25 de setembro de 2008
Liberdade de voto "versus" facilidade de voto
Por Vital Moreira
A direita política, com o PSD à cabeça, reagiu veementemente contra a proposta do PS de acabar com o voto por correspondência na votação das eleições parlamentares no estrangeiro. Faz sentido essa oposição?
Ao contrário do que sucede hoje nas demais eleições em que participam os residentes no estrangeiro - ou seja, nas eleições presidenciais e nas europeias -, nas eleições parlamentares, desde sempre, a votação é feita por correspondência nos dois círculos eleitorais do estrangeiro (um na Europa, outro no resto do mundo), recebendo os eleitores inscritos com antecedência os boletins de voto no seu endereço postal.
A primeira razão para abandonar o voto por correspondência nas eleições parlamentares é evidentemente a consistência de soluções, não se compreendendo o dualismo de soluções quanto à mesma questão. A segunda razão é o enorme custo financeiro e administrativo da votação por correspondência, que implica o envio de boletins de voto e de sobrescritos, por correio registado, para todos os eleitores inscritos, muitas dezenas de milhares (mesmo que depois a participação eleitoral se fique por percentagens muito baixas). Mas a principal objecção ao voto por correspondência decorre evidentemente de este não assegurar alguns princípios básicos de qualquer eleição digna desse nome, que são a pessoalidade e o sigilo do voto. De facto, o voto por via postal não garante que a votação seja feita pelo próprio eleitor nem muito menos que o voto seja secreto. A coabitação com outras pessoas, bem como razões familiares ou outras, pode constranger ou inibir a pessoalidade e a liberdade do voto.
Fácil também é perceber, por isso, que o voto por correspondência envolve um risco de fraude eleitoral, se as forças políticas se decidirem a "organizar" a votação dos seus militantes e simpatizantes, recolhendo os boletins de voto e procedendo ao seu preenchimento e envio colectivo. Mesmo que a margem de possível fraude seja em geral despicienda em termos de resultados eleitorais, não deixa de ser comprometedora para a lisura e a genuinidade das eleições.
Em contrapartida, a favor do voto por correspondência perfila-se também um forte argumento, que é o de que ele facilita o exercício do direito de voto, enquanto o voto presencial impossibilitará ou dificultará o voto daqueles eleitores que residem em locais distantes dos consulados e embaixadas, como frequentemente sucede no estrangeiro. A comparação do número de votantes nas eleições parlamentares, onde existe o voto por correspondência, e nas recentes eleições presidenciais, onde a votação no estrangeiro é feita de modo presencial, mostra que a participação eleitoral nas primeiras é consideravelmente mais elevada.
É claro que essa diferença pode ser muito reduzida pela multiplicação das mesas de voto, onde haja concentrações razoáveis de eleitores, bem como pelo prolongamento da votação por vários dias, como propõe em ambos os casos o projecto socialista. Todavia, embora essas medidas possam atenuar a abstenção, dificilmente replicarão inteiramente a facilidade de voto que o voto por correspondência proporciona.
Mas se o aumento da abstenção, já de si elevada, constitui um forte argumento contra o abandono do voto por correspondência, já não se compreende o argumento que a mudança prejudicaria uns partidos (supostamente o PSD) em favor de outros (supostamente o PS), como insinuou explicitamente o primeiro. Sendo evidente que, em condições normais, as preferências eleitorais dos eleitores são proporcionalmente as mesmas, independentemente do modo de votação, então é evidente que uma menor participação eleitoral não vai prejudicar nem beneficiar ninguém, pois o número de deputados é fixo e os mandatos são atribuídos de forma proporcional. O referido argumento torna-se assim pelo menos intrigante, deixando pairar a dúvida sobre que desvantagens é que o PSD teria com o fim do voto por correspondência. Decididamente, há argumentos que comprometem...
Vistos os argumentos, tudo se resume a saber se a vantagem de uma provável maior participação eleitoral deve pesar mais do que as desvantagens do voto postal, designadamente a violação dos princípios da pessoalidade e do sigilo do voto, incluindo o risco de fraude eleitoral. A isso se deveria resumir o debate político sobre o assunto, sendo estranha a súbita paixão posta pelo PSD na oposição à mudança, sobretudo tendo em conta que esse partido aprovou a adopção do voto presencial tanto nas eleições presidenciais como nas eleições europeias.
O zelo do PSD nesta matéria pode, inclusive, criar um sério embaraço ao Presidente da República na hora de decidir sobre a promulgação, ou não, do diploma. De facto, tratando-se de matéria eleitoral, essa lei integra a esfera de matérias sobre as quais o Presidente tem um especial poder de controlo, dado o seu papel de supervisão do funcionamento do sistema político. Não é por acaso que a Constituição inclui as leis eleitorais entre aquelas em que o veto presidencial tem um valor reforçado, só podendo ser superado por uma maioria de 2/3 no Parlamento. Por isso, havendo oposição dos partidos da direita parlamentar, o veto presidencial significaria o chumbo definitivo da lei.
Todavia, essa mesma circunstância pode inibir fortemente o exercício do poder de veto neste caso. Em primeiro lugar, um eventual veto não se afigura de fácil fundamentação, tendo em conta a vulnerabilidade do voto por correspondência aos argumentos de infracção de princípios eleitorais básicos (aliás, com assento constitucional) e do risco de fraude eleitoral. Em segundo lugar, não será propriamente confortável para Belém vetar politicamente uma lei a pedido do PSD (que já o requereu explicitamente), em nome de um suspeitoso argumento sobre uma alegada desvantagem eleitoral que ele sofreria com o fim do voto por correspondência, que ninguém vislumbra onde possa estar.
(Público, terça-feira, 23 de Setembro de 2008)
A direita política, com o PSD à cabeça, reagiu veementemente contra a proposta do PS de acabar com o voto por correspondência na votação das eleições parlamentares no estrangeiro. Faz sentido essa oposição?
Ao contrário do que sucede hoje nas demais eleições em que participam os residentes no estrangeiro - ou seja, nas eleições presidenciais e nas europeias -, nas eleições parlamentares, desde sempre, a votação é feita por correspondência nos dois círculos eleitorais do estrangeiro (um na Europa, outro no resto do mundo), recebendo os eleitores inscritos com antecedência os boletins de voto no seu endereço postal.
A primeira razão para abandonar o voto por correspondência nas eleições parlamentares é evidentemente a consistência de soluções, não se compreendendo o dualismo de soluções quanto à mesma questão. A segunda razão é o enorme custo financeiro e administrativo da votação por correspondência, que implica o envio de boletins de voto e de sobrescritos, por correio registado, para todos os eleitores inscritos, muitas dezenas de milhares (mesmo que depois a participação eleitoral se fique por percentagens muito baixas). Mas a principal objecção ao voto por correspondência decorre evidentemente de este não assegurar alguns princípios básicos de qualquer eleição digna desse nome, que são a pessoalidade e o sigilo do voto. De facto, o voto por via postal não garante que a votação seja feita pelo próprio eleitor nem muito menos que o voto seja secreto. A coabitação com outras pessoas, bem como razões familiares ou outras, pode constranger ou inibir a pessoalidade e a liberdade do voto.
Fácil também é perceber, por isso, que o voto por correspondência envolve um risco de fraude eleitoral, se as forças políticas se decidirem a "organizar" a votação dos seus militantes e simpatizantes, recolhendo os boletins de voto e procedendo ao seu preenchimento e envio colectivo. Mesmo que a margem de possível fraude seja em geral despicienda em termos de resultados eleitorais, não deixa de ser comprometedora para a lisura e a genuinidade das eleições.
Em contrapartida, a favor do voto por correspondência perfila-se também um forte argumento, que é o de que ele facilita o exercício do direito de voto, enquanto o voto presencial impossibilitará ou dificultará o voto daqueles eleitores que residem em locais distantes dos consulados e embaixadas, como frequentemente sucede no estrangeiro. A comparação do número de votantes nas eleições parlamentares, onde existe o voto por correspondência, e nas recentes eleições presidenciais, onde a votação no estrangeiro é feita de modo presencial, mostra que a participação eleitoral nas primeiras é consideravelmente mais elevada.
É claro que essa diferença pode ser muito reduzida pela multiplicação das mesas de voto, onde haja concentrações razoáveis de eleitores, bem como pelo prolongamento da votação por vários dias, como propõe em ambos os casos o projecto socialista. Todavia, embora essas medidas possam atenuar a abstenção, dificilmente replicarão inteiramente a facilidade de voto que o voto por correspondência proporciona.
Mas se o aumento da abstenção, já de si elevada, constitui um forte argumento contra o abandono do voto por correspondência, já não se compreende o argumento que a mudança prejudicaria uns partidos (supostamente o PSD) em favor de outros (supostamente o PS), como insinuou explicitamente o primeiro. Sendo evidente que, em condições normais, as preferências eleitorais dos eleitores são proporcionalmente as mesmas, independentemente do modo de votação, então é evidente que uma menor participação eleitoral não vai prejudicar nem beneficiar ninguém, pois o número de deputados é fixo e os mandatos são atribuídos de forma proporcional. O referido argumento torna-se assim pelo menos intrigante, deixando pairar a dúvida sobre que desvantagens é que o PSD teria com o fim do voto por correspondência. Decididamente, há argumentos que comprometem...
Vistos os argumentos, tudo se resume a saber se a vantagem de uma provável maior participação eleitoral deve pesar mais do que as desvantagens do voto postal, designadamente a violação dos princípios da pessoalidade e do sigilo do voto, incluindo o risco de fraude eleitoral. A isso se deveria resumir o debate político sobre o assunto, sendo estranha a súbita paixão posta pelo PSD na oposição à mudança, sobretudo tendo em conta que esse partido aprovou a adopção do voto presencial tanto nas eleições presidenciais como nas eleições europeias.
O zelo do PSD nesta matéria pode, inclusive, criar um sério embaraço ao Presidente da República na hora de decidir sobre a promulgação, ou não, do diploma. De facto, tratando-se de matéria eleitoral, essa lei integra a esfera de matérias sobre as quais o Presidente tem um especial poder de controlo, dado o seu papel de supervisão do funcionamento do sistema político. Não é por acaso que a Constituição inclui as leis eleitorais entre aquelas em que o veto presidencial tem um valor reforçado, só podendo ser superado por uma maioria de 2/3 no Parlamento. Por isso, havendo oposição dos partidos da direita parlamentar, o veto presidencial significaria o chumbo definitivo da lei.
Todavia, essa mesma circunstância pode inibir fortemente o exercício do poder de veto neste caso. Em primeiro lugar, um eventual veto não se afigura de fácil fundamentação, tendo em conta a vulnerabilidade do voto por correspondência aos argumentos de infracção de princípios eleitorais básicos (aliás, com assento constitucional) e do risco de fraude eleitoral. Em segundo lugar, não será propriamente confortável para Belém vetar politicamente uma lei a pedido do PSD (que já o requereu explicitamente), em nome de um suspeitoso argumento sobre uma alegada desvantagem eleitoral que ele sofreria com o fim do voto por correspondência, que ninguém vislumbra onde possa estar.
(Público, terça-feira, 23 de Setembro de 2008)