24 de setembro de 2008
A revolução no ensino
Por Vital Moreira
Na semana passada, um semanário usava a expressão "revolução em marcha" para caracterizar as mudanças em curso no sector da educação desde 2005, especialmente no ensino básico e secundário. Que a "revolução" é real, e começa a produzir resultados, poucos poderão contestar com convicção. Não menos importante, porém, é perceber a sua filosofia e os seus objectivos.
Analisando globalmente as reformas - desde o reordenamento da rede à oferta de novas aprendizagens, desde o plano tecnológico do ensino ao aumento do tempo escolar, desde o estatuto dos professores ao estatuto dos alunos e à acção social escolar, etc. -, há três ideias motrizes que permitem tornar coerente a sua leitura.
A primeira ideia-chave é o novo discurso sobre a escola, como organização e instituição dotada de identidade e de missão própria, de poderes e competências próprios, de governo e de responsabilidade próprios. A escola deixou de ser um mero estabelecimento do Estado prestador de serviços ao público, como os outros, para passar a ser uma instituição com o seu próprio sentido e densidade.
O conceito já vinha de trás, sem porém vingar no terreno. Agora passou a ser realidade.
Para isso contribuíram decididamente o alargamento da autonomia escolar em geral (e em especial da autonomia contratualizada com cada escola) e o novo sistema de autogoverno, que substituiu o anterior modelo de autogestão dos professores por um modelo de governo plural, fazendo intervir como stakeholders não somente os professores mas também os pais e os municípios, em cujas comunidades as escolas se inserem.
Não é por acaso que se institucionalizou e se passou a privilegiar a comunicação directa e interactiva entre o ME e as escolas, através do novo "conselho de escolas", o que lhes confere o estatuto de parceria política na definição e implementação das políticas de ensino, em alternativa aos sindicatos.
A segunda trave mestra da filosofia da "revolução" escolar consistiu na inequívoca centralidade agora conferida aos alunos. Há aqui uma evidente deslocação de um paradigma centrado sobre os professores para uma focagem fortemente apontada sobre os destinatários da acção educativa. O critério supremo da política educativa e da escola passou a ser o "melhor interesse do aluno".
Nada ilustra tão bem esta nova centralidade do aluno do que a noção de "escola a tempo inteiro" e as aulas de substituição, aliás das primeiras medidas a serem tomadas, com sintomática reacção dos sindicatos. Devemos ler ainda nessa mesma perspectiva outras medidas claramente correlacionadas, como o estudo acompanhado, os planos de reinserção escolar, as "aulas de recuperação" para os alunos que não tenham podido frequentar as aulas regulares, a remodelação do chamado "ensino especial", o grande upgrade da acção social escolar, bem como a consideração do aproveitamento dos alunos como elemento de avaliação dos professores, que tanta contestação injusta mereceu.
A terceira ideia motriz da filosofia da reforma do ensino consistiu manifestamente na valorização do desempenho e na ênfase nos resultados, bem como na avaliação de escolas e dos professores em função de um e de outros. Não se trata somente de buscar o necessário retorno do grande investimento público na educação - numa lógica de responsabilidade para com os contribuintes - mas também de melhorar a eficiência educativa, no sentido de tirar o melhor proveito possível dos recursos disponíveis, de modo a obter melhor ensino para mais alunos. Quando se pensa, por exemplo, na escandalosa pobreza de resultados do sistema de ensino especial ao longo dos anos, apesar dos seus elevadíssimos custos, então compreende-se como se podem obter enormes "ganhos de ensino", até com menores custos.
Face à notória discrepância que se verificava entre os elevados gastos do sistema de ensino entre nós e os seus parcos resultados em termos de aprendizagem, importa fazer o melhor de cada euro investido no ensino, valorizar o mérito e premiar o desempenho dos melhores.
Não se trata de "economicismo", como querem alguns críticos mais vocais, mas sim de bom governo das instituições públicas e de elementar responsabilidade democrática no bom uso de recursos públicos.
A "revolução do ensino" não significa somente benefícios para os alunos e para o ensino em geral. Um efeito colateral virtuoso é também a reabilitação da escola pública, como base incontornável do sistema de ensino, desde logo por imposição constitucional.
Ao longo destes 34 anos, desde o 25 de Abril, pareceu por vezes que a escola pública estava a perder importância na hierarquia da política de ensino. O pior inimigo da escola pública era a degradação do parque escolar, o seu atraso tecnológico, o seu funcionamento a tempo parcial, a degradação da sua qualidade média, os altos índices de insucesso e de abandono escolar, a sua captura pelos interesses profissionais dos professores.
Não admira, por isso, que a tendência fosse para a perda relativa da atractividade da escola pública face à escola privada, que a exploração acrítica dos rankings das classificações escolares mais fazia acentuar. Para um crescente número de pessoas, a escola pública deixava de se recomendar.
É incontestável que as coisas estão a mudar também nesse aspecto. Tal como no caso de outros serviços públicos, a reforma tornou-se condição de sustentabilidade e de requalificação da escola pública. Por isso, quem defende a escola pública é quem, através dela, promove o aumento da escolaridade, a universalidade e equidade no acesso, a redução da exclusão e do abandono escolar, o mérito e o prestígio público do corpo docente, o rigor e a qualidade da gestão escolar, a preeminência dos interesses dos alunos, a busca da excelência e da relevância social do seu ensino.
(Publico, terça-feira, 16 de Setembro de 2008)
Na semana passada, um semanário usava a expressão "revolução em marcha" para caracterizar as mudanças em curso no sector da educação desde 2005, especialmente no ensino básico e secundário. Que a "revolução" é real, e começa a produzir resultados, poucos poderão contestar com convicção. Não menos importante, porém, é perceber a sua filosofia e os seus objectivos.
Analisando globalmente as reformas - desde o reordenamento da rede à oferta de novas aprendizagens, desde o plano tecnológico do ensino ao aumento do tempo escolar, desde o estatuto dos professores ao estatuto dos alunos e à acção social escolar, etc. -, há três ideias motrizes que permitem tornar coerente a sua leitura.
A primeira ideia-chave é o novo discurso sobre a escola, como organização e instituição dotada de identidade e de missão própria, de poderes e competências próprios, de governo e de responsabilidade próprios. A escola deixou de ser um mero estabelecimento do Estado prestador de serviços ao público, como os outros, para passar a ser uma instituição com o seu próprio sentido e densidade.
O conceito já vinha de trás, sem porém vingar no terreno. Agora passou a ser realidade.
Para isso contribuíram decididamente o alargamento da autonomia escolar em geral (e em especial da autonomia contratualizada com cada escola) e o novo sistema de autogoverno, que substituiu o anterior modelo de autogestão dos professores por um modelo de governo plural, fazendo intervir como stakeholders não somente os professores mas também os pais e os municípios, em cujas comunidades as escolas se inserem.
Não é por acaso que se institucionalizou e se passou a privilegiar a comunicação directa e interactiva entre o ME e as escolas, através do novo "conselho de escolas", o que lhes confere o estatuto de parceria política na definição e implementação das políticas de ensino, em alternativa aos sindicatos.
A segunda trave mestra da filosofia da "revolução" escolar consistiu na inequívoca centralidade agora conferida aos alunos. Há aqui uma evidente deslocação de um paradigma centrado sobre os professores para uma focagem fortemente apontada sobre os destinatários da acção educativa. O critério supremo da política educativa e da escola passou a ser o "melhor interesse do aluno".
Nada ilustra tão bem esta nova centralidade do aluno do que a noção de "escola a tempo inteiro" e as aulas de substituição, aliás das primeiras medidas a serem tomadas, com sintomática reacção dos sindicatos. Devemos ler ainda nessa mesma perspectiva outras medidas claramente correlacionadas, como o estudo acompanhado, os planos de reinserção escolar, as "aulas de recuperação" para os alunos que não tenham podido frequentar as aulas regulares, a remodelação do chamado "ensino especial", o grande upgrade da acção social escolar, bem como a consideração do aproveitamento dos alunos como elemento de avaliação dos professores, que tanta contestação injusta mereceu.
A terceira ideia motriz da filosofia da reforma do ensino consistiu manifestamente na valorização do desempenho e na ênfase nos resultados, bem como na avaliação de escolas e dos professores em função de um e de outros. Não se trata somente de buscar o necessário retorno do grande investimento público na educação - numa lógica de responsabilidade para com os contribuintes - mas também de melhorar a eficiência educativa, no sentido de tirar o melhor proveito possível dos recursos disponíveis, de modo a obter melhor ensino para mais alunos. Quando se pensa, por exemplo, na escandalosa pobreza de resultados do sistema de ensino especial ao longo dos anos, apesar dos seus elevadíssimos custos, então compreende-se como se podem obter enormes "ganhos de ensino", até com menores custos.
Face à notória discrepância que se verificava entre os elevados gastos do sistema de ensino entre nós e os seus parcos resultados em termos de aprendizagem, importa fazer o melhor de cada euro investido no ensino, valorizar o mérito e premiar o desempenho dos melhores.
Não se trata de "economicismo", como querem alguns críticos mais vocais, mas sim de bom governo das instituições públicas e de elementar responsabilidade democrática no bom uso de recursos públicos.
A "revolução do ensino" não significa somente benefícios para os alunos e para o ensino em geral. Um efeito colateral virtuoso é também a reabilitação da escola pública, como base incontornável do sistema de ensino, desde logo por imposição constitucional.
Ao longo destes 34 anos, desde o 25 de Abril, pareceu por vezes que a escola pública estava a perder importância na hierarquia da política de ensino. O pior inimigo da escola pública era a degradação do parque escolar, o seu atraso tecnológico, o seu funcionamento a tempo parcial, a degradação da sua qualidade média, os altos índices de insucesso e de abandono escolar, a sua captura pelos interesses profissionais dos professores.
Não admira, por isso, que a tendência fosse para a perda relativa da atractividade da escola pública face à escola privada, que a exploração acrítica dos rankings das classificações escolares mais fazia acentuar. Para um crescente número de pessoas, a escola pública deixava de se recomendar.
É incontestável que as coisas estão a mudar também nesse aspecto. Tal como no caso de outros serviços públicos, a reforma tornou-se condição de sustentabilidade e de requalificação da escola pública. Por isso, quem defende a escola pública é quem, através dela, promove o aumento da escolaridade, a universalidade e equidade no acesso, a redução da exclusão e do abandono escolar, o mérito e o prestígio público do corpo docente, o rigor e a qualidade da gestão escolar, a preeminência dos interesses dos alunos, a busca da excelência e da relevância social do seu ensino.
(Publico, terça-feira, 16 de Setembro de 2008)