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19 de junho de 2008

A oportunidade 

Por Vital Moreira

Apesar de ter negociado e assinado o Tratado de Lisboa, a Irlanda tem todo o direito de o rejeitar, aliás como qualquer outro Estado-membro da UE. Tais são as regras do jogo. Mas será que todos os demais, que desejam o aprofundamento da integração europeia, têm de se render perante o veto irlandês?

A recusa irlandesa não constitui grande surpresa para quem acompanhou a evolução das sondagens de opinião no referendo e ainda menos para quem sempre considerou irreferendável o Tratado de Lisboa. Não sendo um crente da nova teologia referendária - por fidelidade à democracia parlamentar -, sempre considerei que este tratado era especialmente intratável como objecto de referendo, pela sua extrema complexidade, sendo verdadeiro aventureirismo político submetê-lo a aprovação popular.

Há todas as razões para crer que o Tratado não foi rejeitado principalmente pelo seu conteúdo conhecido, mas sim pela sua incontornável incompreensibilidade, tendo a oposição jogado explicitamente na ignorância como argumento contra ele. Numa das últimas sondagens sobre o referendo irlandês, somente 8 por cento dos eleitores declararam ter um "bom conhecimento do Tratado" (e pelo que se conhece da sociologia das sondagens, esse número devia pecar por excesso). Mesmo assim, cerca de 65 por cento dos inquiridos achavam que podiam votar a favor ou contra. A principal explicação está em que dos que declararam ter intenção de votar "não" a principal razão alegada era que "não sabiam ou não compreendiam o que estavam a votar".

A decisão dos eleitores até é racional, pois as pessoas votam habitualmente contra aquilo que não conhecem. Trata-se de um elementar instinto de defesa contra o desconhecido. O que não é racional é submeter a decisão popular matérias de elevadíssimo grau de complexidade e dificuldade, que a generalidade dos eleitores não pode razoavelmente compreender, não podendo por isso apoiar. A verdade é que nem tudo é referendável, a começar por longos tratados ou extensas leis, sobretudo quando se trata de uma intragável colecção de emendas de diplomas anteriores, como era o caso.

Se a isso juntarmos as tradicionais dificuldades irlandesas em relação à UE, que foram exploradas até ao extremo do populismo - designadamente a questão da neutralidade do país, bem como o receio de imposição externa de mudanças no que respeita a questões religiosamente sensíveis (aborto, família) -, bem como as actuais incertezas decorrentes da crise financeira internacional e da subida do preço do petróleo, incluindo os indícios do fim do "milagre irlandês", estava criado o caldo de cultura ideal para um referendo mal sucedido. Não há pior ambiente para vencer um referendo do que a insegurança da opinião pública sobre a situação económica e social.

Rejeitado o Tratado da Lisboa na Irlanda, o que fazer? Excluída a hipótese de desistir de reformar as instituições da UE (mesmo explorando ao máximo as hipótese de "cooperação reforçada"), cuja necessidade imperiosa foi definida desde 2001, só restam aparentemente duas soluções. Uma é "convidar" a Irlanda a repetir o referendo dentro de algum tempo, precedido de alguma concessão ou "opting out" por parte dos demais Estados-membros, como sucedeu com a reedição do referendo do Tratado de Nice em 2002, depois da recusa de 2001. Outra seria reformular o Tratado de Lisboa, uma terceira tentativa desde o falhado Tratado Constitucional de 2004.

Todavia, nenhuma dessas opções oferece a mínima segurança de passagem em novo referendo irlandês, se se mantiverem as razões que ditaram esta rejeição. Contrariamente ao discurso oficial predominante, não creio que haja condições para fazer aprovar o Tratado de Lisboa num segundo referendo na Irlanda a curto prazo, nem para aprontar com a necessária brevidade um novo Tratado susceptível de ter melhor sorte do que aquele. Ora, pior que um referendo negativo, só um segundo referendo negativo...

Como sempre sucede nestas ocasiões, há também as soluções salvíficas, aparentemente simples, como a de recomeçar tudo de novo, num processo "verdadeiramente constituinte", começando por dar poderes constituintes ao próximo Parlamento Europeu, a eleger daqui a um ano, e acabando num referendo pan-europeu. Trata-se, porém, de uma proposta manifestamente inviável e puramente ficcional. Um processo desses só poderia ser decidido por via de um tratado prévio, o qual, mesmo que houvesse alguma possibilidade de ser acordado entre os Vinte e Sete (sendo óbvio que não existe), teria de ser ratificado por todos os Estados-membros, incluindo um novo referendo irlandês. Ora ninguém pode duvidar seriamente que não seria somente a Irlanda a rejeitar uma tal constitucionalização e uma radical refundação federal da UE. As soluções utópicas têm a vantagem da perfeição, mas também o pequeno defeito de serem irrealizáveis.

Por conseguinte, parece não haver saída previsível para o bloqueio irlandês no actual quadro institucional, baseado na reforma dos tratados por unanimidade, com direito de veto de qualquer Estado, através da recusa de ratificação doméstica. Por isso, a única saída para levar por diante a integração europeia pode ser a de recuperar a ideia de criar uma nova arquitectura institucional à parte da UE existente, reservada para os países que o desejarem, com abandono da regra da unanimidade, deixando de fora os países que em qualquer momento não quiserem ir para a frente. Aliás, é pouco provável que o referendo irlandês tivesse o resultado que teve, se o país arriscasse ficar para trás, sem prejuízo para os demais países.

Como diz o jornal Le Monde, que não costuma primar pela radicalidade, torna-se necessário "criar, ao lado da UE actual, uma vanguarda composta por países dispostos a aceitar a regra da maioria qualificada para aprofundar a integração". E conclui: "Se ajudar a tomar consciência [dessa necessidade], o voto dos irlandeses poderá ser uma oportunidade para a Europa." Ou seja, uma oportunidade para romper as limitações que paralisam a construção europeia.

Público, 3ª feira, 17 de Junho de 2008

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