24 de janeiro de 2008
Salvação do SNS
Por Vital Moreira
A meu ver, por mais politicamente aliciante que seja, não tem fundamento a tese de que as políticas de saúde em curso estão a "destruir o SNS". Pelo contrário, penso que só a sua reforma pode salvá-lo da destruição, pela insustentabilidade financeira e pela incapacidade para responder às crescentes necessidades em cuidados de saúde.
Os sistemas de saúde como o SNS, baseados na prestação directa de cuidados de saúde pelo Estado financiados por via de impostos, enfrentam dois riscos maiores. Primeiro, o risco da ineficiência da gestão pública tradicional; segundo, o risco da politização imediata de todas as deficiências e de todas as reformas do sistema. Ambos esses riscos se agravam quando, como sucede universalmente desde os anos 80, os sistemas de saúde se tornam cada vez mais exigentes em termos financeiros (por efeito da maior procura e sofisticação dos cuidados de saúde), ao passo que as disponibilidades financeiras do Estado deixam de acompanhar essas necessidades (por causa de taxas de crescimento económico mais reduzidas e da pressão política e social para a diminuição da carga fiscal).
Por toda a parte as respostas aos problemas referidos passam por duas vias.
A primeira passa pela mudança da gestão dos serviços públicos, no sentido de mais autonomia e mais responsabilidade dos gestores, profissionalização da gestão, financiamento pelo volume e qualidade dos cuidados prestados, avaliação de desempenho, contratualização das prestações e do financiamento, adopção de mecanismos de direito privado, incluindo o contrato de trabalho nas relações de emprego (em vez da função pública), etc.
É nesse movimento da "nova gestão pública" que se insere nomeadamente a gestão empresarial dos hospitais, como sucedeu em Portugal, bem como a "externalização" dos meios complementares de diagnóstico e de tratamento, parcerias público-privadas no financiamento, construção e gestão de equipamentos, etc. Em qualquer caso, trata-se de alcançar dois objectivos essenciais: em primeiro lugar, o aumento da eficiência, de modo a fazer mais com os mesmos recursos materiais, humanos e financeiros, eliminando desperdícios e utilizando plenamente os meios disponíveis; em segundo lugar, um certo distanciamento entre a gestão dos serviços de saúde e a gestão política, na medida em que aquela se torna mais autónoma, mais profissional e mais vinculada a objectos de desempenho "empresarial".
A outra via de reforma dos sistemas de saúde consiste na racionalização dos meios disponíveis, que passa pela concentração e diferenciação de estabelecimentos e pelo reordenamento territorial das redes de cuidados de saúde, de modo a cobrir todo o território e toda a população, sem vazios mas também sem redundâncias. É nesta vertente que se enquadra entre nós o reordenamento da rede de maternidades e blocos de partos (já realizado) e dos serviços de urgência (em curso). Visa-se não somente alcançar uma cobertura mais racional do território nacional, colmatando lacunas e eliminando a oferta supérflua, mas também de melhorar a qualidade dos cuidados de saúde prestados, substituindo serviços deficientes e sem pessoal qualificado suficiente por serviços mais modernos, mais bem equipados e com mais pessoal qualificado, mesmo se a maior distância.
Mesmo quando o saldo global entre ganhos e perdas é manifestamente positivo, o reordenamento territorial de serviços públicos enfrenta sempre a contestação dos que se vêem privados de serviços a que se julgam com direito, bem como a exploração mais ou menos demagógica das forças políticas interessadas na manutenção do statu quo (mesmo quando o seu interesse está justamente em deixar tudo como está, para depois invocar a insustentabilidade do sistema a fim de justificar a sua extinção). A contestação é em geral agravada pela conjugação da defesa de interesses profissionais (em especial a perda da generosa remuneração do horário extraordinário...) e das susceptibilidades locais à perda de qualquer equipamento público.
Mas é evidente que todos os serviços públicos devem ser justificados pelo serviço às populações e não somente porque "já lá estão" e há quem tenha interesse na sua permanência. Como mostrou o caso do encerramento das escolas do ensino básico e das maternidades - ambos os casos também muito contestados -, a diminuição da oferta não se traduziu em nenhum défice ou degradação do serviço público. Pelo contrário, trouxe um melhor serviço público. No caso das maternidades, por exemplo, há menos cesarianas e, contrariamente ao que corre, menos nascimentos em ambulâncias.
De resto, não faz sentido manter uma rede de serviços de urgência (ou de pseudo-urgência) mal equipados e mal dotados de pessoal qualificado, criados há muito tempo sem qualquer racionalidade territorial, quando agora os requisitos de qualificação de tais serviços não cessam de crescer e os tempos de deslocação se tornaram muito menores, mercê da nova rede rodoviária agora existente. Parece evidente que, tal como sucedeu nas escolas e nas maternidades, mais vale ter serviços mais qualificados a alguma distância, do que ter maus serviços ao pé de casa, que muitas vezes se limitam a ser locais de passagem (e de perda de tempo) para os serviços de urgência mais qualificados. Ponto é que seja assegurado o transporte dos doentes, incluindo ambulâncias medicalizadas.
Há três condições essenciais para o êxito de reformas politicamente tão delicadas como estas. Primeiro, assentarem numa forte convicção política; segundo, serem previamente validadas por estudos técnicos credíveis; segundo, assegurarem inequívocos ganhos em saúde (validação pelos resultados). Preenchidas as três condições, é muito mais fácil enfrentar os interesses profissionais ou paroquiais e os atavismos políticos e ideológicos. De estranhar seria que reformas destas fossem consensuais.
Declaração de interesses - O autor é presidente do Conselho Consultivo do Centro Hospitalar de Coimbra (CHC), EPE.
(Público, 22 de Janeiro de 2008)
A meu ver, por mais politicamente aliciante que seja, não tem fundamento a tese de que as políticas de saúde em curso estão a "destruir o SNS". Pelo contrário, penso que só a sua reforma pode salvá-lo da destruição, pela insustentabilidade financeira e pela incapacidade para responder às crescentes necessidades em cuidados de saúde.
Os sistemas de saúde como o SNS, baseados na prestação directa de cuidados de saúde pelo Estado financiados por via de impostos, enfrentam dois riscos maiores. Primeiro, o risco da ineficiência da gestão pública tradicional; segundo, o risco da politização imediata de todas as deficiências e de todas as reformas do sistema. Ambos esses riscos se agravam quando, como sucede universalmente desde os anos 80, os sistemas de saúde se tornam cada vez mais exigentes em termos financeiros (por efeito da maior procura e sofisticação dos cuidados de saúde), ao passo que as disponibilidades financeiras do Estado deixam de acompanhar essas necessidades (por causa de taxas de crescimento económico mais reduzidas e da pressão política e social para a diminuição da carga fiscal).
Por toda a parte as respostas aos problemas referidos passam por duas vias.
A primeira passa pela mudança da gestão dos serviços públicos, no sentido de mais autonomia e mais responsabilidade dos gestores, profissionalização da gestão, financiamento pelo volume e qualidade dos cuidados prestados, avaliação de desempenho, contratualização das prestações e do financiamento, adopção de mecanismos de direito privado, incluindo o contrato de trabalho nas relações de emprego (em vez da função pública), etc.
É nesse movimento da "nova gestão pública" que se insere nomeadamente a gestão empresarial dos hospitais, como sucedeu em Portugal, bem como a "externalização" dos meios complementares de diagnóstico e de tratamento, parcerias público-privadas no financiamento, construção e gestão de equipamentos, etc. Em qualquer caso, trata-se de alcançar dois objectivos essenciais: em primeiro lugar, o aumento da eficiência, de modo a fazer mais com os mesmos recursos materiais, humanos e financeiros, eliminando desperdícios e utilizando plenamente os meios disponíveis; em segundo lugar, um certo distanciamento entre a gestão dos serviços de saúde e a gestão política, na medida em que aquela se torna mais autónoma, mais profissional e mais vinculada a objectos de desempenho "empresarial".
A outra via de reforma dos sistemas de saúde consiste na racionalização dos meios disponíveis, que passa pela concentração e diferenciação de estabelecimentos e pelo reordenamento territorial das redes de cuidados de saúde, de modo a cobrir todo o território e toda a população, sem vazios mas também sem redundâncias. É nesta vertente que se enquadra entre nós o reordenamento da rede de maternidades e blocos de partos (já realizado) e dos serviços de urgência (em curso). Visa-se não somente alcançar uma cobertura mais racional do território nacional, colmatando lacunas e eliminando a oferta supérflua, mas também de melhorar a qualidade dos cuidados de saúde prestados, substituindo serviços deficientes e sem pessoal qualificado suficiente por serviços mais modernos, mais bem equipados e com mais pessoal qualificado, mesmo se a maior distância.
Mesmo quando o saldo global entre ganhos e perdas é manifestamente positivo, o reordenamento territorial de serviços públicos enfrenta sempre a contestação dos que se vêem privados de serviços a que se julgam com direito, bem como a exploração mais ou menos demagógica das forças políticas interessadas na manutenção do statu quo (mesmo quando o seu interesse está justamente em deixar tudo como está, para depois invocar a insustentabilidade do sistema a fim de justificar a sua extinção). A contestação é em geral agravada pela conjugação da defesa de interesses profissionais (em especial a perda da generosa remuneração do horário extraordinário...) e das susceptibilidades locais à perda de qualquer equipamento público.
Mas é evidente que todos os serviços públicos devem ser justificados pelo serviço às populações e não somente porque "já lá estão" e há quem tenha interesse na sua permanência. Como mostrou o caso do encerramento das escolas do ensino básico e das maternidades - ambos os casos também muito contestados -, a diminuição da oferta não se traduziu em nenhum défice ou degradação do serviço público. Pelo contrário, trouxe um melhor serviço público. No caso das maternidades, por exemplo, há menos cesarianas e, contrariamente ao que corre, menos nascimentos em ambulâncias.
De resto, não faz sentido manter uma rede de serviços de urgência (ou de pseudo-urgência) mal equipados e mal dotados de pessoal qualificado, criados há muito tempo sem qualquer racionalidade territorial, quando agora os requisitos de qualificação de tais serviços não cessam de crescer e os tempos de deslocação se tornaram muito menores, mercê da nova rede rodoviária agora existente. Parece evidente que, tal como sucedeu nas escolas e nas maternidades, mais vale ter serviços mais qualificados a alguma distância, do que ter maus serviços ao pé de casa, que muitas vezes se limitam a ser locais de passagem (e de perda de tempo) para os serviços de urgência mais qualificados. Ponto é que seja assegurado o transporte dos doentes, incluindo ambulâncias medicalizadas.
Há três condições essenciais para o êxito de reformas politicamente tão delicadas como estas. Primeiro, assentarem numa forte convicção política; segundo, serem previamente validadas por estudos técnicos credíveis; segundo, assegurarem inequívocos ganhos em saúde (validação pelos resultados). Preenchidas as três condições, é muito mais fácil enfrentar os interesses profissionais ou paroquiais e os atavismos políticos e ideológicos. De estranhar seria que reformas destas fossem consensuais.
Declaração de interesses - O autor é presidente do Conselho Consultivo do Centro Hospitalar de Coimbra (CHC), EPE.
(Público, 22 de Janeiro de 2008)