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30 de dezembro de 2008

Uma reforma que não pode ser perdida 

Por Vital Moreira

Estou de acordo com Miguel Sousa Tavares, na sua crónica do Expresso de sábado passado, quando afirma que a derrota do Estado na avaliação dos professores seria o dobre de finados por qualquer reforma susceptível de afectar um grupo profissional numeroso ou influente. No caso concreto, significaria também a queda de uma das mais emblemáticas reformas do actual Governo e da mais importante delas na luta pela qualidade e eficiência da escola pública.

Comecemos por dois pontos que deveriam ser óbvios para quase toda a gente. Primeiro, não existe nenhuma razão, salvo uma ilegítima prerrogativa "histórica", para que os professores não sejam submetidos a avaliação de desempenho, para efeitos de progressão na carreira profissional, como sucede agora com todos os demais serviços públicos. Segundo, é mais do que compreensível que uma reforma dessas não seja aceite de bom grado por uma classe profissional mal habituada a uma "carreira plana", sem diferenciação de níveis profissionais e com progressão profissional garantida por simples antiguidade.

Pode a rejeição da avaliação apresentar-se sob a capa de "modelos alternativos", até aqui nunca desvendados. Mas, por um lado, os que defendem agora um modelo de avaliação externa, por entidades alheias às escolas, seriam os primeiros a rejeitá-lo, se ele estivesse em vigor, como afronta à dignidade dos professores e à autonomia das escolas e como inaceitável excepção ao paradigma de avaliação interna de todo o sector público. E, por outro lado, se se trata somente de discordância das exigências procedimentais do modelo adoptado, então não se compreende como é que ao longo de vários anos que o processo leva não tenha sido proposta nenhuma alternativa praticável, e não se espera pela avaliação do processo no final do corrente ano, tal como constava do acordo com os sindicatos, que eles agora renegam sem nenhum pudor, defendendo o boicote da avaliação.

Não está em causa naturalmente o direito dos interessados a manifestarem a sua discordância e o seu protesto contra o processo de avaliação, pois todos têm o direito de protestar contra as leis e defender a sua revogação ou alteração, através de todos os meios lícitos, incluindo manifestações, greves, etc. Mas numa democracia os destinatários das leis não gozam de direito de veto contra elas nem de auto-isenção de as cumprirem, em função dos seus interesses profissionais ou outra razão qualquer.

Invocar a este propósito um "direito de resistência" ou de "desobediência civil", quando nem sequer estão em causa direitos fundamentais dos protestatários, é brincar com nobres conceitos. Não existe nenhum direito à dispensa de avaliação. Pelo contrário, o único direito que está em causa é o direito dos professores que querem ser avaliados, e que não podem ser impedidos por quem não deseja sê-lo. Se em caso de uma greve comum impõe-se garantir o direito ao trabalho dos que não querem fazer greve, por maioria de razão o Estado não pode deixar de assegurar o direito à avaliação dos que querem ser avaliados, ainda que muitos decidam fazer uma "greve à avaliação", mesmo supondo (sem conceder) que o direito à greve cobre tal eventualidade.

Seja como for, não tendo conseguido evitar a guerra da maioria dos professores contra a avaliação (apesar da contemporização do "memorando de entendimento" de Abril passado com os sindicatos), o Governo não pode agora ceder nesta altura do processo e na fase final do seu mandato, se não quiser perder essa decisiva reforma e com ela pôr em risco todas as demais reformas do ensino, que seriam postas em causa, acto contínuo. Sem prejuízo da eliminação do excesso de zelo procedimental em que estão a incorrer algumas escolas, não pode haver nenhuma dúvida nem tergiversação quanto à avaliação em si mesma.

Para isso são necessárias duas mensagens políticas fortes, por parte da ministra da Educação e do primeiro-ministro.

Por um lado, deve tornar-se claro, sem equívocos, que não podem ser consentidos actos de desobediência à lei por parte de direcções das escolas ou de avaliadores, que ponham em causa o direito dos professores à sua avaliação, sob pena de procedimento disciplinar. Quem não quiser ser avaliado que proceda de acordo, sujeitando-se às necessárias consequências, não podendo porém lesar quem deseja ser avaliado.

Por outro lado, impõe-se ganhar a favor desta batalha a população em geral contra a tentativa de boicote corporativo, invocando o interesse público (e sobretudo o interesse da escola, do ensino e dos alunos) contra os interesses sectoriais e profissionais. O Estado não pode deixar-se enclausurar num duelo a dois com um grupo profissional, ainda por cima poderoso. A força da lei não pode ceder à lei da força, nem a autoridade democrática do Estado ao poder de facto das corporações.

Nesta "guerra" da avaliação dos professores, o pior que poderia suceder era uma desistência do Governo por razões de calculismo eleitoral, imitando o grosseiro oportunismo eleitoral do PSD. Ao contrário do que alguns defendem, o PS pode bem suportar a provável perda eleitoral entre os professores que se opõem às reformas da educação, que aliás nenhuma cedência agora recuperaria. O que não deve arriscar são as perdas bem maiores que teria entre os eleitores em geral, que são a favor das reformas, caso cedesse à chantagem eleitoral, perdendo não somente a coerência política mas também a firmeza e a autoridade reformadora, que constitui o seu grande activo político nas eleições que se aproximam.

De resto, o saldo eleitoral desta contenda pode ser neutro ou mesmo positivo, se cada voto perdido entre os professores que não querem ser avaliados for compensado por outros tantos, ou mais, entre os eleitores que pagam a escola pública e querem ver aumentar a sua qualidade e eficiência, não aceitando que as reformas sejam sacrificadas por causa da defesa sectária de interesses profissionais.

(Público, terça-feira, 18 de Novembro de 2008)

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