24 de setembro de 2008
A vitória de Angola
Por Vital Moreira
Com a realização das primeiras eleições parlamentares depois do fim da guerra civil em 2002, Angola pode finalmente retomar e concluir o processo de transição democrática iniciado no princípio dos anos 90 do século passado com as mudanças constitucionais, o acordo de paz e as eleições pluripartidárias de 1992, processo brutalmente interrompido pelo reacendimento da luta armada pela UNITA, depois da sua derrota eleitoral.
Se bem que as deficiências logísticas do processo eleitoral em Luanda tenham manchado a exemplaridade que o Governo pretendia conferir a estas eleições, elas em nada afectaram a liberdade e a lisura do acto eleitoral nem a genuinidade dos resultados, até porque logo rectificadas pelo prolongamento da jornada eleitoral para o dia seguinte. Todo o processo eleitoral, desde o recenseamento eleitoral há alguns meses, passando pela campanha eleitoral, até à votação e apuramento dos resultados, foi objecto de permanente escrutínio público dos partidos da oposição, de ONG nacionais e internacionais e, na sua fase terminal, de missões oficiais da União Africana, da CPLP e da União Europeia. Poucas eleições africanas em ambiente democrático terão sido disputadas com tanta liberdade, pluralismo e transparência como estas eleições angolanas, o que é, desde logo, um triunfo para Angola.
Quanto aos resultados eleitorais, só quem não acompanhe minimamente a situação política em Angola é que pode surpreender-se com a inequívoca vitória do MPLA nestas eleições, se bem que a sua expressão esmagadora, muito maior do que em 1992, tenha ficado além do previsto. É uma vitória tanto mais expressiva quanto se estendeu a todas a províncias, incluindo Cabinda, o que tem especial relevo para a coesão e unidade política nacional angolana. Por sua vez, a UNITA sofreu um desaire eleitoral muito maior do que há 16 anos, tendo mesmo deixado de ser o segundo partido em várias províncias.
Não é difícil perceber por que é que o resultado não poderia ter sido muito diferente, ainda que o MPLA não beneficiasse das vantagens de deter o poder, tanto nas instituições como nos media públicos. A sua vitória deve-se essencialmente tanto às suas próprias forças como às fraquezas da oposição. A favor do MPLA pesou principalmente o facto de ele continuar a ser nacionalmente identificado como o partido da independência nacional e da construção da nação e do Estado, bem como a prosperidade nacional que a riqueza petrolífera e mineral proporcionou desde o fim da guerra civil, permitindo a reconstrução e a modernização do país, bem como um elevado crescimento económico que começa a beneficiar, ainda que de forma incipiente, camadas cada vez mais largas da população. Do lado dos derrotados, especialmente a UNITA, pesou negativamente a sua responsabilidade primordial na segunda guerra civil e na consequente destruição do país, bem como a sua incapacidade para se desligar inteiramente da sua base étnico-regional e de se tornar um partido de expressão nacional, o que, aliado à sua crónica falta de quadros qualificados, lhe retirou credibilidade e atractividade como alternativa de governo.
Estas eleições legislativas não completam o ciclo político que relança a transição democrática em Angola. De facto, tendo o sistema de governo angolano uma forte componente presidencial, as eleições presidenciais, previstas para 2009, não são menos importantes do que as eleições parlamentares, diferentemente do que sucede entre nós e noutros sistemas ditos semipresidencialistas, onde as eleições presidenciais não são muito relevantes para a definição das políticas governamentais.
De resto, com a enorme maioria parlamentar que agora obteve, o MPLA ficou com mãos livres para proceder a uma revisão constitucional imediata, a fim de reconfigurar o sistema de governo, de modo a torná-lo mais assumidamente presidencialista, como preconizam muitos agentes e observadores políticos em Angola. Se tal for o caso, então as eleições presidenciais tornam-se ainda mais importantes do que já são, sendo decisivas para efeitos do governo do país.
Se é lícito tirar ilações das eleições parlamentares, então parece fácil antecipar que o candidato do MPLA ganhará as eleições presidenciais sem grande dificuldade, sobretudo se ele for José Eduardo dos Santos. Aliás, a vitória do MPLA nas eleições parlamentares deveu uma parte da sua grande expressão ao próprio Presidente. Contrariando a ideia dominante na imprensa portuguesa - onde prevalece ainda o ressentimento de algumas "viúvas de Savimbi" -, José Eduardo dos Santos goza de incomparável prestígio e apoio popular, que nenhum outro dirigente político na oposição pode desafiar. Em condições normais, se não havia dúvidas quanto ao desfecho das eleições legislativas, também as pode haver em relação às presidenciais.
Com a concentração do poder político no MPLA, agora reforçado pela sua esmagadora relegitimação eleitoral, mais necessário se torna contrabalançá-lo com instituições e práticas de escrutínio e de moderação política, desde o reforço dos direitos da oposição até à descentralização territorial nos municípios e provinciais, desde a independência do poder judicial até ao pluralismo dos media, incluindo os órgãos de comunicação públicos. Eleições livres e justas são princípio e condição essencial de uma efectiva consolidação democrática, mas não bastam como mecanismos de efectivo e regular controlo do poder. Prouvera que essa preocupação não ficasse de fora da revisão constitucional e das novas leis da reforma política, bem como da prática do próprio poder político.
Com instituições democraticamente legitimadas de forma insofismável e com recursos económicos invejáveis, Angola tem todas as condições para uma bem sucedida consolidação democrática, na base da estabilidade política, da prosperidade económica e de um mínimo de bem-estar para todos os angolanos. Importa não ficar aquém desse objectivo.
(Público, terça-feira, 9 de Setembro de 2008)
Com a realização das primeiras eleições parlamentares depois do fim da guerra civil em 2002, Angola pode finalmente retomar e concluir o processo de transição democrática iniciado no princípio dos anos 90 do século passado com as mudanças constitucionais, o acordo de paz e as eleições pluripartidárias de 1992, processo brutalmente interrompido pelo reacendimento da luta armada pela UNITA, depois da sua derrota eleitoral.
Se bem que as deficiências logísticas do processo eleitoral em Luanda tenham manchado a exemplaridade que o Governo pretendia conferir a estas eleições, elas em nada afectaram a liberdade e a lisura do acto eleitoral nem a genuinidade dos resultados, até porque logo rectificadas pelo prolongamento da jornada eleitoral para o dia seguinte. Todo o processo eleitoral, desde o recenseamento eleitoral há alguns meses, passando pela campanha eleitoral, até à votação e apuramento dos resultados, foi objecto de permanente escrutínio público dos partidos da oposição, de ONG nacionais e internacionais e, na sua fase terminal, de missões oficiais da União Africana, da CPLP e da União Europeia. Poucas eleições africanas em ambiente democrático terão sido disputadas com tanta liberdade, pluralismo e transparência como estas eleições angolanas, o que é, desde logo, um triunfo para Angola.
Quanto aos resultados eleitorais, só quem não acompanhe minimamente a situação política em Angola é que pode surpreender-se com a inequívoca vitória do MPLA nestas eleições, se bem que a sua expressão esmagadora, muito maior do que em 1992, tenha ficado além do previsto. É uma vitória tanto mais expressiva quanto se estendeu a todas a províncias, incluindo Cabinda, o que tem especial relevo para a coesão e unidade política nacional angolana. Por sua vez, a UNITA sofreu um desaire eleitoral muito maior do que há 16 anos, tendo mesmo deixado de ser o segundo partido em várias províncias.
Não é difícil perceber por que é que o resultado não poderia ter sido muito diferente, ainda que o MPLA não beneficiasse das vantagens de deter o poder, tanto nas instituições como nos media públicos. A sua vitória deve-se essencialmente tanto às suas próprias forças como às fraquezas da oposição. A favor do MPLA pesou principalmente o facto de ele continuar a ser nacionalmente identificado como o partido da independência nacional e da construção da nação e do Estado, bem como a prosperidade nacional que a riqueza petrolífera e mineral proporcionou desde o fim da guerra civil, permitindo a reconstrução e a modernização do país, bem como um elevado crescimento económico que começa a beneficiar, ainda que de forma incipiente, camadas cada vez mais largas da população. Do lado dos derrotados, especialmente a UNITA, pesou negativamente a sua responsabilidade primordial na segunda guerra civil e na consequente destruição do país, bem como a sua incapacidade para se desligar inteiramente da sua base étnico-regional e de se tornar um partido de expressão nacional, o que, aliado à sua crónica falta de quadros qualificados, lhe retirou credibilidade e atractividade como alternativa de governo.
Estas eleições legislativas não completam o ciclo político que relança a transição democrática em Angola. De facto, tendo o sistema de governo angolano uma forte componente presidencial, as eleições presidenciais, previstas para 2009, não são menos importantes do que as eleições parlamentares, diferentemente do que sucede entre nós e noutros sistemas ditos semipresidencialistas, onde as eleições presidenciais não são muito relevantes para a definição das políticas governamentais.
De resto, com a enorme maioria parlamentar que agora obteve, o MPLA ficou com mãos livres para proceder a uma revisão constitucional imediata, a fim de reconfigurar o sistema de governo, de modo a torná-lo mais assumidamente presidencialista, como preconizam muitos agentes e observadores políticos em Angola. Se tal for o caso, então as eleições presidenciais tornam-se ainda mais importantes do que já são, sendo decisivas para efeitos do governo do país.
Se é lícito tirar ilações das eleições parlamentares, então parece fácil antecipar que o candidato do MPLA ganhará as eleições presidenciais sem grande dificuldade, sobretudo se ele for José Eduardo dos Santos. Aliás, a vitória do MPLA nas eleições parlamentares deveu uma parte da sua grande expressão ao próprio Presidente. Contrariando a ideia dominante na imprensa portuguesa - onde prevalece ainda o ressentimento de algumas "viúvas de Savimbi" -, José Eduardo dos Santos goza de incomparável prestígio e apoio popular, que nenhum outro dirigente político na oposição pode desafiar. Em condições normais, se não havia dúvidas quanto ao desfecho das eleições legislativas, também as pode haver em relação às presidenciais.
Com a concentração do poder político no MPLA, agora reforçado pela sua esmagadora relegitimação eleitoral, mais necessário se torna contrabalançá-lo com instituições e práticas de escrutínio e de moderação política, desde o reforço dos direitos da oposição até à descentralização territorial nos municípios e provinciais, desde a independência do poder judicial até ao pluralismo dos media, incluindo os órgãos de comunicação públicos. Eleições livres e justas são princípio e condição essencial de uma efectiva consolidação democrática, mas não bastam como mecanismos de efectivo e regular controlo do poder. Prouvera que essa preocupação não ficasse de fora da revisão constitucional e das novas leis da reforma política, bem como da prática do próprio poder político.
Com instituições democraticamente legitimadas de forma insofismável e com recursos económicos invejáveis, Angola tem todas as condições para uma bem sucedida consolidação democrática, na base da estabilidade política, da prosperidade económica e de um mínimo de bem-estar para todos os angolanos. Importa não ficar aquém desse objectivo.
(Público, terça-feira, 9 de Setembro de 2008)