30 de dezembro de 2008
O teste democrático
Por Vital Moreira
Se existe um teste de democracia liberal, ele passa pela garantia e respeito dos direitos parlamentares da oposição, a começar pela liberdade de expressão. Sem eles pode haver "governo da maioria", mas não uma democracia. O que se passou na Assembleia Regional da Madeira na semana passada revela que o sistema político madeirense fica muito longe de passar esse teste democrático.
Independentemente da censurável conduta do deputado do PND na Assembleia Regional da Madeira - que aliás não destoa de outras condutas insultuosas de deputados da maioria do PSD e do próprio presidente do governo regional -, a decisão sumária de o suspender do exercício do mandato sem qualquer processo e de o impedir fisicamente de participar nos trabalhos parlamentares testemunha mais uma vez os desmandos antidemocráticos da maioria "jardinista".
As opiniões dos deputados não podem ser punidas "disciplinarmente" com a suspensão do mandato, a qual só pode ser decidida com base em processo penal, nos termos constitucionais e legais. Ora, os deputados não respondem penalmente pelas posições defendidas no exercício das suas funções parlamentares, não havendo "delitos de opinião" na cena parlamentar. Mercê das imunidades parlamentares, os debates parlamentares estão fora da alçada do Código Penal, sendo evidente que as liberdades parlamentares estariam seriamente ameaçadas no dia em que os deputados pudessem ser criminalmente perseguidos pela sua liberdade de expressão parlamentar.
Mas como o abismo atrai o abismo, depois dessa aleivosia da maioria parlamentar regional, o presidente do parlamento regional decidiu mandar barrar pela força a entrada do deputado ilegalmente punido nas instalações do parlamento regional, impedindo-o de participar nos trabalhos parlamentares. E, como se isso não bastasse, a maioria "jardinista" culminou a sua vertigem autoritária aprovando a suspensão dos trabalhos da própria assembleia regional, a pretexto de queixas-crime desencadeadas contra o "deputado prevaricador".
Ora, se há matéria criminal em todo este lamentável processo, ela está na atrabiliária decisão de impedir pela força um deputado de exercer o seu mandato. Na verdade, a lei dos "crimes de responsabilidade" política estatui uma pena de prisão de seis meses a três anos para quem impedir o exercício do mandato parlamentar regional. Por isso, é o próprio presidente da Assembleia Regional da Madeira que incorreu num acto criminoso, arriscando-se a sair "tosquiado" desta inacreditável endrómina.
Mais importante, porém, do que a responsabilidade penal envolvida, o que esta prepotência da maioria revela é a sua total falta de "chá democrático" e de respeito pelos mais elementares direitos da oposição. O facto de tais episódios sucederem na Madeira e não no parlamento nacional nem no parlamento regional dos Açores deve-se ao facto de que naquela região autónoma haver há décadas uma maioria monopartidária habituada a fazer sempre prevalecer a sua vontade, nunca tendo admitido que o seu poder não é absoluto e que tem de conviver com os direitos parlamentares da oposição, incluindo a imunidade penal pelas opiniões defendidas. Basta comparar os direitos dos partidos e dos deputados da oposição no parlamento regional da Madeira e na Assembleia da República, para verificar a enorme diferença entre ambas.
Esta ostentatória exibição de "ditadura da maioria" na própria esfera parlamentar mostra que foi precipitado o abandono da noção de "défice democrático" na Madeira e que se iludiram os que pensaram que tal situação poderia desaparecer com o tempo. Mas, em vez de diminuir, o abuso do poder continua a ser a imagem de marca do império de Alberto João Jardim.
Lamentavelmente, este ominosa demonstração de prepotência política no seio da instituição parlamentar regional não suscitou a nível nacional a condenação geral que a gravidade dos factos impunha.
Como é usual, o PSD nacional e a sua liderança primaram mais uma vez pelo silêncio perante mais este grave atentado às regras democráticas na Madeira. Só que, desta vez, o silêncio só pode valer como cumplicidade. Quem, sem nenhum fundamento, inventou o conceito de "claustrofobia democrática" no continente (onde a maioria socialista ampliou os direitos parlamentares da oposição...) não pode agora fingir que nada se passa nesta cabal demonstração de verdadeira asfixia democrática na Madeira. A solidariedade partidária não pode servir de justificação para deixar de censurar os comprometedores acontecimentos, antes tentando desculpá-los.
Quanto ao Presidente da República - que as últimas revisões constitucionais erigiram também em principal responsável pelo regular funcionamento das instituições autonómicas, embora por interposto representante especial nas ilhas -, também não deixa de ser intrigante a sua discrição. Não podem certamente sobrar nenhumas dúvidas de que directa ou indirectamente Cavaco Silva trabalhou decididamente para pôr ordem na situação e levar ao recuo do PSD madeirense. Mas teria sido tranquilizador que o Presidente tivesse podido comunicar explicitamente ao país a sua condenação da postergação dos direitos da oposição parlamentar na Madeira.
O silêncio presidencial é, de resto, tão inesperado quanto assimétrico, dada a prontidão e frequência com que se tem pronunciado sobre as mais controversas questões políticas a nível nacional, mesmo que por vezes sem a importância necessária para justificar o desvelo de Belém. Poderá haver algo mais grave do que fazer calar a voz das oposições no próprio quadro parlamentar?
(Publico, terça-feira, 11 de Novembro de 2008)
Se existe um teste de democracia liberal, ele passa pela garantia e respeito dos direitos parlamentares da oposição, a começar pela liberdade de expressão. Sem eles pode haver "governo da maioria", mas não uma democracia. O que se passou na Assembleia Regional da Madeira na semana passada revela que o sistema político madeirense fica muito longe de passar esse teste democrático.
Independentemente da censurável conduta do deputado do PND na Assembleia Regional da Madeira - que aliás não destoa de outras condutas insultuosas de deputados da maioria do PSD e do próprio presidente do governo regional -, a decisão sumária de o suspender do exercício do mandato sem qualquer processo e de o impedir fisicamente de participar nos trabalhos parlamentares testemunha mais uma vez os desmandos antidemocráticos da maioria "jardinista".
As opiniões dos deputados não podem ser punidas "disciplinarmente" com a suspensão do mandato, a qual só pode ser decidida com base em processo penal, nos termos constitucionais e legais. Ora, os deputados não respondem penalmente pelas posições defendidas no exercício das suas funções parlamentares, não havendo "delitos de opinião" na cena parlamentar. Mercê das imunidades parlamentares, os debates parlamentares estão fora da alçada do Código Penal, sendo evidente que as liberdades parlamentares estariam seriamente ameaçadas no dia em que os deputados pudessem ser criminalmente perseguidos pela sua liberdade de expressão parlamentar.
Mas como o abismo atrai o abismo, depois dessa aleivosia da maioria parlamentar regional, o presidente do parlamento regional decidiu mandar barrar pela força a entrada do deputado ilegalmente punido nas instalações do parlamento regional, impedindo-o de participar nos trabalhos parlamentares. E, como se isso não bastasse, a maioria "jardinista" culminou a sua vertigem autoritária aprovando a suspensão dos trabalhos da própria assembleia regional, a pretexto de queixas-crime desencadeadas contra o "deputado prevaricador".
Ora, se há matéria criminal em todo este lamentável processo, ela está na atrabiliária decisão de impedir pela força um deputado de exercer o seu mandato. Na verdade, a lei dos "crimes de responsabilidade" política estatui uma pena de prisão de seis meses a três anos para quem impedir o exercício do mandato parlamentar regional. Por isso, é o próprio presidente da Assembleia Regional da Madeira que incorreu num acto criminoso, arriscando-se a sair "tosquiado" desta inacreditável endrómina.
Mais importante, porém, do que a responsabilidade penal envolvida, o que esta prepotência da maioria revela é a sua total falta de "chá democrático" e de respeito pelos mais elementares direitos da oposição. O facto de tais episódios sucederem na Madeira e não no parlamento nacional nem no parlamento regional dos Açores deve-se ao facto de que naquela região autónoma haver há décadas uma maioria monopartidária habituada a fazer sempre prevalecer a sua vontade, nunca tendo admitido que o seu poder não é absoluto e que tem de conviver com os direitos parlamentares da oposição, incluindo a imunidade penal pelas opiniões defendidas. Basta comparar os direitos dos partidos e dos deputados da oposição no parlamento regional da Madeira e na Assembleia da República, para verificar a enorme diferença entre ambas.
Esta ostentatória exibição de "ditadura da maioria" na própria esfera parlamentar mostra que foi precipitado o abandono da noção de "défice democrático" na Madeira e que se iludiram os que pensaram que tal situação poderia desaparecer com o tempo. Mas, em vez de diminuir, o abuso do poder continua a ser a imagem de marca do império de Alberto João Jardim.
Lamentavelmente, este ominosa demonstração de prepotência política no seio da instituição parlamentar regional não suscitou a nível nacional a condenação geral que a gravidade dos factos impunha.
Como é usual, o PSD nacional e a sua liderança primaram mais uma vez pelo silêncio perante mais este grave atentado às regras democráticas na Madeira. Só que, desta vez, o silêncio só pode valer como cumplicidade. Quem, sem nenhum fundamento, inventou o conceito de "claustrofobia democrática" no continente (onde a maioria socialista ampliou os direitos parlamentares da oposição...) não pode agora fingir que nada se passa nesta cabal demonstração de verdadeira asfixia democrática na Madeira. A solidariedade partidária não pode servir de justificação para deixar de censurar os comprometedores acontecimentos, antes tentando desculpá-los.
Quanto ao Presidente da República - que as últimas revisões constitucionais erigiram também em principal responsável pelo regular funcionamento das instituições autonómicas, embora por interposto representante especial nas ilhas -, também não deixa de ser intrigante a sua discrição. Não podem certamente sobrar nenhumas dúvidas de que directa ou indirectamente Cavaco Silva trabalhou decididamente para pôr ordem na situação e levar ao recuo do PSD madeirense. Mas teria sido tranquilizador que o Presidente tivesse podido comunicar explicitamente ao país a sua condenação da postergação dos direitos da oposição parlamentar na Madeira.
O silêncio presidencial é, de resto, tão inesperado quanto assimétrico, dada a prontidão e frequência com que se tem pronunciado sobre as mais controversas questões políticas a nível nacional, mesmo que por vezes sem a importância necessária para justificar o desvelo de Belém. Poderá haver algo mais grave do que fazer calar a voz das oposições no próprio quadro parlamentar?
(Publico, terça-feira, 11 de Novembro de 2008)