19 de agosto de 2008
Contra-refroma
Por Vital Moreira
Entre as muitas medidas do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE) de 2006 contou-se a reorganização dos serviços da acção social complementar da Administração Pública, no sentido da sua (tendencial) unificação e homogeneização. Infelizmente, antes de consolidada a reforma, já começou a contra-reforma.
Até à sua revisão legal em 2007, a acção social complementar da Administração Pública era caracterizada pela dispersão orgânica, pela heterogeneidade e pela desigualdade. Mesmo sem considerar os regimes especiais de protecção da saúde e de aposentação (como nas forças armadas e no Ministério da Justiça), havia serviços de acção social privativos em diversos ministérios. As prestações e apoios disponíveis não eram homogéneos, sem nenhum respeito pelo princípio da igualdade de tratamento. Em alguns casos, as regalias incluíam a prestação directa de cuidados de saúde, de creches e infantários, havendo mesmo casos de oferta de supermercados!
O quadro geral era uma espécie de "feudalismo sectorial", em que cada ministério – e, em alguns casos, cada serviço público – se afadigava em proporcionar aos seus funcionários regalias sem paralelo nos restantes, à custa de verbas orçamentais ou de receitas próprias. Se havia uma demonstração da falta de racionalidade na organização administrativa e nos gastos públicos, bem como de captura da Administração pelos interesses dos seus funcionários, a acção social complementar era um caso exemplar.
A referida reforma veio unificar vários dos serviços sociais dispersos, reunindo-os num único serviço – os Serviços Sociais da Administração Pública (SSAP) –, bem como uniformizar tendencialmente os diferentes regimes prestacionais, aproveitando para extinguir várias modalidades sem razão de ser. Entre as actividades findas contaram-se os "equipamentos sociais relativos à educação pré-escolar, creches, residências do ensino superior e postos e centros de saúde", os quais deixaram de integrar o âmbito da acção social complementar.
Eis senão quando, surpreendentemente, um recente diploma legal veio estabelecer que "os institutos públicos podem, (...) mediante autorização prévia dos ministros das Finanças e da tutela, desenvolver iniciativas de acção social complementar relativas a educação pré-escolar e creches (...)".
Trata-se de uma medida estranha a vários títulos. Primeiro, a faculdade de criação de creches ou jardins de infância é autorizada somente em relação aos institutos públicos, excluindo, sem nenhuma explicação, os serviços da administração directa do Estado. Segundo, a criação de tais serviços fica na dependência de autorização discricionária do ministério da tutela, sem indicação quando aos critérios a observar, abrindo caminho para o casuísmo arbitrário. Terceiro, o diploma atribui-se eficácia retroactiva, indício seguro de que visa cobrir "a posteriori" uma situação-de-facto ilegal, que não se entendeu oportuno revogar.
Tudo indica, portanto, estarmos perante uma "lei ad hoc" para solucionar um problema pontual, o que já de si seria pouco canónico em termos de Estado de Direito. O que, porém, sucede usualmente nestes casos é que essas medidas excepcionais são a fresta por onde se fazem valer outras iniciativas idênticas, que acabam por proliferar. Aliás, por que é que tal benesse há-de ficar confinada a um certo instituto público, ficando vedada aos demais?
Seja como for, a excepção ora aberta não merece aplauso, antes pelo contrário. Primeiro, a disponibilização de creches e jardins infância deve ser um incumbência pública em relação a toda a população, e não apenas em relação aos funcionários públicos, que não carecem propriamente de nenhuma prerrogativa nesta matéria. Segundo, ficando reservada para certos institutos públicos, fica de fora a generalidade dos funcionários públicos, com violação do princípio da igualdade de tratamento e criação de situações de privilégio que nada justifica. Terceiro, a iniciativa em causa vai implicar um aumento de gastos públicos com o pessoal, ao arrepio do esforço de contenção das despesas administrativas. Por último, mas sobretudo, põe-se em causa justamente o espírito da reforma de 2007, no sentido da unificação e da homogeneidade da protecção social na função pública, reintroduzindo o "feudalismo" administrativo que vigorou até há um ano.
A reforma da acção social complementar da função pública é somente uma pequena peça na reforma global da Administração Pública. Mas as contra-reformas costumam escolher justamente os elos mais fracos ou menos expostos, para depois avançar para outros alvos. Reformar é difícil, contra-reformar é fácil. Basta começar...
(Diário Económico, 13 de Agosto de 2008)
Entre as muitas medidas do Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE) de 2006 contou-se a reorganização dos serviços da acção social complementar da Administração Pública, no sentido da sua (tendencial) unificação e homogeneização. Infelizmente, antes de consolidada a reforma, já começou a contra-reforma.
Até à sua revisão legal em 2007, a acção social complementar da Administração Pública era caracterizada pela dispersão orgânica, pela heterogeneidade e pela desigualdade. Mesmo sem considerar os regimes especiais de protecção da saúde e de aposentação (como nas forças armadas e no Ministério da Justiça), havia serviços de acção social privativos em diversos ministérios. As prestações e apoios disponíveis não eram homogéneos, sem nenhum respeito pelo princípio da igualdade de tratamento. Em alguns casos, as regalias incluíam a prestação directa de cuidados de saúde, de creches e infantários, havendo mesmo casos de oferta de supermercados!
O quadro geral era uma espécie de "feudalismo sectorial", em que cada ministério – e, em alguns casos, cada serviço público – se afadigava em proporcionar aos seus funcionários regalias sem paralelo nos restantes, à custa de verbas orçamentais ou de receitas próprias. Se havia uma demonstração da falta de racionalidade na organização administrativa e nos gastos públicos, bem como de captura da Administração pelos interesses dos seus funcionários, a acção social complementar era um caso exemplar.
A referida reforma veio unificar vários dos serviços sociais dispersos, reunindo-os num único serviço – os Serviços Sociais da Administração Pública (SSAP) –, bem como uniformizar tendencialmente os diferentes regimes prestacionais, aproveitando para extinguir várias modalidades sem razão de ser. Entre as actividades findas contaram-se os "equipamentos sociais relativos à educação pré-escolar, creches, residências do ensino superior e postos e centros de saúde", os quais deixaram de integrar o âmbito da acção social complementar.
Eis senão quando, surpreendentemente, um recente diploma legal veio estabelecer que "os institutos públicos podem, (...) mediante autorização prévia dos ministros das Finanças e da tutela, desenvolver iniciativas de acção social complementar relativas a educação pré-escolar e creches (...)".
Trata-se de uma medida estranha a vários títulos. Primeiro, a faculdade de criação de creches ou jardins de infância é autorizada somente em relação aos institutos públicos, excluindo, sem nenhuma explicação, os serviços da administração directa do Estado. Segundo, a criação de tais serviços fica na dependência de autorização discricionária do ministério da tutela, sem indicação quando aos critérios a observar, abrindo caminho para o casuísmo arbitrário. Terceiro, o diploma atribui-se eficácia retroactiva, indício seguro de que visa cobrir "a posteriori" uma situação-de-facto ilegal, que não se entendeu oportuno revogar.
Tudo indica, portanto, estarmos perante uma "lei ad hoc" para solucionar um problema pontual, o que já de si seria pouco canónico em termos de Estado de Direito. O que, porém, sucede usualmente nestes casos é que essas medidas excepcionais são a fresta por onde se fazem valer outras iniciativas idênticas, que acabam por proliferar. Aliás, por que é que tal benesse há-de ficar confinada a um certo instituto público, ficando vedada aos demais?
Seja como for, a excepção ora aberta não merece aplauso, antes pelo contrário. Primeiro, a disponibilização de creches e jardins infância deve ser um incumbência pública em relação a toda a população, e não apenas em relação aos funcionários públicos, que não carecem propriamente de nenhuma prerrogativa nesta matéria. Segundo, ficando reservada para certos institutos públicos, fica de fora a generalidade dos funcionários públicos, com violação do princípio da igualdade de tratamento e criação de situações de privilégio que nada justifica. Terceiro, a iniciativa em causa vai implicar um aumento de gastos públicos com o pessoal, ao arrepio do esforço de contenção das despesas administrativas. Por último, mas sobretudo, põe-se em causa justamente o espírito da reforma de 2007, no sentido da unificação e da homogeneidade da protecção social na função pública, reintroduzindo o "feudalismo" administrativo que vigorou até há um ano.
A reforma da acção social complementar da função pública é somente uma pequena peça na reforma global da Administração Pública. Mas as contra-reformas costumam escolher justamente os elos mais fracos ou menos expostos, para depois avançar para outros alvos. Reformar é difícil, contra-reformar é fácil. Basta começar...
(Diário Económico, 13 de Agosto de 2008)