24 de setembro de 2008
Novas territorialidades
Por Vital Moreira
Enquanto os assaltos e a "rentrée" pós-estival monopolizam a atenção dos media e dos comentadores, vão passando indevidamente despercebidas importantes reformas políticas, como as novas leis sobre as entidades intermunicipais e sobre as áreas metropolitanas, recentemente publicadas.
Embora o associativismo municipal não seja um fenómeno novo, vindo desde antes de 1974, a nova lei das "comunidades intermunicipais" (CIM) constitui, porém, uma considerável inovação na filosofia intermunicipal, ao estabelecer legalmente um critério territorial para a sua criação, abandonando a geografia variável das entidades intermunicipais que prevaleceu até aqui. Doravante, as entidades intermunicipais correspondem necessariamente à divisão territorial das NUTS III do Continente (excluídas as que integram as duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto), o que confere homogeneidade e consistência territorial à nova geografia intermunicipal. Por vontade dos municípios interessados, as CIM podem abranger mais do que uma dessas unidades territoriais, desde que contíguas e pertencentes à mesma unidade territorial NUTS II (as cinco "regiões-plano").
Embora a criação das CIM não seja obrigatória, os municípios têm todo o interesse na sua formação, não somente para poderem desempenhar em conjunto determinadas tarefas comuns, mas também para poderem participar na gestão dos investimentos do QREN e, por último, para beneficiarem da descentralização de tarefas estaduais que sejam directamente atribuídas às CIM, e não individualmente aos municípios. De facto, desde a revisão constitucional de 1997, é possível confiar tarefas públicas directamente às associações de municípios, e não singularmente aos municípios. Por isso, é de esperar uma cobertura universal das CIM.
No caso das "áreas metropolitanas" (AM), a nova lei regressou (e bem) à ideia de que só há duas regiões metropolitanas (a de Lisboa e a do Porto), abandonando uma das mais infelizes inovações da reforma de 2003, que foi a livre criação de áreas metropolitanas, dependendo somente do número de municípios e da população envolvida, o que levou à proliferação de várias "áreas metropolitanas" fictícias.
Resistindo à demagógica pressão transpartidária para a eleição directa dos órgãos das AM - o que faria delas verdadeiras autarquias supramunicipais -, o Governo conservou-as como uma manifestação específica do fenómeno intermunicipal, sendo os seus órgãos constituídos a partir dos órgãos próprios dos municípios. Frustrou-se assim a deriva autonomista das áreas metropolitanas, que aliás não fazia nenhum sentido, a não ser que se quisesse promover sub-repticiamente a criação de duas autarquias regionais centradas em Lisboa e no Porto, antecipando a regionalização parcial do país, à margem da Constituição e da actual divisão regional do Continente.
Com a presente reforma das entidades intermunicipais, nas suas duas variantes, deu-se um importante passo para a legibilidade e racionalidade da organização administrativa do território, a seguir ao alinhamento da administração territorialmente desconcentrada do Estado com a divisão das NUTS II e das NUTS III, que ocorreu ao longo desta legislatura. Doravante haverá homogeneidade e consistência na divisão territorial, tanto para efeitos da administração periférica do Estado como para efeitos da administração intermunicipal.
Antes de mais, as novas CIM e AM consolidam decididamente a institucionalização das unidades NUTS III, não somente como base da administração territorial do Estado (investimentos do QREN, serviços de saúde, organização judicial, etc.), mas também como substrato territorial da cooperação intermunicipal institucionalizada.
Além disso, essa opção territorial constitui mais um passo a caminho de uma futura regionalização autárquica com base na actual divisão territorial das cinco NUTS II, que pertencem à mesma matriz e filosofia territorial daquelas, visto que umas congregam as outras. Aliás, no caso do Algarve, que compreende uma só unidade NUTS III, coincidente com a NUTS II regional, a respectiva CIM terá poderes legais reforçados, de natureza regional, o que prefigura claramente uma proto-região administrativa, com poderes próprios e órgãos de governo próprios (embora não directamente eleitos, como ocorrerá nas futuras autarquias regionais). De resto, o mesmo pode suceder teoricamente noutras regiões, visto que a lei permite a fusão das várias CIM/NUTS III dentro da mesma NUTS II...
Com esta nova filosofia da administração territorial, torna-se cada mais exótica e bizarra a manutenção dos distritos administrativos. Compreende-se cada vez menos a manutenção de um nível intermédio de administração periférica do Estado entre o nível sub-regional das NUTS III (28 no Continente) e o nível regional das cinco NUTS II. E menos ainda se entende que a divisão distrital seja discrepante com a nova divisão das CIM (NUTS III) e das regiões administrativas (NUTS II), cavalgando as respectivas fronteiras.
Não podendo os distritos ser formalmente extintos, por efeito de um impedimento constitucional, nada obsta porém ao seu tendencial esvaziamento funcional nem muito menos à adaptação da sua divisão territorial, de modo a superar pelo menos a discrepância com os limites das cinco regiões administrativas (NUTS II), o que afecta uma meia dúzia dos actuais 18 distritos do Continente. Doravante, os distritos não são somente testemunho de uma arcaica divisão administrativa do território, mas também uma sobrevivência cada mais exótica e injustificável na nova racionalidade territorial do país.
A extinção administrativa e política dos distritos é a reforma que fica por fazer, e que perde pela demora...
(Público, terça-feira, 2 de Setembro de 2008)
Enquanto os assaltos e a "rentrée" pós-estival monopolizam a atenção dos media e dos comentadores, vão passando indevidamente despercebidas importantes reformas políticas, como as novas leis sobre as entidades intermunicipais e sobre as áreas metropolitanas, recentemente publicadas.
Embora o associativismo municipal não seja um fenómeno novo, vindo desde antes de 1974, a nova lei das "comunidades intermunicipais" (CIM) constitui, porém, uma considerável inovação na filosofia intermunicipal, ao estabelecer legalmente um critério territorial para a sua criação, abandonando a geografia variável das entidades intermunicipais que prevaleceu até aqui. Doravante, as entidades intermunicipais correspondem necessariamente à divisão territorial das NUTS III do Continente (excluídas as que integram as duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto), o que confere homogeneidade e consistência territorial à nova geografia intermunicipal. Por vontade dos municípios interessados, as CIM podem abranger mais do que uma dessas unidades territoriais, desde que contíguas e pertencentes à mesma unidade territorial NUTS II (as cinco "regiões-plano").
Embora a criação das CIM não seja obrigatória, os municípios têm todo o interesse na sua formação, não somente para poderem desempenhar em conjunto determinadas tarefas comuns, mas também para poderem participar na gestão dos investimentos do QREN e, por último, para beneficiarem da descentralização de tarefas estaduais que sejam directamente atribuídas às CIM, e não individualmente aos municípios. De facto, desde a revisão constitucional de 1997, é possível confiar tarefas públicas directamente às associações de municípios, e não singularmente aos municípios. Por isso, é de esperar uma cobertura universal das CIM.
No caso das "áreas metropolitanas" (AM), a nova lei regressou (e bem) à ideia de que só há duas regiões metropolitanas (a de Lisboa e a do Porto), abandonando uma das mais infelizes inovações da reforma de 2003, que foi a livre criação de áreas metropolitanas, dependendo somente do número de municípios e da população envolvida, o que levou à proliferação de várias "áreas metropolitanas" fictícias.
Resistindo à demagógica pressão transpartidária para a eleição directa dos órgãos das AM - o que faria delas verdadeiras autarquias supramunicipais -, o Governo conservou-as como uma manifestação específica do fenómeno intermunicipal, sendo os seus órgãos constituídos a partir dos órgãos próprios dos municípios. Frustrou-se assim a deriva autonomista das áreas metropolitanas, que aliás não fazia nenhum sentido, a não ser que se quisesse promover sub-repticiamente a criação de duas autarquias regionais centradas em Lisboa e no Porto, antecipando a regionalização parcial do país, à margem da Constituição e da actual divisão regional do Continente.
Com a presente reforma das entidades intermunicipais, nas suas duas variantes, deu-se um importante passo para a legibilidade e racionalidade da organização administrativa do território, a seguir ao alinhamento da administração territorialmente desconcentrada do Estado com a divisão das NUTS II e das NUTS III, que ocorreu ao longo desta legislatura. Doravante haverá homogeneidade e consistência na divisão territorial, tanto para efeitos da administração periférica do Estado como para efeitos da administração intermunicipal.
Antes de mais, as novas CIM e AM consolidam decididamente a institucionalização das unidades NUTS III, não somente como base da administração territorial do Estado (investimentos do QREN, serviços de saúde, organização judicial, etc.), mas também como substrato territorial da cooperação intermunicipal institucionalizada.
Além disso, essa opção territorial constitui mais um passo a caminho de uma futura regionalização autárquica com base na actual divisão territorial das cinco NUTS II, que pertencem à mesma matriz e filosofia territorial daquelas, visto que umas congregam as outras. Aliás, no caso do Algarve, que compreende uma só unidade NUTS III, coincidente com a NUTS II regional, a respectiva CIM terá poderes legais reforçados, de natureza regional, o que prefigura claramente uma proto-região administrativa, com poderes próprios e órgãos de governo próprios (embora não directamente eleitos, como ocorrerá nas futuras autarquias regionais). De resto, o mesmo pode suceder teoricamente noutras regiões, visto que a lei permite a fusão das várias CIM/NUTS III dentro da mesma NUTS II...
Com esta nova filosofia da administração territorial, torna-se cada mais exótica e bizarra a manutenção dos distritos administrativos. Compreende-se cada vez menos a manutenção de um nível intermédio de administração periférica do Estado entre o nível sub-regional das NUTS III (28 no Continente) e o nível regional das cinco NUTS II. E menos ainda se entende que a divisão distrital seja discrepante com a nova divisão das CIM (NUTS III) e das regiões administrativas (NUTS II), cavalgando as respectivas fronteiras.
Não podendo os distritos ser formalmente extintos, por efeito de um impedimento constitucional, nada obsta porém ao seu tendencial esvaziamento funcional nem muito menos à adaptação da sua divisão territorial, de modo a superar pelo menos a discrepância com os limites das cinco regiões administrativas (NUTS II), o que afecta uma meia dúzia dos actuais 18 distritos do Continente. Doravante, os distritos não são somente testemunho de uma arcaica divisão administrativa do território, mas também uma sobrevivência cada mais exótica e injustificável na nova racionalidade territorial do país.
A extinção administrativa e política dos distritos é a reforma que fica por fazer, e que perde pela demora...
(Público, terça-feira, 2 de Setembro de 2008)