30 de dezembro de 2008
Quando a ortodoxia rende
Por Vital Moreira
Se havia algumas veleidades sobre a viabilidade de próximos entendimentos políticos à esquerda, o congresso do PCP dissipou-as. Pelo contrário, houve a deliberada preocupação de hostilidade militante face às demais forças de esquerda, em especial contra o PS. Forte na sua resistência ao declínio político por que passaram nas últimas décadas quase todos os partidos comunistas por esse mundo fora, o PCP faz gala da sua excepcionalidade, acentuando a ortodoxia doutrinária, a intransigência dogmática e o sectarismo político.
Não deixa de ser surpreendente, dez anos depois do soçobrar do comunismo soviético, uma tão grande afirmação de fé nos dogmas do "marxismo-leninismo" e nas virtudes do "socialismo real", lá onde ele persiste. O PCP não renuncia nem cede em nenhum dos temas centrais da doutrina que Lenine elaborou para a revolução russa e para o "socialismo soviético". Recusando-se a ver na queda do Muro de Berlim mais do que um triunfo da "contra-revolução imperialista", o PCP revela-se como uma espécie de abencerragem da grande desilusão do século XX, que a implosão da União Soviética há 20 anos encerrou.
No entanto, ao invocar como testemunhos do futuro da humanidade os diversos resquícios do comunismo histórico, como a Coreia do Norte ou o Vietname, a China ou Cuba - cujo único traço comum é o poder absoluto dos respectivos partidos comunistas -, o PCP revela um notável pragmatismo, visto que consegue vislumbrar radiosas perspectivas lá onde, como na China e no Vietname, está em curso um acelerado processo de restauração capitalista, ou onde, como em Cuba e na Coreia do Norte, os regimes comunistas agonizam numa triste decadência.
Por mais que o PCP proclame que tais experiências não são modelos para Portugal - o que de resto também disse frequentemente do modelo soviético, cuja queda nunca deixou de lamentar -, a verdade é que continua a manter um misterioso silêncio sobre as diferenças, tanto quanto ao modelo como quanto aos meios para o realizar. E o simples facto de achar tais países politicamente recomendáveis mostra até que ponto o partido se mantém fiel ao programa marxista-leninista, cuja linguagem e mitologia, aliás, fez questão de acentuar neste congresso.
O mesmo sucede, aliás, com outro dos dogmas doutrinários do leninismo, a saber, o "centralismo democrático", no que respeita à organização e funcionamento do partido, que não passa de uma receita para o controlo hierárquico do partido pela direcção autonomeada, que se auto-reproduz e se coopta sem alternativa. Isso mesmo se verificou mais uma vez neste congresso. O próprio comité central cessante aprovou, sob proposta da direcção, a proposta das "teses" a submeter ao congresso, bem como a lista única para o novo comité central (votando portanto a sua própria continuidade...). No congresso não há lugar para teses nem listas alternativas. Os delegados - em geral também designados sob proposta de cima, igualmente sem alternativa - limitam-se a ratificar as propostas oficiais, normalmente por unanimidade ou quase. Pode haver sugestões de pequenas alterações, mas que só são adoptadas se previamente validadas e incorporadas nas propostas oficiais, únicas a serem votadas no final. "Centralismo", é seguramente; "democrático", é que se não vê como possa ser.
Decididamente, o PCP continua a rejeitar as comuns regras de funcionamento democrático das organizações colectivas. E a verdade é que, com excepção do voto secreto nas eleições - aliás, considerado como uma "imposição antidemocrática" -, a lei dos partidos renunciou a impor o respeito de tais regras, em nome da autonomia organizatória dos partidos políticos, como se num Estado democrático não fosse exigível que eles cumpram pelo menos os mais elementares procedimentos democráticos, como sejam a liberdade de candidaturas e de propostas alternativas. Se um partido não respeita tais regras internamente, como é que se pode esperar que depois a respeite, se chegar ao poder?
Sem surpresa, o congresso do PCP transformou-se essencialmente numa liturgia de execração política do PS, como responsável e culpado por todos os males do país, e também do Bloco de Esquerda, que disputa com os comunistas as mesmas causas, em especial na exploração dos protestos contra o Governo. Nem sequer escaparam aos ataques os que na esquerda do PS tentam cultivar pontes e lançar iniciativas comuns com outras forças de esquerda, incluindo os comunistas.
De estranhar seria que assim não fosse. Primeiro, o PCP sempre teve uma concepção puramente instrumental das alianças e da cooperação entre forças de esquerda. Segundo, historicamente o PS é o "inimigo principal", especialmente quando está no Governo e importa explorar ao máximo os protestos sociais ou profissionais contra as políticas governamentais. Terceiro, o PCP não está minimamente disponível para abandonar a sua condição de partido de protesto e de contrapoder, em favor de uma prática de cooperação e de co-responsabilidade política. Nestas circunstâncias não há saída do tradicional maniqueísmo comunista: ou se está com o PCP contra o PS, ou se é cúmplice da "política de direita" governamental.
Se houve alguma coisa que este congresso tornou de novo muito claro é que o PCP não muda nada e não cede em nada. Pelos exemplos alheios por esse mundo fora, receia que mudar pode significar morrer depressa. Por isso prefere não mudar, na esperança de adiar continuamente o fim, ou morrer devagar.
(Público, terça-feira, 2 de Dezembro de 2008)
Se havia algumas veleidades sobre a viabilidade de próximos entendimentos políticos à esquerda, o congresso do PCP dissipou-as. Pelo contrário, houve a deliberada preocupação de hostilidade militante face às demais forças de esquerda, em especial contra o PS. Forte na sua resistência ao declínio político por que passaram nas últimas décadas quase todos os partidos comunistas por esse mundo fora, o PCP faz gala da sua excepcionalidade, acentuando a ortodoxia doutrinária, a intransigência dogmática e o sectarismo político.
Não deixa de ser surpreendente, dez anos depois do soçobrar do comunismo soviético, uma tão grande afirmação de fé nos dogmas do "marxismo-leninismo" e nas virtudes do "socialismo real", lá onde ele persiste. O PCP não renuncia nem cede em nenhum dos temas centrais da doutrina que Lenine elaborou para a revolução russa e para o "socialismo soviético". Recusando-se a ver na queda do Muro de Berlim mais do que um triunfo da "contra-revolução imperialista", o PCP revela-se como uma espécie de abencerragem da grande desilusão do século XX, que a implosão da União Soviética há 20 anos encerrou.
No entanto, ao invocar como testemunhos do futuro da humanidade os diversos resquícios do comunismo histórico, como a Coreia do Norte ou o Vietname, a China ou Cuba - cujo único traço comum é o poder absoluto dos respectivos partidos comunistas -, o PCP revela um notável pragmatismo, visto que consegue vislumbrar radiosas perspectivas lá onde, como na China e no Vietname, está em curso um acelerado processo de restauração capitalista, ou onde, como em Cuba e na Coreia do Norte, os regimes comunistas agonizam numa triste decadência.
Por mais que o PCP proclame que tais experiências não são modelos para Portugal - o que de resto também disse frequentemente do modelo soviético, cuja queda nunca deixou de lamentar -, a verdade é que continua a manter um misterioso silêncio sobre as diferenças, tanto quanto ao modelo como quanto aos meios para o realizar. E o simples facto de achar tais países politicamente recomendáveis mostra até que ponto o partido se mantém fiel ao programa marxista-leninista, cuja linguagem e mitologia, aliás, fez questão de acentuar neste congresso.
O mesmo sucede, aliás, com outro dos dogmas doutrinários do leninismo, a saber, o "centralismo democrático", no que respeita à organização e funcionamento do partido, que não passa de uma receita para o controlo hierárquico do partido pela direcção autonomeada, que se auto-reproduz e se coopta sem alternativa. Isso mesmo se verificou mais uma vez neste congresso. O próprio comité central cessante aprovou, sob proposta da direcção, a proposta das "teses" a submeter ao congresso, bem como a lista única para o novo comité central (votando portanto a sua própria continuidade...). No congresso não há lugar para teses nem listas alternativas. Os delegados - em geral também designados sob proposta de cima, igualmente sem alternativa - limitam-se a ratificar as propostas oficiais, normalmente por unanimidade ou quase. Pode haver sugestões de pequenas alterações, mas que só são adoptadas se previamente validadas e incorporadas nas propostas oficiais, únicas a serem votadas no final. "Centralismo", é seguramente; "democrático", é que se não vê como possa ser.
Decididamente, o PCP continua a rejeitar as comuns regras de funcionamento democrático das organizações colectivas. E a verdade é que, com excepção do voto secreto nas eleições - aliás, considerado como uma "imposição antidemocrática" -, a lei dos partidos renunciou a impor o respeito de tais regras, em nome da autonomia organizatória dos partidos políticos, como se num Estado democrático não fosse exigível que eles cumpram pelo menos os mais elementares procedimentos democráticos, como sejam a liberdade de candidaturas e de propostas alternativas. Se um partido não respeita tais regras internamente, como é que se pode esperar que depois a respeite, se chegar ao poder?
Sem surpresa, o congresso do PCP transformou-se essencialmente numa liturgia de execração política do PS, como responsável e culpado por todos os males do país, e também do Bloco de Esquerda, que disputa com os comunistas as mesmas causas, em especial na exploração dos protestos contra o Governo. Nem sequer escaparam aos ataques os que na esquerda do PS tentam cultivar pontes e lançar iniciativas comuns com outras forças de esquerda, incluindo os comunistas.
De estranhar seria que assim não fosse. Primeiro, o PCP sempre teve uma concepção puramente instrumental das alianças e da cooperação entre forças de esquerda. Segundo, historicamente o PS é o "inimigo principal", especialmente quando está no Governo e importa explorar ao máximo os protestos sociais ou profissionais contra as políticas governamentais. Terceiro, o PCP não está minimamente disponível para abandonar a sua condição de partido de protesto e de contrapoder, em favor de uma prática de cooperação e de co-responsabilidade política. Nestas circunstâncias não há saída do tradicional maniqueísmo comunista: ou se está com o PCP contra o PS, ou se é cúmplice da "política de direita" governamental.
Se houve alguma coisa que este congresso tornou de novo muito claro é que o PCP não muda nada e não cede em nada. Pelos exemplos alheios por esse mundo fora, receia que mudar pode significar morrer depressa. Por isso prefere não mudar, na esperança de adiar continuamente o fim, ou morrer devagar.
(Público, terça-feira, 2 de Dezembro de 2008)