15 de maio de 2008
Renovação da democracia
Por Vital Moreira
Um think tank britânico de esquerda elaborou um ranking dos países da UE quanto à qualidade da "democracia quotidiana" (everyday democracy), uma noção alargada de democracia, que compreende várias dimensões, desde as instituições e procedimentos eleitorais até à democracia nos locais de trabalho. Nessa ordenação, que é liderada sem surpresa pelos países escandinavos, Portugal ocupa um lugar assaz modesto. Importa analisar a pertinência da referida noção extensiva de democracia, bem como a situação da democracia portuguesa.
Desde sempre a esquerda fez da democracia o seu leit motiv político, tendo estado na frente das lutas pelo sufrágio universal, pelo voto feminino, pela redução da idade eleitoral, pelo sistema proporcional, pela electividade das "câmaras altas", pela igualdade do voto, etc. Mas também sempre defendeu que a democracia não se pode limitar à "democracia eleitoral", devendo ser conjugada com a democracia participativa, nem pode ficar reduzida à esfera política, devendo ser complementada pela democracia económica, social e cultural. Não é por caso que os partidos socialistas do Norte da Europa ainda hoje se denominam sociais-democratas, ou seja, partidários da "democracia social".
Não admira, por isso, que mesmo a esquerda democrática, embora perfilhando desde o princípio a democracia representativa contra o modelo leninista da "democracia popular", nunca se tenha conformado com a versão "minimalista" da democracia liberal que se tornou dominante na teoria e na prática de muitas democracias ocidentais, centrada exclusivamente sobre a esfera política e sobre os mecanismos eleitorais da escolha dos governantes.
Com o avolumar dos sintomas de diminuição da participação política (elevadas taxas de abstenção, redução da filiação partidária, etc.), esse descarnamento "procedimentalista" da democracia liberal tem vindo a ser confrontado com uma dupla crítica de esquerda. Primeiro, preconiza-se a intervenção institucionalizada dos movimentos e organizações de cidadãos na definição e na tomada de decisões políticas, desde logo a nível das colectividades locais e dos serviços públicos, de modo a intensificar e aprofundar a democracia política. Segundo, defende-se a extensão da lógica democrática às instituições públicas (como as escolas e serviços de saúde) e às próprias organizações sociais (como as famílias, as empresas, etc.), de modo a alargar a democracia para além da esfera estritamente política.
É evidente que, de um ponto de vista de esquerda, mesmo rejeitando a tentação holística das teorias mais radicais da democracia participativa e da "democracia societal" - que tendem a desvalorizar a incontornável centralidade da democracia eleitoral representativa -, a democracia não se pode reduzir à "democracia eleitoral" nem se limitar à esfera política. Será sempre de baixa intensidade uma democracia que se esgote na periódica renovação da legitimidade eleitoral dos governantes ou que esteja circundada por um meio ambiente autoritário na esfera da economia, da sociedade e da cultura política.
Com as devidas proporções, tanto a democracia participativa como a democracia societal podem ser virtuosos complementos da democracia eleitoral, quer como instrumentos de permanente legitimação política, quer como alavancas da criação de uma praxis democrática alargada, podendo constituir a resposta adequada ao risco de dessoramento democrático que as democracias liberais contemporâneas enfrentam e à consequente necessidade de renovação democrática, de que elas necessitam. Não havendo a democracia perfeita, a democracia há-de ser sempre uma tarefa inacabada.
Não admira, por isso, que em vários países europeus tenham sido tomadas nos últimos anos várias iniciativas de reflexão e de reforma política tendentes a aprofundar e a enriquecer a vida democrática, umas que têm a ver com a própria democracia eleitoral (entre elas a "paridade de género", o reconhecimento do direito de voto aos imigrantes, as "eleições primárias" na escolha de candidatos a governantes, a redução da idade eleitoral), outras que passam por formas de democracia participativa, sobretudo a nível local e dos serviços públicos (citizens juries, comissões de utentes, conselhos populares locais, etc.), outras finalmente que visam democratizar instituições e organizações sociais (escolas, empresas, associações e fundações de interesse público, etc.).
A má colocação de Portugal no referido ranking da "democracia quotidiana" - e o resultado não seria porventura muito diferente se se tratasse de um ranking relativo à democracia participativa - deve-se menos à qualidade da democracia eleitoral entre nós - aspecto em que ficamos bem colocados, a meio da tabela, justamente entre as democracias antigas e as democracias mais recentes -, do que às outras dimensões daquela noção de democracia alargada, desde o activismo e a participação cívica até à democracia nos serviços públicos, passando pela democracia na família e no local de trabalho, aspectos em que Portugal surge sistematicamente nos últimos lugares.
Mesmo sem aderir à concepção sistémica da "democracia quotidiana" e sem proceder à verificação da fiabilidade dos dados utilizados, não pode ser contestado que há muito a fazer entre nós para combater o risco de empobrecimento democrático e para conferir maior intensidade e qualidade à nossa democracia, tanto no plano da cultura e das práticas políticas, como da democratização das instituições da esfera económica e social. Eis uma boa tarefa para o PS como partido de esquerda e de poder, o qual, apesar de algumas iniciativas meritórias neste campo na presente legislatura (como a limitação dos mandatos políticos, a promoção da igualdade de género nas eleições e a reforma parlamentar), não tem primado pela imaginação e pelo debate que esta questão requer. As comemorações do centenário da República bem poderiam ser uma excelente oportunidade para suprir esse défice de reflexão democrática.
(Público, terça-feira, 6 de Maio de 2008)
Um think tank britânico de esquerda elaborou um ranking dos países da UE quanto à qualidade da "democracia quotidiana" (everyday democracy), uma noção alargada de democracia, que compreende várias dimensões, desde as instituições e procedimentos eleitorais até à democracia nos locais de trabalho. Nessa ordenação, que é liderada sem surpresa pelos países escandinavos, Portugal ocupa um lugar assaz modesto. Importa analisar a pertinência da referida noção extensiva de democracia, bem como a situação da democracia portuguesa.
Desde sempre a esquerda fez da democracia o seu leit motiv político, tendo estado na frente das lutas pelo sufrágio universal, pelo voto feminino, pela redução da idade eleitoral, pelo sistema proporcional, pela electividade das "câmaras altas", pela igualdade do voto, etc. Mas também sempre defendeu que a democracia não se pode limitar à "democracia eleitoral", devendo ser conjugada com a democracia participativa, nem pode ficar reduzida à esfera política, devendo ser complementada pela democracia económica, social e cultural. Não é por caso que os partidos socialistas do Norte da Europa ainda hoje se denominam sociais-democratas, ou seja, partidários da "democracia social".
Não admira, por isso, que mesmo a esquerda democrática, embora perfilhando desde o princípio a democracia representativa contra o modelo leninista da "democracia popular", nunca se tenha conformado com a versão "minimalista" da democracia liberal que se tornou dominante na teoria e na prática de muitas democracias ocidentais, centrada exclusivamente sobre a esfera política e sobre os mecanismos eleitorais da escolha dos governantes.
Com o avolumar dos sintomas de diminuição da participação política (elevadas taxas de abstenção, redução da filiação partidária, etc.), esse descarnamento "procedimentalista" da democracia liberal tem vindo a ser confrontado com uma dupla crítica de esquerda. Primeiro, preconiza-se a intervenção institucionalizada dos movimentos e organizações de cidadãos na definição e na tomada de decisões políticas, desde logo a nível das colectividades locais e dos serviços públicos, de modo a intensificar e aprofundar a democracia política. Segundo, defende-se a extensão da lógica democrática às instituições públicas (como as escolas e serviços de saúde) e às próprias organizações sociais (como as famílias, as empresas, etc.), de modo a alargar a democracia para além da esfera estritamente política.
É evidente que, de um ponto de vista de esquerda, mesmo rejeitando a tentação holística das teorias mais radicais da democracia participativa e da "democracia societal" - que tendem a desvalorizar a incontornável centralidade da democracia eleitoral representativa -, a democracia não se pode reduzir à "democracia eleitoral" nem se limitar à esfera política. Será sempre de baixa intensidade uma democracia que se esgote na periódica renovação da legitimidade eleitoral dos governantes ou que esteja circundada por um meio ambiente autoritário na esfera da economia, da sociedade e da cultura política.
Com as devidas proporções, tanto a democracia participativa como a democracia societal podem ser virtuosos complementos da democracia eleitoral, quer como instrumentos de permanente legitimação política, quer como alavancas da criação de uma praxis democrática alargada, podendo constituir a resposta adequada ao risco de dessoramento democrático que as democracias liberais contemporâneas enfrentam e à consequente necessidade de renovação democrática, de que elas necessitam. Não havendo a democracia perfeita, a democracia há-de ser sempre uma tarefa inacabada.
Não admira, por isso, que em vários países europeus tenham sido tomadas nos últimos anos várias iniciativas de reflexão e de reforma política tendentes a aprofundar e a enriquecer a vida democrática, umas que têm a ver com a própria democracia eleitoral (entre elas a "paridade de género", o reconhecimento do direito de voto aos imigrantes, as "eleições primárias" na escolha de candidatos a governantes, a redução da idade eleitoral), outras que passam por formas de democracia participativa, sobretudo a nível local e dos serviços públicos (citizens juries, comissões de utentes, conselhos populares locais, etc.), outras finalmente que visam democratizar instituições e organizações sociais (escolas, empresas, associações e fundações de interesse público, etc.).
A má colocação de Portugal no referido ranking da "democracia quotidiana" - e o resultado não seria porventura muito diferente se se tratasse de um ranking relativo à democracia participativa - deve-se menos à qualidade da democracia eleitoral entre nós - aspecto em que ficamos bem colocados, a meio da tabela, justamente entre as democracias antigas e as democracias mais recentes -, do que às outras dimensões daquela noção de democracia alargada, desde o activismo e a participação cívica até à democracia nos serviços públicos, passando pela democracia na família e no local de trabalho, aspectos em que Portugal surge sistematicamente nos últimos lugares.
Mesmo sem aderir à concepção sistémica da "democracia quotidiana" e sem proceder à verificação da fiabilidade dos dados utilizados, não pode ser contestado que há muito a fazer entre nós para combater o risco de empobrecimento democrático e para conferir maior intensidade e qualidade à nossa democracia, tanto no plano da cultura e das práticas políticas, como da democratização das instituições da esfera económica e social. Eis uma boa tarefa para o PS como partido de esquerda e de poder, o qual, apesar de algumas iniciativas meritórias neste campo na presente legislatura (como a limitação dos mandatos políticos, a promoção da igualdade de género nas eleições e a reforma parlamentar), não tem primado pela imaginação e pelo debate que esta questão requer. As comemorações do centenário da República bem poderiam ser uma excelente oportunidade para suprir esse défice de reflexão democrática.
(Público, terça-feira, 6 de Maio de 2008)