15 de outubro de 2008
Dilemas orçamentais
Por Vital Moreira
Poucas vezes terá sido tão grande como agora a expectativa acerca de um orçamento. Será que, nas actuais condições adversas e incertas, o Governo vai manter galhardamente a rota da redução do défice orçamental? Ou vai antes aproveitar a folga que ganhou na disciplina orçamental dos anos anteriores para aliviar a pressão sobre as finanças públicas?
Antes de mais, este dilema só se coloca porque a crise financeira internacional e a drástica redução do crescimento económico - aliás, com recessão em vários países - "tramaram" as perspectivas estabelecidas em 2005. Não tivessem estas sido abruptamente interrompidas, Sócrates poderia estar a anunciar para 2009 uma redução do défice orçamental ainda maior do que a então prevista, acompanhada de baixa de impostos (incluindo o retorno do IVA para a taxa anterior), aumentos do investimento público e das despesas sociais, tudo isto no quadro de um crescimento económico acima de 2% e de uma baixa do desemprego. Seria uma espécie de marcha triunfal para o final da legislatura.
Mas as coisas são como são, e a última coisa que o Governo se pode permitir seria queixar-se do infortúnio e atirar com a toalha ao chão. Aliás, a fibra de uma liderança política mede-se pela capacidade de responder às adversidades imprevistas. A resposta ao dilema orçamental na actual situação é um desses momentos críticos.
Por um lado, é de afastar a manutenção da meta do défice orçamental prevista no "programa de estabilidade e crescimento" de 2005, que era de apenas 1,5%. Só que a previsão de crescimento económico era de 3%, com o inerente crescimento das receitas fiscais e a diminuição das despesas sociais. Manter esse objectivo, reduzindo o défice em quase um ponto percentual em relação ao corrente ano (défice previsto de 2,2%), quando o crescimento económico (a existir) será muito menor, com as respectivas consequências - menos receita fiscal e mais despesas sociais -, não seria somente incomportável em termos de redução da despesa pública, mas também falho de credibilidade política e financeira. Não havendo nenhuma imposição de cumprimento desse programa de redução do défice, dado que o país já saiu da situação de "défice excessivo", insistir nele seria, aliás, fazer uma política procíclica, reduzindo a despesa pública numa fase de forte arrefecimento económico, quando as boas regras aconselham o contrário.
Por outro lado, porém, dificilmente o Governo pode seguir os conselhos daqueles que recomendam utilizar toda a margem de liberdade que as regras orçamentais da UE proporcionam, deixando o défice subir de novo até perto do limite dos 3%, reduzindo impostos e aumentando a despesa pública, sobretudo em investimento, para contrariar a fase baixa do ciclo económico. Aqui a objecção é sobretudo política. Tendo construído toda a sua imagem política na base da disciplina e consolidação orçamental e da redução do peso da dívida pública, o Governo arriscaria esse capital político se agora voltasse atrás, ainda que com uma boa razão para o fazer. Acresce que, num ano eleitoral, uma opção dessas seria facilmente tomada, mesmo sem razão, como uma manobra eleitoralista a pretexto da crise.
Excluídas essas duas opções extremas, a margem de decisão do Governo limita-se a manter para 2009 aproximadamente o mesmo défice do corrente ano, suspendendo a trajectória da consolidação orçamental, ou, se ainda quiser fazer um brilharete, apontar para um défice ligeiramente inferior, não abandonando completamente o objectivo de redução do défice.
Note-se, porém, que um défice igual ao (ou próximo do) do corrente ano se traduzirá ainda num agravamento das condições orçamentais. Primeiro, por causa do baixo crescimento económico, as receitas fiscais serão inferiores em todos os principais impostos (IVA, IRC e IRS), cuja receita já sofreria a redução derivada da baixa das taxas e do aumento de benefícios fiscais decidida este ano, nomeadamente a redução do IVA para 20%. Segundo, a pressão sobre a despesa vai ser maior, nomeadamente em virtude de maiores transferências sociais (abonos de família, subsídio de desemprego, etc.).
Mas a política orçamental não tem a ver somente com o nível de receitas e despesas. Implica também opções quanto às receitas (política fiscal) e sobretudo quanto às despesas, ou seja, quanto à repartição do bolo orçamental pelos principais capítulos da despesa pública, designadamente os custos do próprio Estado (incluindo as remunerações do pessoal, uma das principais verbas orçamentais), as transferências sociais e os encargos dos serviços públicos prestacionais (saúde e educação) e o investimento público.
Num ano eleitoral, todas estas rubricas vão estar sujeitas a forte pressão para a inflação, a começar pelas reivindicações sindicais em matéria salarial. Mas é evidente que cada ponto percentual de aumento salarial se traduz no corte de vários milhões de euros nas demais despesas públicas. Nada indica que as decisões políticas nestas áreas sejam menos importantes do que a decisão básica sobre o défice orçamental.
Por isso, ao contrário da apreciação de alguns observadores, a previsível revisão da meta do défice orçamental para 2009 pode não trazer nenhuma margem de manobra adicional em relação ao corrente ano. O Governo terá de continuar a apostar, com o mesmo empenho, na eficácia da máquina fiscal e na contenção, rigor e eficiência da despesa pública, não podendo deixar criar a ideia de que desta vez o orçamento não é bem para cumprir ou que haverá maior margem de tolerância no desvio da despesa, porque só se verá depois das eleições.
Chegado a esta altura do campeonato, Sócrates não pode desperdiçar o crédito de competência e rigor financeiro que com tanta autoridade e determinação construiu durante a legislatura. Comparado com esse enorme "activo político", nenhum laxismo orçamental lhe será perdoado.
(Público, 3ª feira, 14 de Outubro de 2008)
Poucas vezes terá sido tão grande como agora a expectativa acerca de um orçamento. Será que, nas actuais condições adversas e incertas, o Governo vai manter galhardamente a rota da redução do défice orçamental? Ou vai antes aproveitar a folga que ganhou na disciplina orçamental dos anos anteriores para aliviar a pressão sobre as finanças públicas?
Antes de mais, este dilema só se coloca porque a crise financeira internacional e a drástica redução do crescimento económico - aliás, com recessão em vários países - "tramaram" as perspectivas estabelecidas em 2005. Não tivessem estas sido abruptamente interrompidas, Sócrates poderia estar a anunciar para 2009 uma redução do défice orçamental ainda maior do que a então prevista, acompanhada de baixa de impostos (incluindo o retorno do IVA para a taxa anterior), aumentos do investimento público e das despesas sociais, tudo isto no quadro de um crescimento económico acima de 2% e de uma baixa do desemprego. Seria uma espécie de marcha triunfal para o final da legislatura.
Mas as coisas são como são, e a última coisa que o Governo se pode permitir seria queixar-se do infortúnio e atirar com a toalha ao chão. Aliás, a fibra de uma liderança política mede-se pela capacidade de responder às adversidades imprevistas. A resposta ao dilema orçamental na actual situação é um desses momentos críticos.
Por um lado, é de afastar a manutenção da meta do défice orçamental prevista no "programa de estabilidade e crescimento" de 2005, que era de apenas 1,5%. Só que a previsão de crescimento económico era de 3%, com o inerente crescimento das receitas fiscais e a diminuição das despesas sociais. Manter esse objectivo, reduzindo o défice em quase um ponto percentual em relação ao corrente ano (défice previsto de 2,2%), quando o crescimento económico (a existir) será muito menor, com as respectivas consequências - menos receita fiscal e mais despesas sociais -, não seria somente incomportável em termos de redução da despesa pública, mas também falho de credibilidade política e financeira. Não havendo nenhuma imposição de cumprimento desse programa de redução do défice, dado que o país já saiu da situação de "défice excessivo", insistir nele seria, aliás, fazer uma política procíclica, reduzindo a despesa pública numa fase de forte arrefecimento económico, quando as boas regras aconselham o contrário.
Por outro lado, porém, dificilmente o Governo pode seguir os conselhos daqueles que recomendam utilizar toda a margem de liberdade que as regras orçamentais da UE proporcionam, deixando o défice subir de novo até perto do limite dos 3%, reduzindo impostos e aumentando a despesa pública, sobretudo em investimento, para contrariar a fase baixa do ciclo económico. Aqui a objecção é sobretudo política. Tendo construído toda a sua imagem política na base da disciplina e consolidação orçamental e da redução do peso da dívida pública, o Governo arriscaria esse capital político se agora voltasse atrás, ainda que com uma boa razão para o fazer. Acresce que, num ano eleitoral, uma opção dessas seria facilmente tomada, mesmo sem razão, como uma manobra eleitoralista a pretexto da crise.
Excluídas essas duas opções extremas, a margem de decisão do Governo limita-se a manter para 2009 aproximadamente o mesmo défice do corrente ano, suspendendo a trajectória da consolidação orçamental, ou, se ainda quiser fazer um brilharete, apontar para um défice ligeiramente inferior, não abandonando completamente o objectivo de redução do défice.
Note-se, porém, que um défice igual ao (ou próximo do) do corrente ano se traduzirá ainda num agravamento das condições orçamentais. Primeiro, por causa do baixo crescimento económico, as receitas fiscais serão inferiores em todos os principais impostos (IVA, IRC e IRS), cuja receita já sofreria a redução derivada da baixa das taxas e do aumento de benefícios fiscais decidida este ano, nomeadamente a redução do IVA para 20%. Segundo, a pressão sobre a despesa vai ser maior, nomeadamente em virtude de maiores transferências sociais (abonos de família, subsídio de desemprego, etc.).
Mas a política orçamental não tem a ver somente com o nível de receitas e despesas. Implica também opções quanto às receitas (política fiscal) e sobretudo quanto às despesas, ou seja, quanto à repartição do bolo orçamental pelos principais capítulos da despesa pública, designadamente os custos do próprio Estado (incluindo as remunerações do pessoal, uma das principais verbas orçamentais), as transferências sociais e os encargos dos serviços públicos prestacionais (saúde e educação) e o investimento público.
Num ano eleitoral, todas estas rubricas vão estar sujeitas a forte pressão para a inflação, a começar pelas reivindicações sindicais em matéria salarial. Mas é evidente que cada ponto percentual de aumento salarial se traduz no corte de vários milhões de euros nas demais despesas públicas. Nada indica que as decisões políticas nestas áreas sejam menos importantes do que a decisão básica sobre o défice orçamental.
Por isso, ao contrário da apreciação de alguns observadores, a previsível revisão da meta do défice orçamental para 2009 pode não trazer nenhuma margem de manobra adicional em relação ao corrente ano. O Governo terá de continuar a apostar, com o mesmo empenho, na eficácia da máquina fiscal e na contenção, rigor e eficiência da despesa pública, não podendo deixar criar a ideia de que desta vez o orçamento não é bem para cumprir ou que haverá maior margem de tolerância no desvio da despesa, porque só se verá depois das eleições.
Chegado a esta altura do campeonato, Sócrates não pode desperdiçar o crédito de competência e rigor financeiro que com tanta autoridade e determinação construiu durante a legislatura. Comparado com esse enorme "activo político", nenhum laxismo orçamental lhe será perdoado.
(Público, 3ª feira, 14 de Outubro de 2008)