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26 de julho de 2008

Um voto de vencido 

Como documento de apoio a este meu post do Causa Nossa, sobre a vigilância especial da GNR sobre os nómadas, eis a transcrição do meu voto de vencido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 452/89, publicado no Diário da República de 22 de Julho de 1989:

«1 - Votei a alínea A) da decisão, em que se declara a inconstitucionalidade de parte do n.º 2 do preceito em questão [que permitia a livre entrada da GNR nas caravanas], por infracção da garantia da inviolabilidade do domicílio; mas fiquei vencido quanto à alínea B), que não declarou a inconstitucionalidade dos vários números do preceito (incluindo o n.º 2) [que estabelece a vigilência especial sobre os nómadas], por violação do princípio da igualdade.

Na minha opinião, verifica-se tal inconstitucionalidade, pois as normas em questão estabelecem uma discriminação de tratamento constitucionalmente infundada, visto que, no meu entendimento (contrariamente ao do acórdão), elas visam especificamente os ciganos nómadas e não se mostra haver justificação razoável para o concreto regime de desigualdade instituído pelas normas que se encontram sujeitas a controlo de constitucionalidade.

2 - O regime de «especial vigilância» da GNR previsto no artigo 81.º da parte III do Regulamento daquela força de segurança incide sobre «grupos e caravanas de pessoas que habitualmente se deslocam de terra em terra fazendo comércio, participando em feiras ou desenvolvendo outras actividades próprias da vida itinerante» (n.º 1 do referido preceito).

O elemento diferenciador deste regime relativamente ao regime geral da vigilância do comum dos cidadãos pela GNR é, assim, aparentemente, o modo de vida itinerante próprio dos nómadas em geral, independentemente de qualquer especificação.

Mas uma análise mais detida do «programa normativo» do preceito logo mostra que ele visa atingir especificamente os ciganos. Desde logo, é fácil ver que o preceito só abrange os nómadas que vivem e se deslocam em grupo e que têm nisso o seu modo de vida habitual (é o que se deduz claramente da expressão introdutória da norma, que fala em «grupos e caravanas de pessoas que habitualmente se deslocam de terra em terra»). Ficam assim excluídos os errantes individuais ou que se reúnem em grupos ocasionais, bem como os nómadas eventuais.

Ora, em Portugal, quem diz grupos nómadas diz essencialmente ciganos. Para além desses, só poderia integrar-se naquela categoria, não sem alguma dificuldade, a gente dos circos, que também se desloca em caravana, isto é, em comboio ou fila, que é o sentido tradicional desse termo (o que, registe-se, já não ocorre com a generalidade dos demais feirantes itinerantes). Sucede, porém, que existem no preceito elementos que inequivocamente pressupõem que os grupos nómadas que na ocorrência se têm especialmente (se não exclusivamente) em vista são as comunidades ciganas, como mostra a parte final do n.º 2, quando refere «os principais chefes dos grupos». É evidente que esta referência só pode valer para as comunidades ciganas, com as suas estruturas de hierarquia e chefia comunitárias próprias, que não possuem qualquer correspondência nas restantes categorias de nómadas.

Por conseguinte, as categorias de pessoas submetidas ao referido regime de «especial vigilância» da GNR continuam a ser as mesmas a que se dirigiam os artigos 182.º a 185.º do Decreto n.º 6950, de 1920, a seu tempo declarado inconstitucional, por violação do princípio da igualdade. Não se deu qualquer modificação no campo de incidência do regime especial para certos grupos humanos definidos pelo seu modo de vida tradicionalmente errante. Neste aspecto, a alteração foi de ordem meramente formal: antes, os ciganos eram a categoria referencial à qual se equiparavam expressamente todos os nómadas aparentados (artigo 182.º e § único do Decreto n.º 6950); agora, são os nómadas o conceito omnicompreensivo de todas as gentes errantes, conceito que, todavia, na sua formulação concreta no preceito em causa, abrange em primeira linha, especificamente, os grupos nómadas de ciganos, como se mostrou acima. A não referência expressa aos ciganos ter-se-á devido, principalmente, a um propósito de tentar tornear as previsíveis objecções de inconstitucionalidade, tendo em conta a declaração de inconstitucionalidade das correspondentes normas do Regulamento de 1920.

Mas, mesmo limadas as arestas mais agudas desse regime e evitadas referências expressas aos ciganos, é demasiado flagrante a identidade do actual regime quanto ao seu «programa normativo», que, de resto, se denuncia em várias formulações idênticas ou aproximadas. Por mais que se sustente que há mais nómadas além dos ciganos - como o acórdão se esforça por mostrar -, tem-se por incontestável que são os grupos nómadas ciganos que o Regulamento da GNR tem em mente e que, não fora pelos ciganos, seguramente não existiria tal norma, pois, como se mostrou, para além deles só poderiam acrescentar-se grupos em número relativamente irrelevante (gente do circo) e aos quais - o que é mais importante - a consciência popular vulgar não liga nenhum juízo de perigosidade criminal que «justificasse» um regime de vigilância policial agravada.

Agora, como antes, a razão de ser do estabelecimento de um regime de «vigilância especial» policial radica na ideia preconcebida (culturalmente ainda enraizada) de que os ciganos, sobretudo quando nómadas, são delinquentes potenciais, por atavismo rácico ou idiossincrasia étnica. Ora, como se demonstrou no parecer n.º 14/80 da antiga Comissão Constitucional (Pareceres, vol. 12) - que fundamentou a referida declaração de inconstitucionalidade das normas afins do Regulamento de 1920 -, a discriminação em função do modo de vida errante dos ciganos, enquanto tais, não tem um fundamento material razoável, já que assenta tão-só num juízo de suspeição dirigido a certos grupos de pessoas pelo facto de viverem segundo determinados usos e costumes que lhes são próprios - em termos de tradições étnicas e culturais - e que merecem ser havidos como legítimos numa sociedade aberta ao pluralismo de concepções e práticas de vida, em que aqueles usos e costumes, ainda que socialmente heterodoxos, não são, todavia, censuráveis como comportamentos «desviantes» e muito menos podem ter-se por ilícitos ou, sequer, apenas como penalmente «tolerados».

Refira-se, aliás, que entre os princípios constantes da Recomendação R (83) 1 do Comité dos Ministros do Conselho da Europa figura o da não discriminação relativamente às pessoas tradicionalmente habituadas a um modo de vida itinerante, devendo os Estados membros abster-se, no direito e na prática aplicáveis à circulação e à residência destas pessoas, de qualquer medida conducente a uma discriminação fundada sobre o seu modo de vida. Já anteriormente, através da Resolução (75) 13, o mesmo Comité de Ministros havia recomendado aos Estados membros a adopção de todas as medidas necessárias para pôr fim a quaisquer formas de discriminação contra as populações nómadas, no seguimento da Recomendação 563 (1969) da Assembleia Consultiva do Conselho da Europa, que referia a existência de uma situação de «discriminação contra os ciganos, devida à sua pertença a um grupo étnico particular, que é incompatível com os ideais próprios da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Declaração dos Direitos do Homem das Nações Unidas», e preconizava as medidas a tomar para pôr fim a tal situação.

A discriminação em função da raça está expressamente proibida no artigo 13.º, n.º 2, da CRP. Mas, mesmo que se entendesse que o motivo da discriminação contra os ciganos não é propriamente a sua raça (visto não se abrangerem os ciganos sedentários), mas sim o seu modo de vida errante, conforme às suas tradições culturais, a verdade é que é unanimemente entendido que a enumeração dos motivos de não discriminação constantes do n.º 2 do artigo 13.º da Constituição é meramente enunciativa. A este propósito, pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 203/86 (Diário da República, 2.ª série, n.º 195, de 26 de Agosto de 1986):

Ao quadro do n.º 2 do artigo 13.º, dado o seu carácter simplesmente indicativo, terão por força de ser acrescentados [...] quaisquer outros motivos que, na perspectiva dos direitos considerados, se revelem, em análise objectiva da situação comparativa, irrazoáveis e arbitrários.

Ter-se-á, pois, de concluir que, inexistindo elementos objectivos razoavelmente justificativos de uma discriminação negativa contra os ciganos nómadas, o artigo 81.º do Regulamento em causa, que os submete a um especial regime de vigilância policial, viola o princípio da igualdade, garantido no citado preceito da lei fundamental.

3 - Intenta o acórdão demonstrar que o regime de «especial vigilância» dos nómadas - conceito que na concepção que fez vencimento não se refere especificamente aos ciganos - se justifica por se tratar de situações de «perigosidade social» ou de «pré-criminalidade» ou de «perigosidade criminal que os nómadas por onde passam, e em maior ou menor grau, quase sempre suscitam». E em defesa desta tese aduz que o mesmo Regulamento da GNR prescreve regimes de «especial vigilância» para outras situações de similar «perigosidade social», o que mostraria que não se verifica nenhuma discriminação ou tratamento desigual dos nómadas.

Independentemente de, à partida, não se poder compartilhar da concepção que faz dos nómadas em geral factores de «perigosidade social», de «pré-criminalidade» ou de «perigosidade criminal», há que dizer que o regime de «especial vigilância» previsto para os nómadas não é equiparável ao das demais situações de «especial vigilância» previstas no mesmo Regulamento da GNR.

É que, por um lado, na maior parte dos casos elencados no acórdão, trata-se de vigilância» especial não sobre certas pessoas, mas sim sobre certos locais (pontos e instalações «sensíveis», incluindo certas povoações, arraiais, mercados e feiras, praias, locais de convívio da juventude e imediações de estabelecimentos de ensino, festas e locais similares), e com objectivos concretos e determinados (v. g., «garantir a ordem pública e a livre circulação de pessoas e viaturas» nas feiras e mercados, «prevenir roubos e outros crimes» nas praias, prevenir o tráfico e o consumo de droga nos locais de convívio da juventude, reprimir os jogos ilícitos nas festas, feiras e romarias). Não estão, pois, em causa certas categorias ou grupos particulares de pessoas, como sucede com os ciganos, nem a vigilância» visa um certo modo de vida em geral.

O único dos casos mencionados em que o objecto da «especial vigilância» é também uma certa categoria de pessoas ou um específico «modo de vida» é o dos «mendigos e vadios» (artigo 82.º), a que se poderia ter acrescentado também o das «prostitutas» (artigo 83.º).

Ora, sucede, justamente, que todas essas situações - mendicidade, vadiagem e prostituição - eram tradicionalmente consideradas como situações ilícitas, estando expressamente previstas no antigo Código Penal como situações de perigosidade (artigo 71.º), susceptíveis de aplicação de medidas de segurança (artigo 70.º). A despenalização desses factos pelo actual Código Penal (de 1982) não terá eliminado (e, antes, terá reforçado) a justificação para a vigilância» policial particular dessas situações «associais». Tais situações, porém, são essencialmente distintas da do nomadismo, pois esta, ao contrário daquelas, não é tradicionalmente considerada ilícita nem se contava entre os estados de perigosidade susceptíveis de aplicação de medidas de segurança. Quer isto dizer, em conclusão, que não se dá por demonstrada a alegada «conexão comum» que no acórdão se estabelece entre a «especial vigilância» sobre os grupos nómadas e as demais situações de vigilância» especial previstas no mesmo Regulamento da GNR.

Acresce que, no caso em apreço - o do artigo 81.º, relativo aos nómadas (que, repita-se, no meu entender, visa especificamente os ciganos) -, a norma particulariza alguns elementos da referida «especial vigilância» designadamente «buscas e revistas», identificação dos «principais chefes dos grupos» (n.º 2), identificação e comunicação do destino das deslocações dos grupos (n.º 3); destas medidas especiais de vigilância foi declarada inconstitucional, por violação do artigo 34.º da Constituição, apenas a das buscas nas habitações dos grupos nómadas.

Ora, mesmo que, na lógica do acórdão, fosse de considerar razoável a existência de um regime de «especial vigilância» policial sobre os ciganos (e outros nómadas), sempre haveria de verificar se a «perigosidade criminal» que o acórdão imputa aos ciganos (e aos demais nómadas) justifica aquelas particulares formas de vigilância policial. É que, mesmo que fosse legítimo aplicar aqui o princípio «para-situações-desiguais-tratamento desigual», sempre haveria que verificar se - estando em causa (como está) um tratamento desfavorável - ele não ultrapassará desmedidamente aquilo que a alegada desigualdade de situações justificaria ... - Vital Moreira».

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