22 de maio de 2008
A Birmânia não é o Iraque - e as ONGs não têm tanques
por Ana Gomes
Artigo de resposta ao Dr. Alberto Gonçalves
("Causas Dela", DN, 11 de Maio)
O sociólogo Alberto Gonçalves assinava uma página de Opinião no DN do passado domingo 11 de Maio, dedicando alguma prosa a criticar ("Causas Dela") o que escrevi no meu blog ("Causa Nossa", 7 de Maio) sobre a necessidade de uma entrada urgente, de "roldão e por todas as portas e janelas" na Birmânia das agências da ONU, das ONG humanitárias e dos media internacionais em socorro do povo birmanês vitimado pelo ciclone. O Dr. Gonçalves parece desvalorizar o sofrimento dos birmaneses - à morte e à devastação em larga escala trazidas pelo ciclone, acrescem hoje (passados quinze dias) mais milhares de mortes por falta de socorro. E pouco lhe importa que a causa desses milhares de vítimas adicionais seja a intransigência da ditadura militar que há décadas oprime e desgoverna a Birmânia - uma ditadura que leva a paranóia isolacionista ao ponto de deixar morrer o povo recusando ajuda externa.Ao Dr.Gonçalves importa mais criticar-me por defender uma urgente "invasão" (palavra dele) humanitária para ajudar as vítimas na Birmânia, sem "atrasos e mariquices diplomáticas" (palavras dele) e por defender que uma intervenção na Birmânia teria também por objectivo/efeito "ajudar os birmaneses a escorraçar a junta opressora" (palavras minhas). Ele omite cirurgicamente o verbo "ajudar" para poder atribuir-me o intuito de pôr esses actores internacionais a varrer a Junta; intuito que efectivamente não tenho, defensora que sou, como sempre fui, de que a ajuda externa só deve ser isso mesmo - ajuda - cabendo aos próprios povos tratar do "regime change" e livrar-se dos tiranos (na Birmânia, no Sudão, no Iraque ou no Portugal do 24 de Abril). O que eu não ignoro - e a Junta ditatorial birmanesa também não e por isso recusa a ajuda externa - é que o fim do isolamento do país ditará inexoravelmente o fim do regime. Mas isso parece ser irrelevante para o Dr. Gonçalves.... Ele acusa: "As urgentes recomendações da Dra. Gomes implicam, assaz simplesmente, uma guerra." Vá lá que não implicou ainda e já entraram entretanto, à sorrelfa, pelas portas e janelas das porosas e longas fronteiras birmanesas, centenas de jornalistas internacionais!Mas o que verdadeiramente revela a má fé do Dr. Gonçalves é a analogia desajeitada que ele tenta estabelecer entre a minha defesa de um maior envolvimento da comunidade internacional na Birmânia e a minha oposição à invasão do Iraque. Ao distorcer o que defendo para a Birmânia ele tenta expor uma suposta contradição da minha parte: diz que "é capaz de jurar que a Dra. Ana Gomes se opunha com furioso vigor a aventuras unilaterais do género" e lembra que há cinco anos denunciei "os 'criminosos' que entraram de roldão no Iraque". Como se a invasão armada e ilegal do Iraque fosse justificável por quaisquer propósitos humanitários (e eu denunciei a insuportável hipocrisia dos invasores ao usar o pretexto dos direitos humanos, além do das ADM, eles que durante décadas tinham apoiado o criminoso Saddam na opressão do seu povo e na agressão ao iraniano). Como se eu tivesse advogado uma invasão armada da Birmânia ou defendesse uma qualquer "aventura unilateral" sem base no direito internacional. Para confundir os incautos, o Sr. Gonçalves omite que eu invoco a "responsabilidade de proteger", que decorre directamente das obrigações impostas pela Carta das Nações Unidas a todos os seus membros e que se aplica face aos "crimes contra a humanidade" cometidos pela Junta birmanesa. Não advogo uma invasão armada para a Birmânia, tal como não a advoguei para o Iraque. Advogo, sim, uma urgentíssima vaga pacífica, desarmada, de agentes humanitários e jornalistas, sem esperar autorização da Junta ou do Conselho de Segurança (pois este não tem de autorizar previamente ajuda humanitária que é dever de todos prestar a vítimas de catástrofes). Além do impacto imediato humanitário, é o impacto político que também me importa. Não acredito - como Alberto Gonçalves, baseado não se sabe em quê - que o forçar da presença das agências e ONG internacionais na Birmânia provoque uma guerra - o regime birmanês é na realidade um "tigre de papel". Basta ir lá - como eu fui - e observar o profundo ódio que os birmaneses de diferentes etnias têm aos opressores.É tempo de levar os membros da Junta a enfrentar o Tribunal Criminal Internacional por "crimes contra a humanidade" - além de todos os já cometidos ao longo das últimas décadas, acresce agora a crueldade refinada de deixar morrer o povo por obstrução do socorro externo. Claro que o sociólogo Dr. Gonçalves admite a "tirania" da Junta de Rangum. Só que prefere ignorar os imperativos legais e morais que decorrem directamente da calamidade na Birmânia. Impressiona-o mais que a Junta "talvez não aprecie a generosa ingerência" e sobretudo "talvez não aprecie ser escorraçada". E, à conta disso, nada propõe, preparando-se para assistir à evolução sociológica das vítimas e dos seus carrascos.
Obviamente que nada tenho a ver com as causas do sociólogo Gonçalves. E ainda menos com as consequências....
(publicado no Diário de Notícias de 22 de Maio de 2008)
Artigo de resposta ao Dr. Alberto Gonçalves
("Causas Dela", DN, 11 de Maio)
O sociólogo Alberto Gonçalves assinava uma página de Opinião no DN do passado domingo 11 de Maio, dedicando alguma prosa a criticar ("Causas Dela") o que escrevi no meu blog ("Causa Nossa", 7 de Maio) sobre a necessidade de uma entrada urgente, de "roldão e por todas as portas e janelas" na Birmânia das agências da ONU, das ONG humanitárias e dos media internacionais em socorro do povo birmanês vitimado pelo ciclone. O Dr. Gonçalves parece desvalorizar o sofrimento dos birmaneses - à morte e à devastação em larga escala trazidas pelo ciclone, acrescem hoje (passados quinze dias) mais milhares de mortes por falta de socorro. E pouco lhe importa que a causa desses milhares de vítimas adicionais seja a intransigência da ditadura militar que há décadas oprime e desgoverna a Birmânia - uma ditadura que leva a paranóia isolacionista ao ponto de deixar morrer o povo recusando ajuda externa.Ao Dr.Gonçalves importa mais criticar-me por defender uma urgente "invasão" (palavra dele) humanitária para ajudar as vítimas na Birmânia, sem "atrasos e mariquices diplomáticas" (palavras dele) e por defender que uma intervenção na Birmânia teria também por objectivo/efeito "ajudar os birmaneses a escorraçar a junta opressora" (palavras minhas). Ele omite cirurgicamente o verbo "ajudar" para poder atribuir-me o intuito de pôr esses actores internacionais a varrer a Junta; intuito que efectivamente não tenho, defensora que sou, como sempre fui, de que a ajuda externa só deve ser isso mesmo - ajuda - cabendo aos próprios povos tratar do "regime change" e livrar-se dos tiranos (na Birmânia, no Sudão, no Iraque ou no Portugal do 24 de Abril). O que eu não ignoro - e a Junta ditatorial birmanesa também não e por isso recusa a ajuda externa - é que o fim do isolamento do país ditará inexoravelmente o fim do regime. Mas isso parece ser irrelevante para o Dr. Gonçalves.... Ele acusa: "As urgentes recomendações da Dra. Gomes implicam, assaz simplesmente, uma guerra." Vá lá que não implicou ainda e já entraram entretanto, à sorrelfa, pelas portas e janelas das porosas e longas fronteiras birmanesas, centenas de jornalistas internacionais!Mas o que verdadeiramente revela a má fé do Dr. Gonçalves é a analogia desajeitada que ele tenta estabelecer entre a minha defesa de um maior envolvimento da comunidade internacional na Birmânia e a minha oposição à invasão do Iraque. Ao distorcer o que defendo para a Birmânia ele tenta expor uma suposta contradição da minha parte: diz que "é capaz de jurar que a Dra. Ana Gomes se opunha com furioso vigor a aventuras unilaterais do género" e lembra que há cinco anos denunciei "os 'criminosos' que entraram de roldão no Iraque". Como se a invasão armada e ilegal do Iraque fosse justificável por quaisquer propósitos humanitários (e eu denunciei a insuportável hipocrisia dos invasores ao usar o pretexto dos direitos humanos, além do das ADM, eles que durante décadas tinham apoiado o criminoso Saddam na opressão do seu povo e na agressão ao iraniano). Como se eu tivesse advogado uma invasão armada da Birmânia ou defendesse uma qualquer "aventura unilateral" sem base no direito internacional. Para confundir os incautos, o Sr. Gonçalves omite que eu invoco a "responsabilidade de proteger", que decorre directamente das obrigações impostas pela Carta das Nações Unidas a todos os seus membros e que se aplica face aos "crimes contra a humanidade" cometidos pela Junta birmanesa. Não advogo uma invasão armada para a Birmânia, tal como não a advoguei para o Iraque. Advogo, sim, uma urgentíssima vaga pacífica, desarmada, de agentes humanitários e jornalistas, sem esperar autorização da Junta ou do Conselho de Segurança (pois este não tem de autorizar previamente ajuda humanitária que é dever de todos prestar a vítimas de catástrofes). Além do impacto imediato humanitário, é o impacto político que também me importa. Não acredito - como Alberto Gonçalves, baseado não se sabe em quê - que o forçar da presença das agências e ONG internacionais na Birmânia provoque uma guerra - o regime birmanês é na realidade um "tigre de papel". Basta ir lá - como eu fui - e observar o profundo ódio que os birmaneses de diferentes etnias têm aos opressores.É tempo de levar os membros da Junta a enfrentar o Tribunal Criminal Internacional por "crimes contra a humanidade" - além de todos os já cometidos ao longo das últimas décadas, acresce agora a crueldade refinada de deixar morrer o povo por obstrução do socorro externo. Claro que o sociólogo Dr. Gonçalves admite a "tirania" da Junta de Rangum. Só que prefere ignorar os imperativos legais e morais que decorrem directamente da calamidade na Birmânia. Impressiona-o mais que a Junta "talvez não aprecie a generosa ingerência" e sobretudo "talvez não aprecie ser escorraçada". E, à conta disso, nada propõe, preparando-se para assistir à evolução sociológica das vítimas e dos seus carrascos.
Obviamente que nada tenho a ver com as causas do sociólogo Gonçalves. E ainda menos com as consequências....
(publicado no Diário de Notícias de 22 de Maio de 2008)