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31 de dezembro de 2008

A contra-reforma 

Por Vital Moreira

Quando, em Fevereiro deste ano, foi publicada essa peça essencial da reforma administrativa que é a nova "lei da vinculação, carreiras e remunerações" do pessoal da Administração Pública (conhecida correntemente pela sigla LVCR) punha-se fim à enorme confusão e inconsistência que caracterizava as relações de emprego público entre nós.

Essa situação vinha desde os anos 80 do século passado, quando se iniciou a adopção do contrato individual de trabalho no sector público administrativo (SPA), como forma de fuga da rigidez do tradicional regime da função pública. Nos anos 90, o contrato de trabalho tornou-se cada vez mais frequente na administração indirecta do Estado, ou seja, em muitos dos institutos públicos que por essa altura proliferavam. Essa "fuga da Administração para o direito privado" atingiu o auge em 2004, com a lei-quadro dos institutos públicos, que definiu o contrato de trabalho como forma normal de vínculo laboral do seu pessoal, e com a lei do contrato de trabalho na Administração, que veio permitir a adopção do contrato de trabalho na administração em geral, embora com várias excepções e adaptações.

Passou então a haver um dualismo estrutural no regime de emprego público, sem nenhum critério perceptível quanto à preferência por um ou por outro. Dado que a lei não obrigava os que eram funcionários públicos a mudarem o seu vínculo, era muito frequente a coabitação dos dois regimes de pessoal na mesma entidade ou serviço administrativo, uns com o regime da função pública, outros com o regime do Código do Trabalho, ainda que com as adaptações que a legislação de 2004 introduziu na sua aplicação na Administração pública. Se a isso juntarmos os "contratos administrativos de provimento" e os contratos de trabalho a prazo, que já vinham de trás, bem como o generalizado abuso de contratos de tarefa e de avença, teremos desenhado o confuso quadro jurídico a que a LVCR veio pôr ordem.

Essa lei substituiu os vários regimes preexistentes por um novo regime jurídico específico, o "contrato de trabalho em funções públicas" (CTFP), o qual, apesar da forma contratual, não se equipara ao contrato de trabalho do sector privado, por ser um contrato administrativo. Só ficou de fora desta nova figura o pessoal das Forças Armadas, das forças de segurança e de inspecção, o qual manteve o regime de nomeação, semelhante ao tradicional regime da função pública.

Com essa reforma fundamental punha-se cobro à deriva jurídico-privatista no que se refere ao regime do pessoal da Administração, que regressou ao Direito público, sem prescindir porém da ideia de contratação individual e colectiva, que é inerente a todas as formas de contrato de trabalho. Procedendo desta vez à conversão automática de todos os anteriores vínculos, a LVCR veio dar nova unidade e coerência à disciplina jurídica de emprego na Administração Pública.

Eis senão quando, sem nenhuma explicação pública, a proposta de Lei do orçamento para 2009 veio dar a primeira machadada na referida reforma, ao excluir do regime do CTFP o pessoal das "entidades reguladoras independentes", mantendo para elas o contrato de trabalho do sector privado, ainda que com algumas especificidades oriundas daquele. Também foi excluída a aplicação directa do sistema de avaliação da Administração Pública (SIADAP), o qual sofre diversas adaptações em relação àquelas entidades.

Para além da censurável utilização da Lei do orçamento para derrogar as leis básicas do novo regime do emprego público, em vez de uma lei autónoma, importa assinalar que não resulta sequer claro se ao menos o recrutamento do pessoal dessas entidades fica sujeito a um efectivo mecanismo concursal – que a própria lei de 2004 já impunha para todos os contratos de trabalho na Administração pública –, de forma a garantir a objectividade, a igualdade de oportunidades e a imparcialidade, tal como impõem os princípios constitucionais da Administração.

Não é difícil adivinhar os interesses que justificaram esta importante derrogação do regime de emprego na Administração Pública, designadamente no caso do Banco de Portugal (cuja principal função, porém, não é a actividade reguladora...). O que se deve questionar é se aquelas entidades têm tanta especificidade em relação a outras entidades públicas, incluindo outras entidades reguladoras e outras "entidades administrativas independentes", que possa fundamentar um tal regime de excepção e uma tal quebra da unidade do regime de emprego na Administração pública, de que elas fazem parte integrante.

Seja como for, é de temer que este seja apenas o começo da desintegração do novo regime do emprego público, tão laboriosamente alcançado. As contra-reformas começam assim, inadvertidamente.

(Diário Económico, 4ª feira, 3 de Dezembro de 2008)

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