9 de outubro de 2008
O fim de uma era
Por Vital Moreira
Perante a grave crise do capitalismo financeiro que assola os Estados Unidos e contamina a Europa, os apóstolos do "mercado livre" e da cruzada contra o Estado e a regulação pública deveriam "meter a viola no saco" e ir pregar para outra freguesia ou carpir mágoas nos túmulos ideológicos de Friedman, Reagan e Thatcher.
A crise é indubitavelmente o produto de uma economia financeira sem freios suficientes, baseada no fomento do crédito hipotecário até aos limites do absurdo, na financeirização geral da economia, em produtos financeiros cada vez mais complexos e opacos, no abuso da missão dos bancos de investimento (especulando com o seu próprio balanço), no alastramento e aprofundamento das "falhas de mercado" típicas, como são a assimetria de informação e o excesso de "alavancagem" das operações financeiras, na globalização das instituições financeiras e dos mercados, tudo isto perante uma cultura hostil à regulação pública em geral, ao alargamento da jurisdição regulatória, à coordenação das autoridades reguladoras nacionais e à criação de instrumento reguladores transnacionais.
É evidente que a crise do capitalismo financeiro não põe em causa a economia de mercado em si mesma, mas não se vê como é que pode manter-se incólume a teologia neoliberal de "mercado-acima-de-tudo", que prevaleceu nos últimos trinta anos no capitalismo anglo-saxónico e que invadiu o resto do mundo, incluindo a tradicional "economia de mercado coordenada" da Europa continental. Há várias lições incontornáveis a tirar das actuais provações.
A primeira lição é, naturalmente, o regresso da regulação e do Estado. O mercado não é um produto espontâneo da economia, muito menos um mecanismo anárquico e auto-sustentado. As falhas de mercado existem, e as falhas de concorrência também. O excesso de mercado e o défice de Estado matam a economia de mercado. Impõe-se o regresso a um paradigma de "economia de mercado regulado", sem a crença salvífica na "mão invisível" nem a fé ingénua na auto-regulação voluntária dos operadores.
Em especial na área dos serviços financeiros, aliás cada vez mais cruciais na economia geral, nada pode ficar como dantes. Há que alargar a regulação a todo a sector (incluindo os bancos de investimento, as agências de "rating" e os analistas financeiros), disciplinar o crédito hipotecário e os seus derivados, reforçar as exigências em matéria de rácios de capital das instituições financeiras, eliminar os "produtos tóxicos", estabelecer restrições ao acesso a produtos de maior risco, expandir as obrigações de informação ao público.
Em segundo lugar, há que assacar responsabilidades a quem toma riscos. O resgate público de instituições financeiras deve servir para salvaguardar os depósitos, os seguros e as pensões, mas não para salvar a aventura dos investidores e accionistas das instituições financeiras pelas perdas incorridas. Não pode continuar a premiar-se o abuso do "risco moral". Os contribuintes não têm de pagar os desvarios dos habituais beneficiários do capitalismo financeiro.
Em terceiro lugar, importa disciplinar o modo de fixação das remunerações e a responsabilidade dos gestores. Não pode continuar a aceitar-se que as remunerações sejam fixadas à margem dos accionistas, com mecanismos que favorecem o êxito de curto prazo e com luxuriantes indemnizações de saída. Se se premeiam os bons resultados, devem penalizar-se os maus. Os gestores não podem continuar a fazer fortunas sobre a ruína das empresas que levaram à falência ou à beira dela.
Em quarto lugar, urge reorganizar as entidades reguladoras, cuja dispersão e desarticulação foi um dos factores de geração e de agravamento da crise nos Estados Unidos. Importa separar e concentrar as funções de regulação prudencial e de regulação comportamental das instituições financeiras, de modo a prevenir falhas de regulação, vencendo a inércia, quando não os "vested interests", do próprio "establishment" regulatório. A inovadora experiência regulatória dos serviços financeiros na Austrália deveria ser estudada e replicada.
Por último, a actual economia financeira sem fronteiras não pode continuar a viver em anomia regulatória, como sempre denunciaram os que cedo alertaram para a necessidade de regular a globalização. No caso da UE em especial, o mercado interno de serviços financeiros e o surgimento de instituições financeiras plurinacionais dificilmente podem conviver com a regulação dispersa a nível nacional. Problemas comuns reclamam respostas comuns. Um mercado único exige um regulador único, ainda que seja pela agregação "federal" das instituições reguladoras nacionais.
O mercado mostrou as suas fraquezas. Cabe aos Estados mostrar a sua força.
(Diário Económico, 4ª feira, 8 de Outubro de 2008)
Perante a grave crise do capitalismo financeiro que assola os Estados Unidos e contamina a Europa, os apóstolos do "mercado livre" e da cruzada contra o Estado e a regulação pública deveriam "meter a viola no saco" e ir pregar para outra freguesia ou carpir mágoas nos túmulos ideológicos de Friedman, Reagan e Thatcher.
A crise é indubitavelmente o produto de uma economia financeira sem freios suficientes, baseada no fomento do crédito hipotecário até aos limites do absurdo, na financeirização geral da economia, em produtos financeiros cada vez mais complexos e opacos, no abuso da missão dos bancos de investimento (especulando com o seu próprio balanço), no alastramento e aprofundamento das "falhas de mercado" típicas, como são a assimetria de informação e o excesso de "alavancagem" das operações financeiras, na globalização das instituições financeiras e dos mercados, tudo isto perante uma cultura hostil à regulação pública em geral, ao alargamento da jurisdição regulatória, à coordenação das autoridades reguladoras nacionais e à criação de instrumento reguladores transnacionais.
É evidente que a crise do capitalismo financeiro não põe em causa a economia de mercado em si mesma, mas não se vê como é que pode manter-se incólume a teologia neoliberal de "mercado-acima-de-tudo", que prevaleceu nos últimos trinta anos no capitalismo anglo-saxónico e que invadiu o resto do mundo, incluindo a tradicional "economia de mercado coordenada" da Europa continental. Há várias lições incontornáveis a tirar das actuais provações.
A primeira lição é, naturalmente, o regresso da regulação e do Estado. O mercado não é um produto espontâneo da economia, muito menos um mecanismo anárquico e auto-sustentado. As falhas de mercado existem, e as falhas de concorrência também. O excesso de mercado e o défice de Estado matam a economia de mercado. Impõe-se o regresso a um paradigma de "economia de mercado regulado", sem a crença salvífica na "mão invisível" nem a fé ingénua na auto-regulação voluntária dos operadores.
Em especial na área dos serviços financeiros, aliás cada vez mais cruciais na economia geral, nada pode ficar como dantes. Há que alargar a regulação a todo a sector (incluindo os bancos de investimento, as agências de "rating" e os analistas financeiros), disciplinar o crédito hipotecário e os seus derivados, reforçar as exigências em matéria de rácios de capital das instituições financeiras, eliminar os "produtos tóxicos", estabelecer restrições ao acesso a produtos de maior risco, expandir as obrigações de informação ao público.
Em segundo lugar, há que assacar responsabilidades a quem toma riscos. O resgate público de instituições financeiras deve servir para salvaguardar os depósitos, os seguros e as pensões, mas não para salvar a aventura dos investidores e accionistas das instituições financeiras pelas perdas incorridas. Não pode continuar a premiar-se o abuso do "risco moral". Os contribuintes não têm de pagar os desvarios dos habituais beneficiários do capitalismo financeiro.
Em terceiro lugar, importa disciplinar o modo de fixação das remunerações e a responsabilidade dos gestores. Não pode continuar a aceitar-se que as remunerações sejam fixadas à margem dos accionistas, com mecanismos que favorecem o êxito de curto prazo e com luxuriantes indemnizações de saída. Se se premeiam os bons resultados, devem penalizar-se os maus. Os gestores não podem continuar a fazer fortunas sobre a ruína das empresas que levaram à falência ou à beira dela.
Em quarto lugar, urge reorganizar as entidades reguladoras, cuja dispersão e desarticulação foi um dos factores de geração e de agravamento da crise nos Estados Unidos. Importa separar e concentrar as funções de regulação prudencial e de regulação comportamental das instituições financeiras, de modo a prevenir falhas de regulação, vencendo a inércia, quando não os "vested interests", do próprio "establishment" regulatório. A inovadora experiência regulatória dos serviços financeiros na Austrália deveria ser estudada e replicada.
Por último, a actual economia financeira sem fronteiras não pode continuar a viver em anomia regulatória, como sempre denunciaram os que cedo alertaram para a necessidade de regular a globalização. No caso da UE em especial, o mercado interno de serviços financeiros e o surgimento de instituições financeiras plurinacionais dificilmente podem conviver com a regulação dispersa a nível nacional. Problemas comuns reclamam respostas comuns. Um mercado único exige um regulador único, ainda que seja pela agregação "federal" das instituições reguladoras nacionais.
O mercado mostrou as suas fraquezas. Cabe aos Estados mostrar a sua força.
(Diário Económico, 4ª feira, 8 de Outubro de 2008)