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10 de julho de 2008

Hostilidade assimétrica 

Por Vital Moreira

A oposição ao Tratado de Lisboa confirmou que existem duas grandes motivações para a hostilidade ao aprofundamento da UE. Uma tem a ver com a questão da “perda da soberania”, outra tem a ver com o modelo económico-social subjacente à integração europeia. Mas por que é a oposição à integração europeia é muito mais ampla e profunda à esquerda do que à direita do espectro político?

As posições soberanistas contra a integração europeia não existem só à direita, ainda que sejam mais visíveis nesse quadrante, visto que a esquerda, pelas suas tendências tradicionalmente “internacionalistas”, tende a reprimir ou a esconder as pulsões nacionalistas, mesmo quando elas existem. Por isso, é na direita, e nos sectores da direita mais nacionalistas em especial, que normalmente encontramos a hostilidade mais “vocal” contra uma maior integração europeia. Daí a oposição de direita nacionalista ao Tratado Constitucional como, em menor medida, ao Tratado de Lisboa, pelos seus avanços suspeitamente federalizantes.

Já o modelo-económico social da UE suscita naturalmente mais objecções à esquerda (melhor dizendo, na “esquerda da esquerda”) do que à direita. A razão é fácil de entender.

A “constituição económica” da UE assenta desde o princípio numa “economia de mercado social”, baseada no casamento entre a economia de mercado (regulada) e o Estado social. Contra este “mix cosntitucional” estão tanto os liberais radicais, adeptos do “capitalismo de mercado livre” (‘laissez-faire capitalism’), como a esquerda radical, partidária de uma qualquer forma “socialismo económico”, baseado na socialização dos meios de produção e na direcção pública da economia. Os primeiros condenam toda a ingerência do Estado na economia e rejeitam liminarmente o Estado social, como atentados qualificados contra a liberdade individual e o desempenho da economia. Os segundos são por definição contrários ao capitalismo e à economia de mercado, por mais regulada ou por mais social que seja.

Sendo a rejeição da esquerda antiliberal da UE muito mais visível do que a hostilidade neoliberal, há uma dupla explicação para essa assimetria.

Em primeiro lugar, existe uma evidente diferença de peso na Europa entre o liberalismo radical (neoliberalismo) e a esquerda antiliberal. A Europa não se tem revelado terreno propício para os defensores do modelo de “economia de mercado livre” e para a indiferença social do Estado. Com a conhecida excepção britânica, as economias europeias integram-se no modelo das “economia de mercado coordenada”; e, em geral, com maiores ou menores variantes, quase todos os Estados europeus compartilham do “modelo social europeu”. Coisa diferente sucede com as correntes da esquerda radical, que por razões históricas e sociais, mantêm significativa influência em vários países, disputando aos partidos social-democratas e socialistas tradicionais uma parte do voto de esquerda. Para além dos partidos comunistas, de obediência leninista, há também as correntes troskistas, “altermundistas”, verdes radicais, etc. Todos eles compartilham uma concepção anticapitalista e antiliberal em matéria económica, visceralmente hostil à economia de mercado.

Em segundo lugar, a criação do “mercado único europeu” desde final dos anos 80 do século passado – incluindo a liberalização dos antigos serviços públicos económicos (utilities), bem como a livre prestação de serviços transfronteiras (Directiva serviços) – tem dado argumentos à esquerda antiliberal na sua rejeição da UE, na medida em que o mercado único implica por definição a abertura ao mercado e à concorrência de actividades anteriormente prestadas em regime de exclusivo público (ou de concessão exclusiva), bem como a concorrência no mercado único de prestação de serviços, até agora segmentado e protegido dentro fronteiras nacionais. Daí que as esquerdas antiliberais não se cansem de denunciar como “deriva neoliberal” os referidos mecanismos de construção do mercado único.

A acusação não tem fundamento, dado que a liberalização dos serviços – que de resto tem poupado os serviços sociais – não põe em causa nem a regulação económica nem, muito menos, as garantias do Estado social. Não é por acaso que a construção do mercado único foi acompanhada da “internalização” e reforço da dimensão social nos próprios Tratados da UE, como é evidente no Tratado de Amesterdão e do Tratado de Lisboa. Em certo sentido, a UE torna-se simultaneamente mais economia de mercado (regulada) e mais social. O que sucede é que o problema da esquerda antiliberal é justamente a economia de mercado, qualquer que ela seja.

Diário Económico, 4ª feira, 2 de Julho de 2008

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