeste e o centro, a nova localização fica decididamente desviada para a periferia sudeste da região de Lisboa e Vale do Tejo. A população está a norte do Tejo; um equipamento nacional estratégico para o equilíbrio do país e todo o investimento que ele arrasta fica a sul. Com muito menos população, o país a sul do Tejo ficará em breve com três aeroportos (Lisboa, Beja e Faro), enquanto a toda a região central de entre Douro e Tejo não terá nenhum. Não se poderia imaginar maior assimetria
territorial.
Basta comparar a solução de 1999 no que respeita ao aeroporto e ao TGV para revelar o que mudou em poucos anos. Então o aeroporto ficava a norte de Lisboa e o TGV adoptava a figura de um "T deitado", articulando a linha Porto-Lisboa com um entroncamento também a norte com a linha para Madrid, via Beira Baixa e Cáceres. Entretanto, a solução do TGV passou para uma alegada rede em "L", com ligação a Madrid via sul do Tejo e Badajoz, o que na verdade significa um traçado em "V"; ficando Madrid uma latitude a norte de Coimbra, é fácil ver que para viajar por TGV do Porto para a capital de Espanha via Lisboa é o mesmo que viajar para Lisboa via... Vila Real. Soma-se agora a deslocação do novo aeroporto internacional para o Sul, mesmo se a esmagadora maioria dos seus utentes directos residem a norte do Tejo, tornando o acesso ao aeroporto mais distante, mais demorado e mais caro (custos adicionais cuja contabilidade o LNEC também se esqueceu de fazer...).
Decididamente, o país inclina-se para sul. Para quem se não tinha dado conta, é tempo de nos habituarmos...
(Público, 3ª feira, 15-01-2008)
A decisão de deslocalizar o novo aeroporto de Lisboa para sul do Tejo, no seguimento do estudo comparativo do LNEC, coloca três problemas, que não devem ser escamoteados com ligeireza. O primeiro é o papel dos estudos "técnicos" na decisão política e na responsabilidade dos decisores políticos; o segundo é o impacto do novo aeroporto na ocupação urbanística do território e na hipertrofia da área metropolitana de Lisboa e sul do Tejo; a terceira é a crescente descentração do país, do Norte do Tejo, onde reside a maior parte da população, para sul.
Quanto ao primeiro ponto, é agora evidente que o Governo fez tudo para reduzir a opção pela nova localização a uma questão técnica, para se limitar depois a carimbar a solução indicada pelo estudo comparativo do LNEC - o que fez com inusitada celeridade -, sem deixar sequer conhecer os seus fundamentos. Sucede que, como agora se sabe, o Governo instou esta instituição a ser "conclusiva", sem se limitar, como era o propósito inicial, a comparar os sete factores seleccionados, deixando para o Governo a ponderação da importância relativa de cada um deles.
Correspondendo indevidamente a esse interesse político, o LNEC, tendo dado vantagem à localização a sul do Tejo em quatro dos sete factores considerados, declarou a correspondente "vitória aos pontos", numa avaliação global que deveria ter sido deixada para a decisão política, depois da devida ponderação do peso relativo de cada um dos factores. Essa inesperada, e despropositada, conclusão global do estudo (fazendo equivaler a importância de todos os factores) permitiu ao Governo limitar-se a endossar politicamente o veredicto "técnico". Mesmo que a decisão devesse ser a mesma, ela deveria ser uma decisão governamental, politicamente fundamentada, e não um expedito carimbo numa opinião pretensamente "técnica", que convenientemente já trazia uma conclusão (intrinsecamente
política).
A questão é tanto mais importante quanto é certo que a conclusão é tudo menos incontroversa. Dos sete factores considerados, o único em que a vantagem da nova localização é indiscutível é a maior facilidade e capacidade operacional do aeroporto na nova localização (sendo, aliás, discutível se ela não é redundante para as necessidades previsíveis...). Quanto aos demais factores, uns são favoráveis à Ota, a começar pelo factor ambiental e pela maior proximidade e acessibilidade da grande maioria dos utentes do aeroporto, ou são pelo menos pouco convincentes, como sucede desde logo com o factor dos custos, que foi desde o início um dos grandes cavalos-de-batalha contra a Ota. Embora tendo dado uma vantagem marginal à nova localização nesse aspecto, a verdade é que se tivesse sido incluído, como era devido, o custo adicional da nova travessia rodoviária sobre o Tejo, tornada necessária pela nova localização do aeroporto, então a conclusão seria muito provavelmente a inversa.
Seja como for, uma decisão desta importância estratégica para todo o país (e não somente para Lisboa), que afecta decisivamente a política de ocupação do território e o equilíbrio territorial do país, não deveria ter sido encarada como se fosse uma questão técnica. Os estudos técnicos podem vetar ou validar soluções políticas. Não podem substituí-las. Aos técnicos o que pertence ao foro técnico, aos políticos o que pertence ao foro da política. Esta decisão merece ficar nos nossos anais democráticos como um caso exemplar de desresponsabilização política e de instrumentalização das opções técnicas.
A nova localização do aeroporto envolve uma evidente opção quanto à ocupação do território que não pode ser desvalorizada. Enquanto a Ota tinha a ver com um território envolvente já muito afectado pela ocupação humana, e ambientalmente desqualificado, situado na confluência da área metropolitana de Lisboa e do Oeste, territórios densamente ocupados, a nova localização insere-se num território até agora praticamente virgem em termos ambientais, estendendo a área metropolitana de Lisboa e sul do Tejo pela charneca adentro, até aos limites do Alentejo (de facto, a freguesia de Canha, onde ficará o novo aeroporto, confina com o concelho de Vendas Novas). Como alertou justamente João Cravinho no seu consistente e preocupante requisitório contra a nova solução, por mais medidas de limitação que se tomem, o novo aeroporto, até porque centrado no conceito de "cidade aeroportuária", trará inexoravelmente um alastramento exponencial da ocupação urbanística para o interior numa zona de especial riqueza ambiental.
Ainda no capítulo urbanístico e ambiental não é preciso calcular com precisão o acréscimo dos milhares de quilómetros de deslocações rodoviárias por ano que a nova localização periférica do aeroporto implica - cálculo que o LNEC estranhamente se absteve de fazer -, para se ter uma ideia do impacto ambiental directo da solução agora escolhida. Acresce que a construção da(s) nova(s) travessia(s) rodoviária(s) do Tejo, tornada(s) necessária(s) para aceder à infra-estrutura, vai também implicar um acrescido afluxo reverso de automóveis da Margem Sul para Lisboa, congestionando ainda mais a capital quanto a esse aspecto.
Por último, a localização ao aeroporto a sul do Tejo acentua dramaticamente a crescente descentramento do país para sul, que a opção pela rede do TGV já prenunciava. Em vez de ficar situado perto do centro de gravidade populacional nacional, como era o caso da Ota, na fronteira entre a Grande Lisboa, o Oeste e o centro, a nova localização fica decididamente desviada para a periferia sudeste da região de Lisboa e Vale do Tejo. A população está a norte do Tejo; um equipamento nacional estratégico para o equilíbrio do país e todo o investimento que ele arrasta fica a sul. Com muito menos população, o país a sul do Tejo ficará em breve com três aeroportos (Lisboa, Beja e Faro), enquanto a toda a região central de entre Douro e Tejo não terá nenhum. Não se poderia imaginar maior assimetria
territorial.
Basta comparar a solução de 1999 no que respeita ao aeroporto e ao TGV para revelar o que mudou em poucos anos. Então o aeroporto ficava a norte de Lisboa e o TGV adoptava a figura de um "T deitado", articulando a linha Porto-Lisboa com um entroncamento também a norte com a linha para Madrid, via Beira Baixa e Cáceres. Entretanto, a solução do TGV passou para uma alegada rede em "L", com ligação a Madrid via sul do Tejo e Badajoz, o que na verdade significa um traçado em "V"; ficando Madrid uma latitude a norte de Coimbra, é fácil ver que para viajar por TGV do Porto para a capital de Espanha via Lisboa é o mesmo que viajar para Lisboa via... Vila Real. Soma-se agora a deslocação do novo aeroporto internacional para o Sul, mesmo se a esmagadora maioria dos seus utentes directos residem a norte do Tejo, tornando o acesso ao aeroporto mais distante, mais demorado e mais caro (custos adicionais cuja contabilidade o LNEC também se esqueceu de fazer...).
Decididamente, o país inclina-se para sul. Para quem se não tinha dado conta, é tempo de nos habituarmos...
(Público, 3ª feira, 15-01-2008)