15 de maio de 2008
Louvor do rotativismo
Por Vital Moreira
Só pode ser levada à conta de boutade política a surpreendente proposta de J. Miguel Júdice para uma fusão entre o PS e o PSD, ou uma parte deste (junto com a criação de um novo partido de direita com os "restos" do mesmo PSD e do CDS). Primeiro, porque os dois maiores partidos nacionais são bem diferentes quanto à origem, fundamentos doutrinários e propostas políticas. Segundo, porque, caso tal plástica política fosse possível, daí nada de bom viria para o funcionamento do nosso sistema político, antes pelo contrário.
Não é verdade, desde logo, que o PS e o PSD digam as "mesmas coisas" e proponham as "mesmas soluções". Desde que em 1995 o PSD de Fernando Nogueira rejeitou liminarmente a criação do "rendimento mínimo garantido" até às recentes propostas de privatização da segurança social, da saúde, da educação, bem como de política fiscal, torna-se evidente que o PSD se vem transformando num partido progressivamente mais liberal e cada vez mais afastado da sua componente social-democrata originária, aliás sempre equívoca. A sua plena integração internacional no Partido Popular Europeu é bem elucidativa sobre as suas reais coordenadas ideológicas e políticas.
É certo que, entretanto, primeiro com Guterres e agora com Sócrates, também o PS se tornou mais liberal, incluindo uma convicta adesão à economia de mercado, à disciplina financeira, à competitividade económica, à eficiência do Estado e da administração pública, à iniciativa pessoal e à responsabilidade individual. Mas nada disso é incompatível com a manutenção de um genuíno compromisso com os valores tradicionais da social-democracia europeia, incluindo a responsabilidade pública no campo da educação, da saúde e da segurança social, da luta contra a pobreza e a discriminação social, da promoção da igualdade de oportunidades, enfim, de um "Estado social" avançado.
Sem mencionar outras importantes diferenças quanto a valores civilizacionais (por exemplo, a despenalização do aborto, a laicidade do Estado, o regime jurídico da família, o questão da imigração, etc.), é indesmentível que as diferenças dos dois partidos estão longe de se terem esbatido em muitos outros aspectos, sobretudo em matéria de políticas sociais. Se é certo que o PS se deslocou a caminho do centro, não é menos verdade que o PSD foi deslizando para a direita, acantonando o CDS em alguns estreitos nichos políticos. A distância entre ambos não diminuiu.
Acresce que, mesmo no Governo e forçado a políticas de rigor orçamental e de reformas da administração pública e do próprio Estado social, o PS dificilmente poderia consentir numa maior diluição das suas marcas de esquerda, não somente para não deixar mais espaço político ao PCP e ao BE, mas também para preservar a própria identidade e unidade partidária, mesmo se num quadro de saudável pluralismo interno. Por sua vez, por mais que as conveniências eleitorais possam aconselhar ao PSD algum discurso de "centro-esquerda", a verdade é que ele não deixa de ser um partido sociologicamente de direita, que não pode disfarçar voluntaristicamente as suas verdadeiras propostas políticas.
Além de descabida, uma imaginária união dos dois partidos seria altamente prejudicial para o funcionamento da nossa democracia parlamentar. Tirando pequenos períodos de crise política, que obrigaram a soluções governativas anómalas - como a coligação PS-CDS em 1978 e o governo do "bloco central" em 1983 -, o nosso sistema de governo tem assentado na alternância governativa do PS e do PSD, este por vezes coligado com o CDS.
Esse "rotativismo" entre os dois grandes partidos, um à esquerda e outro à direita do centro, tem permitido um funcionamento regular e relativamente bem sucedido do nosso sistema político. Por um lado, trata-se de partidos suficientemente diferentes para funcionarem como alternativa um ao outro; por outro lado, são partidos suficientemente próximos para que as mudanças de governo se façam sem risco de rupturas políticas imprevisíveis, como é próprio das democracias liberais estabilizadas.
Tudo isso seria fundamentalmente alterado, se esta alternância entre os dois partidos de centro-direita e de esquerda moderada fosse substituída por uma hipotética fusão de ambos num grande partido abrangente, "a cavalo" sobre a fronteira entre a esquerda e a direita, tendo à sua esquerda os dois actuais partidos existentes nessa área e à direita um novo partido liberal-conservador, unindo o CDS e a ala direita do actual PSD. Num tal quadro, o mais provável seria a criação de um regime de partido dominante, sem verdadeira alternância política e governativa, quando muito com alianças de governo, em caso de necessidade, ora à esquerda, ora, mais provavelmente, à direita. Não se vê como é que uma situação dessas poderia ser politicamente preferível à que tem prevalecido até agora.
Entre as coisas que entre nós têm funcionado melhor do que se podia temer à partida está manifestamente o sistema partidário e o sistema de governo, face à falta de implantação partidária no início do regime democrático e à adopção de um sistema eleitoral proporcional, normalmente associado à fragmentação parlamentar e à inconstância das soluções governativas, frequentemente de coligação. Para a relativa constância das soluções de governo entre nós muito tem contribuído a existência de dois grandes partidos de vocação governativa, um à esquerda, outro à direita, alternando entre si as vitórias eleitorais e as responsabilidades governativas.
Há neste momento dois factores que podem perturbar o padrão político dominante até agora, sendo um deles o crescimento dos partidos à esquerda do PS e outro o notório enfraquecimento do PSD depois do estrondoso fracasso da sua última experiência governativa. Mas nada permite admitir que o remédio para as incertezas existentes passe pelo desaparecimento do PSD, mediante a partilha dos seus despojos entre o PS e um novo partido de direita.
(Público, terça-feira, 22 de Abril de 2008)
Só pode ser levada à conta de boutade política a surpreendente proposta de J. Miguel Júdice para uma fusão entre o PS e o PSD, ou uma parte deste (junto com a criação de um novo partido de direita com os "restos" do mesmo PSD e do CDS). Primeiro, porque os dois maiores partidos nacionais são bem diferentes quanto à origem, fundamentos doutrinários e propostas políticas. Segundo, porque, caso tal plástica política fosse possível, daí nada de bom viria para o funcionamento do nosso sistema político, antes pelo contrário.
Não é verdade, desde logo, que o PS e o PSD digam as "mesmas coisas" e proponham as "mesmas soluções". Desde que em 1995 o PSD de Fernando Nogueira rejeitou liminarmente a criação do "rendimento mínimo garantido" até às recentes propostas de privatização da segurança social, da saúde, da educação, bem como de política fiscal, torna-se evidente que o PSD se vem transformando num partido progressivamente mais liberal e cada vez mais afastado da sua componente social-democrata originária, aliás sempre equívoca. A sua plena integração internacional no Partido Popular Europeu é bem elucidativa sobre as suas reais coordenadas ideológicas e políticas.
É certo que, entretanto, primeiro com Guterres e agora com Sócrates, também o PS se tornou mais liberal, incluindo uma convicta adesão à economia de mercado, à disciplina financeira, à competitividade económica, à eficiência do Estado e da administração pública, à iniciativa pessoal e à responsabilidade individual. Mas nada disso é incompatível com a manutenção de um genuíno compromisso com os valores tradicionais da social-democracia europeia, incluindo a responsabilidade pública no campo da educação, da saúde e da segurança social, da luta contra a pobreza e a discriminação social, da promoção da igualdade de oportunidades, enfim, de um "Estado social" avançado.
Sem mencionar outras importantes diferenças quanto a valores civilizacionais (por exemplo, a despenalização do aborto, a laicidade do Estado, o regime jurídico da família, o questão da imigração, etc.), é indesmentível que as diferenças dos dois partidos estão longe de se terem esbatido em muitos outros aspectos, sobretudo em matéria de políticas sociais. Se é certo que o PS se deslocou a caminho do centro, não é menos verdade que o PSD foi deslizando para a direita, acantonando o CDS em alguns estreitos nichos políticos. A distância entre ambos não diminuiu.
Acresce que, mesmo no Governo e forçado a políticas de rigor orçamental e de reformas da administração pública e do próprio Estado social, o PS dificilmente poderia consentir numa maior diluição das suas marcas de esquerda, não somente para não deixar mais espaço político ao PCP e ao BE, mas também para preservar a própria identidade e unidade partidária, mesmo se num quadro de saudável pluralismo interno. Por sua vez, por mais que as conveniências eleitorais possam aconselhar ao PSD algum discurso de "centro-esquerda", a verdade é que ele não deixa de ser um partido sociologicamente de direita, que não pode disfarçar voluntaristicamente as suas verdadeiras propostas políticas.
Além de descabida, uma imaginária união dos dois partidos seria altamente prejudicial para o funcionamento da nossa democracia parlamentar. Tirando pequenos períodos de crise política, que obrigaram a soluções governativas anómalas - como a coligação PS-CDS em 1978 e o governo do "bloco central" em 1983 -, o nosso sistema de governo tem assentado na alternância governativa do PS e do PSD, este por vezes coligado com o CDS.
Esse "rotativismo" entre os dois grandes partidos, um à esquerda e outro à direita do centro, tem permitido um funcionamento regular e relativamente bem sucedido do nosso sistema político. Por um lado, trata-se de partidos suficientemente diferentes para funcionarem como alternativa um ao outro; por outro lado, são partidos suficientemente próximos para que as mudanças de governo se façam sem risco de rupturas políticas imprevisíveis, como é próprio das democracias liberais estabilizadas.
Tudo isso seria fundamentalmente alterado, se esta alternância entre os dois partidos de centro-direita e de esquerda moderada fosse substituída por uma hipotética fusão de ambos num grande partido abrangente, "a cavalo" sobre a fronteira entre a esquerda e a direita, tendo à sua esquerda os dois actuais partidos existentes nessa área e à direita um novo partido liberal-conservador, unindo o CDS e a ala direita do actual PSD. Num tal quadro, o mais provável seria a criação de um regime de partido dominante, sem verdadeira alternância política e governativa, quando muito com alianças de governo, em caso de necessidade, ora à esquerda, ora, mais provavelmente, à direita. Não se vê como é que uma situação dessas poderia ser politicamente preferível à que tem prevalecido até agora.
Entre as coisas que entre nós têm funcionado melhor do que se podia temer à partida está manifestamente o sistema partidário e o sistema de governo, face à falta de implantação partidária no início do regime democrático e à adopção de um sistema eleitoral proporcional, normalmente associado à fragmentação parlamentar e à inconstância das soluções governativas, frequentemente de coligação. Para a relativa constância das soluções de governo entre nós muito tem contribuído a existência de dois grandes partidos de vocação governativa, um à esquerda, outro à direita, alternando entre si as vitórias eleitorais e as responsabilidades governativas.
Há neste momento dois factores que podem perturbar o padrão político dominante até agora, sendo um deles o crescimento dos partidos à esquerda do PS e outro o notório enfraquecimento do PSD depois do estrondoso fracasso da sua última experiência governativa. Mas nada permite admitir que o remédio para as incertezas existentes passe pelo desaparecimento do PSD, mediante a partilha dos seus despojos entre o PS e um novo partido de direita.
(Público, terça-feira, 22 de Abril de 2008)