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30 de dezembro de 2008

Manobras militares 

Por Vital Moreira

Que grupos de militares aproveitem o ano eleitoral que se aproxima para tentar fazer passar as suas reivindicações profissionais, não é nada de surpreendente nem sequer de condenável. Mas já é inadmissível que façam pairar deliberadamente a ameaça de "actos de desespero", que em quaisquer circunstâncias seriam sempre intoleráveis. E é ainda mais lamentável que militares prestigiados como Loureiro dos Santos ou Vasco Lourenço, ainda que fora do activo, se permitam implicitamente coonestar ou justificar tais acções, em vez de as condenar sem condições.

Insistamos no óbvio. Por mais razão que possam ter nas suas queixas e reivindicações - e isso está sujeito a demonstração -, nunca tal poderia desculpar, muito menos legitimar, qualquer acto de indisciplina nem, por maioria de razão, qualquer amotinação ou "quartelada". Numa democracia constitucional como a nossa, os militares gozam do direito de petição e de representação individual ou colectiva, através das respectivas associações profissionais. As "vias de facto", essas não podem deixar de estar liminarmente vedadas aos militares.

Num Estado democrático, as Forças Armadas obedecem a um rigoroso princípio de hierarquia e de disciplina. A resposta à indisciplina militar não pode ser a compreensão ou a complacência, mas sim o Regulamento de Disciplina Militar e, sendo caso disso, o Código de Justiça Militar. A indisciplina militar constitui uma negação qualificada do dever de subordinação. E a sua impunidade significa o fim da hierarquia e da funcionalidade das Forças Armadas, bem como da estabilidade política do país. Não deveria haver dúvidas sobre isso, incumbindo às chefias militares o estrito dever de as afastar, caso se manifestem.

Não deixa, aliás, de ser estranho o silêncio do poder político, bem como dos partidos políticos, sobre este grave episódio, ressalvada a crítica do ministro da Defesa sobre a "politização" das queixas militares. Mas essa denúncia não veio acompanhada da necessária recusa liminar de qualquer chantagem militar sobre o poder político, nem do compromisso solene de que nenhuma indisciplina será tolerada nem ficará impune. Também não se conhece nenhuma tomada de posição do Presidente da República, por vezes tão loquaz noutras matérias, ele que é guardião das instituições republicanas e, além disso, comandante supremo das Forças Armadas, sendo consequentemente também o garante da disciplina e da autoridade nas Forças Armadas. E os partidos políticos, será que trocaram as suas responsabilidades públicas pelo oportunismo eleitoral, se não pela instrumentalização política das reivindicações corporativas da tropa?

Quanto à substância das suas reivindicações profissionais, não terão os militares razão de queixa?
No que respeita às remunerações, ninguém pode contestar que os constrangimentos e os riscos próprios da vida militar devem ter adequada compensação, mais elevada do que a de outras funções públicas sem exigências dessa natureza. Mas é bom lembrar que já existe um adicional remuneratório, a título de compensação da condição militar, e que as missões no estrangeiro beneficiam de especiais condições remuneratórias, que estão longe de poder ser consideradas despiciendas. Além disso, os militares gozam de um subsistema de saúde idêntico à ADSE - regalia de que não gozam os cidadãos em geral - e dispõem de hospitais privativos.

Sem contar com outras regalias excepcionais, como o fundo de pensões co-alimentado pelo erário público, a situação dos militares está longe de poder ser considerada como "desesperada", como pretendem os dirigentes associativos, o que só pode ser tomado como hipérbole de mau gosto, quando a crise económica faz crescer o desemprego entre nós e há quem conteste o aumento do salário mínimo para 450 euros. Haja um pouco de decência nas queixas das supostas privações e carências próprias, ignorando as desgraças alheias...

É evidente que, excluído o retorno às injustificáveis situações de privilégio anteriores em matéria de saúde e de reforma - que foram extintas, com toda a razão, no início da actual legislatura, até por serem financeiramente incomportáveis -, não é de afastar a melhoria relativa da condição remuneratória dos militares. Mas, se os gastos com pessoal já representam mais de 50 por cento do orçamento da defesa, essa majoração depende sempre de uma avaliação global sobre o risco de excessivas assimetrias remuneratórias e sobre as possibilidades orçamentais do país, a qual só pode competir ao poder político.

Ora, a este respeito, o mínimo que se pode dizer é que, comparativamente com outros países, Portugal gasta demasiado com a defesa (em termos de percentagem do PIB e da despesa pública). Para se poder pensar em remunerar melhor os militares, torna-se desde logo necessário racionalizar as Forças Armadas. Temos quartéis a mais, instalações a mais, serviços a mais, escolas militares a mais, hospitais militares a mais, tropas a mais e generais a mais (mais de uma centena!). Até continua a existir um exótico Colégio Militar, à margem da rede oficial do ensino básico e secundário, como resquício de um antigo privilégio corporativo, que hoje nada justifica. Para complicar ainda mais as finanças militares, achou-se por bem sobrecarregar o orçamento da defesa, por muitos anos, com a luxuriante aquisição dos submarinos, cortesia da troika Barroso, Portas e Ferreira Leite.

Para cumprir as suas missões constitucionais de defesa nacional, bem como os seus compromissos internacionais no âmbito da NATO e da UE, Portugal não necessita de Forças Armadas sobredimensionadas, mas sim de Forças Armadas à medida das capacidades do país, pequenas, modernas, profissionalizadas, bem equipadas e eficientes. Seria bom que, a par das suas reivindicações profissionais, os activistas militares pensassem também no país e contribuíssem para a necessária reforma das Forças Armadas.

(Público, terça-feira, 4 de Novembro de 2008)

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