<$BlogRSDUrl$>

10 de julho de 2008

A grande mistificação 

Por Vital Moreira

Pode haver várias razões contra os investimentos públicos em geral ou contra certos investimentos públicos em concreto. Mas argumentar que eles não podem ser feitos por "falta de dinheiro" constitui uma grande mistificação política, que não resiste à mais elementar análise.

Para começar, a afirmação de que "não há dinheiro para nada" é duplamente errada: primeiro, porque com o saneamento das finanças públicas - um triunfo inegável deste Governo -, há finalmente margem de manobra orçamental para retomar o investimento público; segundo, porque para haver investimento em infra-estruturas públicas não é necessário ter dinheiro público disponível nem sequer recorrer ao endividamento público, bastando optar pelo investimento privado no quadro de "parcerias público-privadas". Ora, a quase totalidade dos investimentos previstos - novo aeroporto, nova travessia do Tejo, rede ferroviária, estradas, barragens, portos, e mesmo hospitais, escolas e prisões - será feita com dinheiro privado.

Acresce que, ressalvadas as infra-estruturas de uso gratuito - caso das escolas, dos hospitais, etc. -, em que a remuneração do investimento privado terá de sair do orçamento do Estado, ao longo do prazo acordado, as demais infra--estruturas públicas são totalmente ou em grande parte auto-sustentadas financeiramente, através das receitas que elas mesmas geram na sua exploração. E se em alguns casos essas receitas não chegam para remunerar integralmente o investimento - caso tradicional dos transportes ferroviários -, já noutros casos é de esperar um considerável saldo líquido, como sucede no caso das auto-estradas pagas e das barragens hidroeléctricas. Consideremos essas duas áreas, que muitos observadores desatentos têm incluído entre os casos de investimentos duvidosos.

Um dos temas que a elite lisboeta sempre aborda com enorme desprezo é o investimento rodoviário (fora da região de Lisboa, bem entendido). Bastam-lhe as pontes sobre o Tejo e as auto-estradas para Cascais e para o Algarve. Ora, todos os investimentos rodoviários projectados fazem parte do Plano Rodoviário Nacional - que o PSD aprovou -, o qual está em boa parte por realizar por esse país fora, incluindo algumas ligações básicas, sobretudo no interior. Quanto ao financiamento, o sector deixou de depender do orçamento do Estado e dos impostos no novo sistema de gestão rodoviária, devendo a Estradas de Portugal recorrer ao investimento privado em regime de PPP e remunerá-lo depois com recursos próprios, designadamente a "contribuição rodoviária" e, sobretudo, as portagens das novas auto-estradas (e das antigas, quando cessarem as actuais concessões). O Estado deixa, portanto, de ter encargos orçamentais com as estradas.

No caso das barragens hidroeléctricas - que alguns credenciados comentadores políticos não pouparam -, o argumento da "falta de dinheiro" é verdadeiramente surrealista. De facto, para além da preciosa contribuição das novas barragens na diminuição da dependência energética do país em combustíveis fósseis, elas não só não custam um cêntimo aos contribuintes como ainda por cima rendem ao Estado muitos milhões de euros, quer a título de pagamentos à cabeça por cada concessão, quer a título da nova taxa de recursos hídricos, que as empresas eléctricas terão de pagar pela água turbinada. Por conseguinte, além de não envolverem nenhum encargo orçamental, as barragens hidroeléctricas são uma verdadeira mina de ouro para o Estado.

Como é que se pode argumentar politicamente assim, na base do preconceito e da irresponsabilidade?

A resposta passa por três factores. Primeiro, o nosso debate político prefere muitas vezes o slogan ou a frase assassina, em vez do argumento racional e das propostas alternativas. Há uma atávica recorrência nestes métodos. A frase de Manuela Ferreira Leite sobre "não haver dinheiro para nada" ecoa a frase de Durão Barroso sobre o "país de tanga", que serviu de "leit motiv" para adiar todos os investimentos públicos - mas não para se não comprometer com eles, como sucedeu com o TGV -, sem ao menos ter conseguido disciplinar as finanças públicas.

O segundo factor tem a ver com o défice de informação e investigação da generalidade dos nossos media, incluindo os de serviço público. Perante a impugnação global dos investimentos públicos programados, com o fundamento invocado (alegada falta de dinheiro), uma imprensa responsável deveria ter-se lançado na pesquisa dos custos e do financiamento de cada um dos investimentos em causa. Em vez disso prevaleceu a repetição acrítica dos artigos de fé da cruzada contra os investimentos em infra-estruturas públicas, sem discussão nem contestação.

Por último, era de esperar que, posta em causa a comportabilidade financeira dos seus projectos, o Governo se apressasse a compilar e a disponibilizar todos os dados sobre a fiabilidade financeira dos investimentos já assumidos ou em vias de o serem. Não basta dizer que os estudos existem e estão publicamente disponíveis. Um apanhado sistematizado não custaria muito nem demoraria muito tempo a elaborar e poderia acabar com muitas das especulações que o desconhecimento e a má fé alimentam.

De resto, conviria igualmente esclarecer convincentemente o eventual impacto da actual crise financeira e petrolífera internacional sobre os investimentos públicos programados. Importa saber concretamente se o Estado continuará a manter capacidade orçamental para assegurar a sua parte nos investimentos que exigem alguma contribuição pública (caso do TGV) e se o aumento exponencial do preço dos combustíveis poderá alterar a equação financeira de alguns investimentos em infra-estruturas de transportes (por exemplo, favorecendo o transporte ferroviário em prejuízo do rodoviário e do aéreo).

Só a informação responsável pode afastar a demagogia irresponsável.

Publico, terça-feira, 8 de Julho de 2008

This page is powered by Blogger. Isn't yours?