<$BlogRSDUrl$>

31 de dezembro de 2008

Mais defeitos do que virtudes 

Por Vital Moreira

Há ideias muito atraentes à primeira vista, como sucede com a do "voto preferencial", incluída na recente proposta de reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República, de André Freire e seus colaboradores. Mas a sua fácil atractividade não basta para a tornar virtuosa.

Segundo essa proposta, além de poderem votar no partido da sua preferência, como hoje sucede, os eleitores também passariam a poder votar num dos candidatos das listas partidárias. É o sistema chamado de "listas fechadas mas não bloqueadas". Para esse efeito, os boletins de voto passariam a inserir não somente a lista dos partidos concorrentes, como hoje acontece, mas também a lista nominal dos candidatos de cada partido, de modo a possibilitar a escolha individual dos candidatos pelos eleitores.

Os eleitores passariam a ter efectivamente dois votos, um no partido da sua escolha e outro no candidato da sua preferência, de entre os apresentados por esse partido. Desse modo, os deputados eleitos por cada partido não seriam necessariamente os primeiros nomes da lista partidária, mas sim os nomes mais votados individualmente pelos eleitores, desde que esses votos ultrapassem uma determinada percentagem do total dos votantes no respectivo partido ou seus candidatos (7% na solução proposta).

A favor dessa solução podem invocar-se vários argumentos, desde o reforço do poder dos eleitores, passando pela "personalização do voto", até à diminuição do "monopólio político" dos partidos, tudo alegadamente em prol da revitalização da democracia.

Sem questionar tais argumentos, são porém vários e decisivos os argumentos contrários a essa solução. Vejamos os principais.

Para começar, o voto preferencial implicaria uma mudança substancial de filosofia da representação política no nosso sistema político-constitucional, assente no voto em partidos. Se as eleições são obrigatoriamente mediadas pelos partidos políticos e se a razão de ser das eleições num sistema de base parlamentar consiste na escolha do governo, então é lógico que deva caber aos próprios partidos, sobre quem impende a legitimidade e a responsabilidade político-partidária, o direito de escolher quem melhor os representa e defende as suas posições no Parlamento. O voto preferencial introduziria um dualismo entre os deputados eleitos nominalmente e os deputados eleitos por via do voto partidário.

A segunda objecção é de natureza procedimental, dado que o voto preferencial tornaria mais complexa a votação, obrigando à inclusão dos nomes de todos os candidatos no boletim de voto (que podem ser muitas dezenas...). Além disso, o voto preferencial excluiria tendencialmente os iletrados, o que numa sociedade como a nossa deixaria de fora uma sensível percentagem de cidadãos mais idosos. Ora, entre os valores mais estimáveis de um sistema eleitoral contam-se a facilidade da votação e a igualdade dos eleitores.

A terceira objecção decorre do escasso uso que o voto preferencial muito provavelmente teria. Sendo certo que a maior parte dos eleitores vota num partido ou num candidato a primeiro-ministro, sem nenhuma consideração pelos candidatos constantes das listas, é de prever que o número de votos preferenciais, à revelia da ordenação da lista partidária, fosse muito reduzido. E então, de duas uma: ou se exige que as preferências sejam maioritárias, para serem eficazes -, e então elas serão irrelevantes na maior parte dos casos, frustrando as expectativas criadas; ou se considera suficiente uma baixa percentagem de preferências (como é o caso da proposta acima referida) -, e então cai-se na solução nada democrática de atribuir mais peso ao voto nominal de uma minoria de eleitores do que à maioria dos eleitores que votaram no partido, concordando implicitamente com a ordenação dos candidatos constante da lista partidária.

O principal argumento contra o voto nominal resulta, porém, dos seus enormes riscos para a coesão e a disciplina partidária. Se a eleição dos deputados dependesse das preferências nominais dos eleitores, a consequência seria a competição entre os candidatos de cada lista pelo maior número de votos preferenciais. Em vez da campanha eleitoral pelo partido comum, o que passaria a sobressair seriam as campanhas individuais de cada candidato, na luta pela conquista de apoios, incluindo iniciativas, cartazes e consignas próprias, que tenderiam a encontrar os seus próprios meios de organização e de financiamento.

É fácil imaginar o potencial disruptor da competição intrapartidária nas eleições. Cada facção ou orientação partidária organizar-se-ia para apoiar os "seus candidatos". As eleições parlamentares seriam também (quiçá sobretudo) disputas internas aos partidos. Surgiriam também os candidatos de interesses sectoriais, desde os candidatos locais aos candidatos de grupos de interesse mais influentes. A organização de "sindicatos de voto" mais ou menos ostensivos não pode ser descartada.

Os riscos do voto preferencial para a unidade e disciplina dos partidos são conhecidos desde há muito. Num estudo clássico de 1985 sobre o assunto, Joseph S. Katz considerou o voto preferencial um "poderoso incentivo à desunião partidária", quer durante o processo eleitoral, quer depois, no parlamento. Como ele mostrou, a competição intrapartidária "subverte a unidade partidária de duas maneiras". "Primeiro, como os candidatos eleitos não devem a sua eleição somente ao partido, eles têm menos razão para lhe serem leais depois de eleitos. (...) Segundo, ao construírem uma base de campanha independente, os candidatos incorrerão em dívidas, farão compromissos e desenvolverão lealdades diferentes dos de outros candidatos do mesmo partido."

Em suma, o voto preferencial poderia bem ser uma receita para a fragmentação e para a indisciplina partidária, ou seja, para a instabilidade parlamentar e governamental. Não se vê a quem é que isso aproveitaria.

(Público, terça-feira, 23 de Dezembro de 2008)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?