15 de maio de 2008
"Adeus socialismo"?
Por Vital Moreira
No seu último artigo no Diário Económico, intitulado "Adeus socialismo", o filósofo social João Cardoso Rosas defende que as ideias socialistas caducaram no mundo de hoje, mesmo para as correntes políticas que se reclamem delas, dada a conversão universal ao capitalismo de mercado. Sem ser inédita nem destituída de aparente sentido, a tese não é, porém, convincente.
Em primeiro lugar, o "socialismo democrático" não se afundou juntamente com o desabamento quase universal do comunismo há duas décadas. Desde a dissidência leninista a seguir à revolução russa de 1917, que deu origem à cisão do movimento socialista e à criação dos partidos comunistas em numerosos países, foi sempre óbvia a diferença entre o "socialismo socialista" e o "socialismo comunista", quer quanto ao modo de transformação social, quer quanto ao modelo da sociedade socialista a erigir. Como é bom de ver, a queda do Muro de Berlim significa metaforicamente "adeus Lenine" e o fim do comunismo, mas não afecta essencialmente o socialismo democrático, que aliás viu vindicada a sua crítica histórica ao leninismo e ao socialismo soviético.
Em segundo lugar, foi muito antes do fim do comunismo que os partidos socialistas e social-democratas - a começar com o SPD alemão, no célebre congresso de Bad Godesberg de 1959 - abandonaram a ideia da "economia socialista", enquanto sistema económico alternativo ao capitalismo, baseado na "socialização" generalizada dos meios de produção. Aliás, isso mesmo resulta da adesão de todos eles à UE, desde o início baseada numa "economia de mercado assente na livre concorrência" (como estabelece o Tratado de Roma, de 1957). O próprio Partido Socialista francês, um dos mais conservadores nesse aspecto, acaba de propor uma nova declaração de princípios onde não existe o mais leve traço de socialismo económico, substituído pela adesão a um projecto de "economia ecologista e social de mercado". Por isso, hoje ninguém espera, ou teme, que um governo socialista desate a fazer nacionalizações a eito. Portanto, não há nenhum engano ou equívoco quanto a esse ponto.
Por último, mas não menos importante, apesar do abandono da "economia socialista" pelas correntes e partidos socialistas na actualidade, não é ilegítimo que conservem a antiga denominação, dado que continuam a lutar pelas suas principais bandeiras na esfera social, designadamente direitos sociais, inclusão social, coesão social, Estado social, enfim, justiça social. Essa "marca de água" das ideias e dos partidos socialistas permanece. Liberal na política e nos costumes, mas agora também na economia, o socialismo contemporâneo continua porém a ser caracterizado pelos seus objectivos de maior igualdade e justiça social, que se reflecte em especial na política social, na política fiscal, na política educativa, nas "políticas afirmativas" de igualdade, etc.
Em suma, os partidos socialistas há muito abdicaram do "socialismo económico", mas os ideais socialistas nunca se limitaram a isso. Por isso, dizer "adeus ao socialismo" seria, por um lado, redundante e, por outro lado, injustificado.
É evidente que não existe equivalência absoluta entre esquerda e socialismo. A noção de esquerda é um conceito relativo, tendo como contraposição a direita, num continuum posicional gradativo que vai desde a extrema-direita à extrema-esquerda. Já a noção de socialismo tem a ver com objectivos identificados de transformação e de justiça social, pelo que tem um sentido mais preciso e menos relativo, embora se possa ser mais ou menos socialista. Pode, portanto, haver uma esquerda não socialista, que, defendendo embora tradicionais valores de esquerda - como a igualdade, a democracia participativa, a laicidade do Estado, a escola pública, a liberdade dos costumes, etc. -, não compartilhe, porém, dos objectivos sociais típicos do socialismo.
Todavia, embora a hipótese de uma esquerda não socialista não seja irrealista, com mostra o caso do Partido Democrata nos Estados Unidos, partido de esquerda liberal sem grandes traços socialistas - ressalvadas as políticas sociais de presidentes democratas como Roosevelt, Johnson, Kennedy e Clinton -, já na Europa, por razões ligadas às suas tradições políticas e culturais, bem como às vicissitudes da sua história económica e social, não se afigura sustentável uma esquerda politicamente relevante fora do quadro socialista. O recente insucesso do novel Partido Democrata italiano, aliás herdeiro do antigo Partido Comunista italiano, que tentou emular o paradigma norte-americano (até no nome), revela os limites da reconstrução política à esquerda com abandono da herança e dos referenciais socialistas.
Sem dúvida que os partidos socialistas e social-democratas em geral, sobretudo os de vocação governamental, estão a passar por um processo de modernização que inclui a adopção de muitos valores alheios à tradição socialista, desde a conversão à economia de mercado e à concorrência até à liberalização das utilities, desde a disciplina monetária e financeira até à "nova gestão pública", desde o valor da segurança pública até à competitividade empresarial. Mas, para além dos bons fundamentos desta modernização - que, em geral, não é de esquerda nem de direita, mas apenas exigência de bom governo -, nada disso exige o abandono dos traços propriamente socialistas da esquerda. Pelo contrário, sem bom desempenho económico e sem eficiência na gestão pública não pode haver margem para políticas sociais de esquerda.
E, acima de tudo, a realidade política mostra que, para além de injustificado, o abandono das ideias e propostas socialistas teria por consequência deixar à extrema-esquerda o monopólio de um património de representações e de referências que pertencem à memória e à identidade da esquerda socialista, e cujo valor ainda não se esvaiu.
(Público, terça-feira, 13 de Maio de 2008)
No seu último artigo no Diário Económico, intitulado "Adeus socialismo", o filósofo social João Cardoso Rosas defende que as ideias socialistas caducaram no mundo de hoje, mesmo para as correntes políticas que se reclamem delas, dada a conversão universal ao capitalismo de mercado. Sem ser inédita nem destituída de aparente sentido, a tese não é, porém, convincente.
Em primeiro lugar, o "socialismo democrático" não se afundou juntamente com o desabamento quase universal do comunismo há duas décadas. Desde a dissidência leninista a seguir à revolução russa de 1917, que deu origem à cisão do movimento socialista e à criação dos partidos comunistas em numerosos países, foi sempre óbvia a diferença entre o "socialismo socialista" e o "socialismo comunista", quer quanto ao modo de transformação social, quer quanto ao modelo da sociedade socialista a erigir. Como é bom de ver, a queda do Muro de Berlim significa metaforicamente "adeus Lenine" e o fim do comunismo, mas não afecta essencialmente o socialismo democrático, que aliás viu vindicada a sua crítica histórica ao leninismo e ao socialismo soviético.
Em segundo lugar, foi muito antes do fim do comunismo que os partidos socialistas e social-democratas - a começar com o SPD alemão, no célebre congresso de Bad Godesberg de 1959 - abandonaram a ideia da "economia socialista", enquanto sistema económico alternativo ao capitalismo, baseado na "socialização" generalizada dos meios de produção. Aliás, isso mesmo resulta da adesão de todos eles à UE, desde o início baseada numa "economia de mercado assente na livre concorrência" (como estabelece o Tratado de Roma, de 1957). O próprio Partido Socialista francês, um dos mais conservadores nesse aspecto, acaba de propor uma nova declaração de princípios onde não existe o mais leve traço de socialismo económico, substituído pela adesão a um projecto de "economia ecologista e social de mercado". Por isso, hoje ninguém espera, ou teme, que um governo socialista desate a fazer nacionalizações a eito. Portanto, não há nenhum engano ou equívoco quanto a esse ponto.
Por último, mas não menos importante, apesar do abandono da "economia socialista" pelas correntes e partidos socialistas na actualidade, não é ilegítimo que conservem a antiga denominação, dado que continuam a lutar pelas suas principais bandeiras na esfera social, designadamente direitos sociais, inclusão social, coesão social, Estado social, enfim, justiça social. Essa "marca de água" das ideias e dos partidos socialistas permanece. Liberal na política e nos costumes, mas agora também na economia, o socialismo contemporâneo continua porém a ser caracterizado pelos seus objectivos de maior igualdade e justiça social, que se reflecte em especial na política social, na política fiscal, na política educativa, nas "políticas afirmativas" de igualdade, etc.
Em suma, os partidos socialistas há muito abdicaram do "socialismo económico", mas os ideais socialistas nunca se limitaram a isso. Por isso, dizer "adeus ao socialismo" seria, por um lado, redundante e, por outro lado, injustificado.
É evidente que não existe equivalência absoluta entre esquerda e socialismo. A noção de esquerda é um conceito relativo, tendo como contraposição a direita, num continuum posicional gradativo que vai desde a extrema-direita à extrema-esquerda. Já a noção de socialismo tem a ver com objectivos identificados de transformação e de justiça social, pelo que tem um sentido mais preciso e menos relativo, embora se possa ser mais ou menos socialista. Pode, portanto, haver uma esquerda não socialista, que, defendendo embora tradicionais valores de esquerda - como a igualdade, a democracia participativa, a laicidade do Estado, a escola pública, a liberdade dos costumes, etc. -, não compartilhe, porém, dos objectivos sociais típicos do socialismo.
Todavia, embora a hipótese de uma esquerda não socialista não seja irrealista, com mostra o caso do Partido Democrata nos Estados Unidos, partido de esquerda liberal sem grandes traços socialistas - ressalvadas as políticas sociais de presidentes democratas como Roosevelt, Johnson, Kennedy e Clinton -, já na Europa, por razões ligadas às suas tradições políticas e culturais, bem como às vicissitudes da sua história económica e social, não se afigura sustentável uma esquerda politicamente relevante fora do quadro socialista. O recente insucesso do novel Partido Democrata italiano, aliás herdeiro do antigo Partido Comunista italiano, que tentou emular o paradigma norte-americano (até no nome), revela os limites da reconstrução política à esquerda com abandono da herança e dos referenciais socialistas.
Sem dúvida que os partidos socialistas e social-democratas em geral, sobretudo os de vocação governamental, estão a passar por um processo de modernização que inclui a adopção de muitos valores alheios à tradição socialista, desde a conversão à economia de mercado e à concorrência até à liberalização das utilities, desde a disciplina monetária e financeira até à "nova gestão pública", desde o valor da segurança pública até à competitividade empresarial. Mas, para além dos bons fundamentos desta modernização - que, em geral, não é de esquerda nem de direita, mas apenas exigência de bom governo -, nada disso exige o abandono dos traços propriamente socialistas da esquerda. Pelo contrário, sem bom desempenho económico e sem eficiência na gestão pública não pode haver margem para políticas sociais de esquerda.
E, acima de tudo, a realidade política mostra que, para além de injustificado, o abandono das ideias e propostas socialistas teria por consequência deixar à extrema-esquerda o monopólio de um património de representações e de referências que pertencem à memória e à identidade da esquerda socialista, e cujo valor ainda não se esvaiu.
(Público, terça-feira, 13 de Maio de 2008)