19 de fevereiro de 2009
Diana dixit
Começo por agradecer à Ana Gomes o ter-se lembrado de mim como “convidada especial” deste encontro da rede informal de mulheres portuguesas activas nas áreas de Segurança e Defesa. E digo bem, “lembrado”, visto que há tanto tempo deixei de ser jornalista nestas áreas que é precisa uma boa memória para ainda o recordar. Sobretudo numa altura em que (felizmente!) há já muitas outras jornalistas a tratar estes temas e a distinguir-se como correspondentes de guerra., como, entre muitas outras, a Alexandra Lucas Coelho, a Márcia Rodrigues ou a Cândida Pinto.
Ao preparar a intervenção que aqui viria fazer, surgiu-me a pergunta: como é que o meu nome surge ligado a estas áreas? Por simples acaso, consequência natural de fazer noticiário internacional?
Talvez não. Há, provavelmente, uma explicação mais antiga, que se prende com o facto de ter nascido em Angola, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, no ano em que a “jóia da Coroa” do império britânico conseguia a independência e num clima mundial em ebulição. Algumas das pessoas que conhecia tinham fugido de países ocupados pelas tropas de Hitler. A África e a Ásia clamavam por independência e o fim do colonialismo. Ao longo da minha primeira década de vida, via o meu pai seguir atentamente na BBC notícias sobre a Revolta dos Mau-Mau, a guerra da Coreia, a crise do Suez. Apesar de viver numa pequena vila, tudo – incluindo, naturalmente, o facto de os seus habitantes terem diferentes cores de pele, e essa diferença condicionar o seu quotidiano – me mostrava que o mundo era grande e diverso e nada nele nos devia ser estranho. O meu primeiro e único romance, escrito aos 9 anos, foi sobre um soldado chinês que lutava contra os invasores japoneses. Com 14, seguia atentamente as notícias da Argélia e de Angola e sentia-me dividida entre a angústia dos pieds-noirs e a razão dos colonizados. Aos 16, emocionava-me com o sonho de Luther King. Aos 22 era acusada de conspirar contra a segurança interna e externa do Estado português. Aos 27, via as Forças Armadas do colonialismo impor o programa dos 3 Ds, dos quais um era o de descolonização.
Creio, portanto, não admirar que, enquanto jornalista, gostasse de trabalhar no sector internacional. Ora isso implica, normalmente, noticiar conflitos. Quando comecei a trabalhar na RTP, no final dos anos 70, início dos 80, notícias não faltavam: para lá das guerras nas antigas colónias portuguesas, como Angola, Moçambique e Timor-Leste, do derrube do Xá do Irão por uma revolução islâmica e da invasão soviética do Afeganistão, na Nicarágua, a Frente Sandinista punha fim à ditadura de Anastácio Somoza, em El Salvador a Frente Farabundo Marti combatia o Governo de Napoléon Duarte, na Guatemala, o Exército, em nome da Segurança Nacional, massacrava milhares de índios mayas e opositores ao regime; na Ásia, os khmers vermelhos combatiam o novo regime de Phnom Penh e milhares de vietnamitas abandonavam o seu país e faziam-se ao mar em frágeis embarcações, em busca de refúgio.
Estou certamente a esquecer-me de vários outros conflitos, a favor daqueles que tive oportunidade de acompanhar mais de perto, ou por lhes dedicar programas especiais – caso do Vietname e do Irão – ou por vir a conhecer os seus efeitos no decurso de uma repportagem sobre refugiados, em 1983.
Gostava de vos falar sobre essa, porque foi muito importante para mim. O representante em Lisboa do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, Phillipe Lavanchy, tinha proposto à RTP a realização de um programa sobre refugiados, para sensibilizar a opinião pública portuguesa para os dramas dos que nos demandavam em busca de asilo – e, nomeadamente, dos “boat people” que aportavam a Macau. Talvez por ser um tema muito coberto pelas agências internacionais, ninguém mostrou vontade de pegar na proposta, que me foi entregue como um “frete” pouco interessante.
A mim, pareceu-me desde logo fascinante, sobretudo se fosse possível aproveitar o auxílio do ACNUR para falar de diversas situaçoes geeradoraas de refugiados e não apenas dos “boat people”.
É que, a meu ver, a insistência nesses servia a tese de que as violações dos Direitos Humanos eram um exclusivo dos regimes ditos “comunistas” – o que as notícias da América Central, por exemplo, todos os dias desmentiam. Então, porque não tentar saber mais sobre os resultados dos conflitos em curso na América Central? E por quê deixar de fora os refugiados internos criados pela guerra em Angola, país que nos é tão próximo?
Apoiei a minha sugestão com um aspecto prático: filmar os “boat people” implicava dar a volta ao Mundo. Como, na altura, o preço das viagens não aumentava demasiado em função das paragens, porque não criarmos uma rota que permitisse filmar essas outras situações?
Phillipe Lavanchy concordou com a proposta. Dado o apoio do ACNUR, a RTP também não levantou objecções.
Foi assim que comecei por encontrar, nos Estados Unidos, refugiados salvadorenhos e guatemaltecos; na Costa Rica, sobretudo salvadorenhos; nas Honduras, salavadorenhos e também índios miskitos e outros fugitivos dos dois lados do conflito que opunha os Contra ao Governo de Manágua; no México, sobretudo guatemaltecos, índios Maya, catequistas católicos; no Japão, em Macau e Hong-Kong, “boat-people” fugidos do Vietname; na Tailândia, além de vietnamitas, cambojanos e laocianos; no Paquistão, refugiados afegãos; em Angola, uma vez que entrei legalmente, populações fugidas aos ataques da UNITA.
Essa viagem, inesquecível, tornou-me evidentes algumas coisas que já sabia, outras de que suspeitava, algumas em que ainda não pensara.
Desde logo, foi patente como, por diferentes que fossem as culturas, as crenças, a forma de vestir e de saudar, eram iguais as preocupações dos diversos refugiados: o desejo de segurança, para si, mas, sobretudo, para os seus; as saudades de casa e o desejo de um lugar a que pudessem chamar seu; a vontade de trabalhar e se integrar num novo mundo que se dispusesse a aceitá-los – mas, mais forte ainda, a vontade de voltar para casa, se ali tivessem cessado as razões que os tinham levado a fugir.
Depois, que não havia, no que respeitava à violação de direitos humanos, grande diferença entre regimes pró-soviéticos e regimes pró-americanos. Ambos tendiam a olhar os que discordavam como subversivos, perigosos e indignos de serem vistos como iguais.
Também que os grupos de refugiados eram muitas vezes usadas como carne para canhão dos interesses geo-estratégicos das super-potências: o caso dos miskitos refugiados nas Honduras, que recebiam regularmente a visita de diplomatas norte-americanos, tinham armas no interior dos campos e de quando em quando desapareciam às centenas dos campos do ACNUR para ir combater os sandinistas, enquanto que os refugiados salvadorenhos eram estreitamente vigiados, as armas à vista nos campos de refugiados afegãos no Paquistão, também eles sistematicamente recrutados para a Jihad no interior do Afeganistão, eram os mais evidentes, mas talvez não os únicos..
Finalmente, que havia uma imensa ignorância no Ocidente em relação a estes países e estes povos, não por falta de estudos e especialistas – mas sim por falta de consideração por eles e de vontade de os ouvir. (Compreenderão como fiquei contente há uns dias, quando o novo presidente dos EUA declarou ter dito a Geotge Mitchell, enviado ao Médio Oriente, que “começasse por ouvir, porque muito frequentemente os Estados Unidos começam por dar ordens.”)
Como explicar-vos o que em 1983 senti na Costa Rica, quando, ao chegar a um campo de refugiados normalmente descritos como “comunistas”, os vi reunidos numa celebração da Sexta Feira de Paixão? Ou ao ver nesses campos posters, não de Marx, não de Lenin, sequer de Fidel ou Che Guevara, mas de João Paulo II e de Monsenhor Oscar Romero? Ou como senti, mais tarde – como continuo a sentir hoje – que caíram no vazio as palavras do professor norte-americano, especialista em Afeganistão, que contava que, após a invasão soviética, muitas jovens universitárias de Cabul, até aí habituadas à mini-saia, vestiram voluntariamente burkas, como forma de contestar a ocupação?
Estar no terreno, nesses campos de refugiados, ensinou-me muito mais sobre política internacional do que as leituras que até então fizera das notícias das agências internacionais, onde os rótulos seguiam a lógica da guerra fria. Até porque há algo que nenhum jornalista, por melhor que seja, nos pode dar: o contacto directo com outros seres, as suas dores, as suas lágrimas, a sua necessidade de consolo impossível de satisfazer.
Eu teria, sobre outros observadores, uma vantagem: eu própria fora acusada de atentar contra a segurança interna e externa de um Estado cujo governo nenhuma pessoa de bem, se informada, poderia não querer derrubar. Aprendera como as autoridades de um país podem mentir sobre factos, enviezá-los, para mais facilmente perseguirem os que se lhe opõem, ou os que consideram descartáveis. Por isso, muito do que aquelas pessoas me diziam fazia sentido para mim e não aceitava com facilidade os rótulos que lhes eram apostos. (Como imaginar “subversiva” a senhora de idade que me dizia que sim, tinha ocupado com outros uma embaixada estrangeira – mas é que tinha medo, muito medo, por que na sua terra matavam tanta gente? Ou a jovem grávida que me dizia, como única explicação para a morte do marido, que “era estudante – e, na Guatemala, matavam muitas vezes os estudantes”... Ou a sindicalista salvadorenha, professora, que os militares tinham abandonado numa vala, julgando-a morta, após vária sessões de tortura – incluindo a violação com o cano de uma espingarda – e um simulacro de enforcamento? )
A verdade é que muito nos é dito a nós, jornalistas, sem que o oiçamos correctamente. E muito mais ainda é dito por nós, sem que alguém nos oiça. Quando uma palestiniana, responsável do Crescente Vermelho, diz “A nossa principal preocupação é cuidar das crianças, porque, se não, quem nos substituirá?”, qualquer jornalista intui que essa substituição é na luta e que nesses campos de refugiados – como não pode deixar de ser – se perpetua a revolta e se preparam novas Intifadas. Mas quantas pessoas, quantos políticos portugueses a terão ouvido, quando, no início dos anos 80, a RTP emitiu as suas palavras?
Em 1985, durante a guerra Irão/Iraque, no Iraque, tornou-se-me evidente o carácter ditatorial do regime de Saddam Hussein. Mas ao regressar, houve quem duvidasse. Quem se interessava então pelos direitos humanos dos opositores, ou dos curdos? O inimigo era, nessa altura, o Irão...
O problema é que, demasiadas vezes, os seres humanos são considerados factores descartáveis nas questões geo-estratégicas. Como me tornou claro, em 1983, um embaixador norte-americano, ao falar-lhe dos massacres levados a cabo pelos indonésios em Timor-Leste: “Compreende”, disse ele, “o problema dos timorenses é terem nascido numa zona de grande importância geo-estratégica”. Subentendendo que não se podia deixar o contrôlo de uma área tão importante para o conflito das super-potências nas mãos de um bando de jovens rotulados de comunistas.
Tudo isto foi há muito tempo, as coisas mudaram muito entretanto, mas a sensação com que fiquei, da experiência no terreno, é que a primeira coisa necessária a um mundo mais seguro é combater a ignorância e o deconhecimento do Outro. E temo que isso não tenha mudado. Não foram poucas as vezes em que, nestes últimos anos, me recordei de Kissinger dizer a Mário Soares, a propósito de alguns erros da política externa norte-americana, que só 17 congressistas tinham passaporte... Talvez a recomendação de Obama a George Mitchell tenha afinal a ver com essa coisa tão simples que é conhecer outros países e outras culturas. E creio que todo o caminho para a paz tem de passar por aí – o que implica, também, um grande trabalho dos media.
Alguns meses depois do 11 de Setembro – e gostava que pensassem por um momento como foi fácil levar a opinião pública a sentir-se norte-americana depois desse 11 de Setembro – pediram-me uma intervenção sobre terrorismo. Senti-me ainda mais insegura do que para falar sobre segurança e defesa. Foi então que me lembrei de um livro, que muitas de vós terão lido, “A Condição Humana”, de André Malraux, da solidão de Tchen no quarto do homem que deve matar, preparando o gesto que o separará para sempre dos outros homens, nauseado por esse gesto que deve cumprir, esse gesto não de um combatente, mas de um assassino. “Assassinar não é só matar...” A dificuldade de tocá-lo mais que de matá-lo, porque tocando a sua carne o homem que dorme retoma a sua natureza humana, e já não é apenas um obstáculo a eliminar, nem mesmo um inimigo, mas alguém que faz parte do mesmo grupo a que o seu sacrificador pertence. Lembrei-me do momento em que, sob o medo do acordar do homem que dorme, Tchen logra fazer o movimento que o levara até aí, o golpe do punhal que busca o coração, e do momento seguinte, aquele em que fica irremediavelmente só, confrontado com o silêncio e essa espécie de vertigem em que mergulhou, para sempre separado do mundo dos vivos, esmagado simultaneamente pelo horror e o gosto do sangue. Senti com ele a vontade de tocar alguém vivo e a necessidade de olhar-se ao espelho, onde a sua face reflectida não mostrava o horror do acto acabado de cometer. (“A criança que se sabia possuída pelo Demónio ia ver no espelho se nada transparecia”, escreveu Guillevic.) E compreendi como, para Tchen, que a morte do intermediário separara para sempre dos outros homens, o terrorismo se impôs como um sentido de vida, o único capaz de o fazer sentir-se na posse completa de si mesmo.
Sei que muitos defendem que é preciso condenar o terrorismo e não compreendê-lo, mas discordo: acho que é preciso ler “A Condição Humana” e compreender Tchen, porque Tchen, como o sabem tantos homens traumatizados por actos cometidos na guerra, tantos assassinos que se não reconhecem no seu crime, vive afinal em cada um de nós.
É em nome de Tchen – ou em nome de Malraux e desse livro admirável sobre a solidão, o absurdo, o horror e a nobreza da condição humana – que cada acto de terrorismo me merece uma reflexão outra que a simples condenação. É fácil condenar, mas não me basta. Preciso de mais, preciso de compreender por que é que alguém escolhe cortar-se assim da Humanidade, por que é que em alguém a Humanidade se esvaíu a tal ponto que se torna capaz de negá-la.
Compreendo assim melhor os atentados suicidas: a solidão de Tchen, a terrível, dolorosa solidão de Tchen, ensinou-me que é mais fácil morrer com o seu crime que sobreviver com ele. E não só para o próprio, porque a violência que se desperta num ser humano pode tornar-se incontrolável mesmo para aquele que a despertou. E a náusea de Tchen, o seu horror, perante os sinais de vida que lhe chegam desse homem que deve matar, que sabe que matará, ensinou-me aquilo que todos os carrascos sabem: como são importantes as vendas e os capuzes colocados sobre aqueles que se devem abater, para que nunca um sorriso, um olhar, uma cumplicidade possa estabelecer-se entre o que vai ser morto e o que deve matá-lo. Como tão bem o mostra uma outra obra, “Jogo de Lágrimas” (“The crying game”), de Neil Jordan, em que, aos poucos, para aquele que deve matar, se torna insuportável abater alguém que viu comer, chorar, rir, ter medo, que lhe mostrou a fotografia da namorada, porque a Humanidade, em nós, é algo que custa matar, que, até onde o consigo compreender, só pode ser morto por qualquer coisa ainda mais forte: a recusa, pelo outro, dessa Humanidade em nós.
Há alguns anos, nas ruas de Bordéus, um homem que Aristides Sousa Mendes salvara dos campos de concentração explicou-me claramente esse processo: depois de uma passagem por Portugal, seguira com os pais e irmãos para os Estados Unidos e, aos 18 anos, fora integrado, como tradutor, no Exército norte-americano e enviado de novo para a Europa. “Era muito jovem”, disse-me, “e quando via soldados mortos não conseguia deixar de chorar. Mas um dia percebi que só chorava quando os mortos eram das tropas aliadas: se fossem nazis, não chorava. Foi quando percebi que também eu podia ser um nazi.” Sim, não é uma questão de ser ariano ou semita: apenas uma questão de negar no Outro aquilo que tem em comum connosco, a sua Humanidade. Os nazis tinham destruído a sua inocência, a sua fé no Homem; tinham-lhe implantado o ódio; e, por esse ódio, assemelhava-se a eles.
Foi por esse judeu belga, que hoje se diz apenas “novaiorquino”, que percebi melhor a (condenável) actuação de Israel em relação aos palestinianos e também os (igualmente condenáveis) atentados em nome da Palestina.
Foi por ele – a primeira pessoa a quem telefonei a 11 de Setembro de 2001 – como por Malraux e por essa personagem trágica que é Tchen, que os atentados suicidas contra as Torres Gémeas de Manhattan não me impuseram sómente a (natural, evidente) condenação, mas a necessidade de perceber. E não creio que haja nessa necessidade, na posição daqueles que, face aos atentados, tentam compreendê-los pela acumulação da violência silenciosa que é a humilhação, qualquer conivência com o terrorismo. Pelo contrário: só entendendo as suas causas é possível, se não erradicá-lo, ao menos diminui-lo significativamente.
Há frases que, nos últimos e (aparentemente) apolíticos anos parecem ter desaparecido das nossas memórias. Frases que, há uns anos, todos citávamos, possívelmente sem mesmo nos apercebermos do seu real significado. Frases como “nada mais tendes a perder que as vossas grilhetas” ou “onde há opressão, há resistência”. Em países onde o consumidor substituiu o cidadão, onde é a obesidade, mais do que a fome, a merecer alertas médicos (até porque os que sentem a fome não interessam porque não consomem), essas frases parecem hoje destituídas de sentido, próprias apenas a dinossáurios incapazes de entender que os tempos mudaram e só o sucesso individual interessa. E, porque nos parecem destituídas de sentido aqui, julgamo-las aplicáveis a todo o Mundo. E, porque nos parecem destituídas de sentido no nosso conforto, julgamo-las sem sentido para outros, que se sentem afastados do nosso Mundo por razões de miséria, normalmente, mas também de cor da pele, de costumes ou de religião.
Isolados no nosso bem-estar, desatentos de todos os valores que não os do dinheiro, tornámo-nos incapazes de perceber os outros, e só estremecemos quando vemos que – tão perto de nós, nos Balcãs – a violência pode irromper por razões que se nos afiguram anacrónicas, como a religião ou a vingança da morte de antepassados ou membros do clã. Ou o orgulho ferido, como na Irlanda do Norte ou no País Basco.
Porque já não reagimos às afrontas com o duelo, deixámos de compreender que o orgulho ferido gera a violência, e que só nessa violência, na vingança sangrenta, excessiva, sobre o Outro que o humilha, pode o humilhado reencontrar-se, readquirir a posse completa de si-mesmo.
É isso, afinal, o terrorismo. O ódio feito acção, a humilhação vingada pelo sangue e a humilhação do Outro, por quem nos sentimos negados na nossa Humanidade.
Temo que, não compreendendo isso, estejamos a criar o aumento do terrorismo, não a sua diminuição. Como os conflitos no Médio Oriente ou na Europa de Leste sobejamente o demonstram – para não falar de outros, menos mediáticos – o ódio e a violência que este gera não se extinguem numa geração ou em décadas de aparente paz. A opressão e a humilhação continuam a vingar-se com sangue, e não há bombardeamento norte-americano que garanta que, daqui por uns anos, uma criança afegã ou iraquiana não vingue num qualquer cidadão dos Estados Unidos a morte dos seus pais – como nenhuma violência israelita conseguiu pôr fim aos atentados suicidas de jovens palestinianos. Como não há pena, por mais pesada que seja, que evite que, algures num país do Ocidente, alguém vingue num patrão a humilhação de ter sido despedido e privado de trabalho e de salário, ou nos carros dos burgueses a humilhação de viver num bairro periférico e andar de maus transportes públicos.
O terrorismo é a ponta visível, o grito do mal-estar absoluto – algo que nos é tanto mais dificil perceber quanto os tempos nos parecem de relativização. E provoca-nos, a nós que tentámos afastar de nós todo o desconforto, que remetemos a morte para os Hospitais, tomamos pílulas para suportar o absurdo do Mundo e postergamos a velhice, o horror absoluto. É essa a vantagem dos terroristas sobre nós: numa vida sem sentido, o suicídio em nome de uma causa pode ser a única coisa que os justifica; e nós, de tanto que nos afastámos deles, deixámos de ser seus semelhantes, para sermos apenas os que os olham e os julgam. [1]Os que os descrevem como tendo todos os males e todas as taras.
Já alguma vez repararam como usam ser estrangeiros os maus dos filmes de Hollywood? Já repararam como têm cor e origem os bandidos dos muitos programas de televisão sobre a acção policial? Já repararam como nós, os defensores do Estado de Direito e da Convenção de Genebra, achamos normal que se matem Bin Laden e os membros da El-Qaeda? Já repararam como, sem disso darmos conta, continuamos a dividir o Mundo entre os Homens e os Outros?
O terrorismo é o mal absoluto? Talvez. Mas como perante Tchen, perante a náusea que o invade ao saber que vai matar, não consigo deixar de me perguntar: e qual é a minha, a nossa responsabilidade nesse mal?
E só tentando responder a essa pergunta poderemos, creio, caminhar para a paz. Talvez a crise que agora atravessamos e que abalou os alicerces da nossa falsa segurança possa vir a ser uma oportunidade nesse caminho.
Diana Andringa
6 de Fevereiro de 2009
[1] “Les hommes ne sont pas mes semblables. Ils sont ceux qui me regardent et qui me jugent.” André Malraux, “La Condition Humaine”
Ao preparar a intervenção que aqui viria fazer, surgiu-me a pergunta: como é que o meu nome surge ligado a estas áreas? Por simples acaso, consequência natural de fazer noticiário internacional?
Talvez não. Há, provavelmente, uma explicação mais antiga, que se prende com o facto de ter nascido em Angola, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, no ano em que a “jóia da Coroa” do império britânico conseguia a independência e num clima mundial em ebulição. Algumas das pessoas que conhecia tinham fugido de países ocupados pelas tropas de Hitler. A África e a Ásia clamavam por independência e o fim do colonialismo. Ao longo da minha primeira década de vida, via o meu pai seguir atentamente na BBC notícias sobre a Revolta dos Mau-Mau, a guerra da Coreia, a crise do Suez. Apesar de viver numa pequena vila, tudo – incluindo, naturalmente, o facto de os seus habitantes terem diferentes cores de pele, e essa diferença condicionar o seu quotidiano – me mostrava que o mundo era grande e diverso e nada nele nos devia ser estranho. O meu primeiro e único romance, escrito aos 9 anos, foi sobre um soldado chinês que lutava contra os invasores japoneses. Com 14, seguia atentamente as notícias da Argélia e de Angola e sentia-me dividida entre a angústia dos pieds-noirs e a razão dos colonizados. Aos 16, emocionava-me com o sonho de Luther King. Aos 22 era acusada de conspirar contra a segurança interna e externa do Estado português. Aos 27, via as Forças Armadas do colonialismo impor o programa dos 3 Ds, dos quais um era o de descolonização.
Creio, portanto, não admirar que, enquanto jornalista, gostasse de trabalhar no sector internacional. Ora isso implica, normalmente, noticiar conflitos. Quando comecei a trabalhar na RTP, no final dos anos 70, início dos 80, notícias não faltavam: para lá das guerras nas antigas colónias portuguesas, como Angola, Moçambique e Timor-Leste, do derrube do Xá do Irão por uma revolução islâmica e da invasão soviética do Afeganistão, na Nicarágua, a Frente Sandinista punha fim à ditadura de Anastácio Somoza, em El Salvador a Frente Farabundo Marti combatia o Governo de Napoléon Duarte, na Guatemala, o Exército, em nome da Segurança Nacional, massacrava milhares de índios mayas e opositores ao regime; na Ásia, os khmers vermelhos combatiam o novo regime de Phnom Penh e milhares de vietnamitas abandonavam o seu país e faziam-se ao mar em frágeis embarcações, em busca de refúgio.
Estou certamente a esquecer-me de vários outros conflitos, a favor daqueles que tive oportunidade de acompanhar mais de perto, ou por lhes dedicar programas especiais – caso do Vietname e do Irão – ou por vir a conhecer os seus efeitos no decurso de uma repportagem sobre refugiados, em 1983.
Gostava de vos falar sobre essa, porque foi muito importante para mim. O representante em Lisboa do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, Phillipe Lavanchy, tinha proposto à RTP a realização de um programa sobre refugiados, para sensibilizar a opinião pública portuguesa para os dramas dos que nos demandavam em busca de asilo – e, nomeadamente, dos “boat people” que aportavam a Macau. Talvez por ser um tema muito coberto pelas agências internacionais, ninguém mostrou vontade de pegar na proposta, que me foi entregue como um “frete” pouco interessante.
A mim, pareceu-me desde logo fascinante, sobretudo se fosse possível aproveitar o auxílio do ACNUR para falar de diversas situaçoes geeradoraas de refugiados e não apenas dos “boat people”.
É que, a meu ver, a insistência nesses servia a tese de que as violações dos Direitos Humanos eram um exclusivo dos regimes ditos “comunistas” – o que as notícias da América Central, por exemplo, todos os dias desmentiam. Então, porque não tentar saber mais sobre os resultados dos conflitos em curso na América Central? E por quê deixar de fora os refugiados internos criados pela guerra em Angola, país que nos é tão próximo?
Apoiei a minha sugestão com um aspecto prático: filmar os “boat people” implicava dar a volta ao Mundo. Como, na altura, o preço das viagens não aumentava demasiado em função das paragens, porque não criarmos uma rota que permitisse filmar essas outras situações?
Phillipe Lavanchy concordou com a proposta. Dado o apoio do ACNUR, a RTP também não levantou objecções.
Foi assim que comecei por encontrar, nos Estados Unidos, refugiados salvadorenhos e guatemaltecos; na Costa Rica, sobretudo salvadorenhos; nas Honduras, salavadorenhos e também índios miskitos e outros fugitivos dos dois lados do conflito que opunha os Contra ao Governo de Manágua; no México, sobretudo guatemaltecos, índios Maya, catequistas católicos; no Japão, em Macau e Hong-Kong, “boat-people” fugidos do Vietname; na Tailândia, além de vietnamitas, cambojanos e laocianos; no Paquistão, refugiados afegãos; em Angola, uma vez que entrei legalmente, populações fugidas aos ataques da UNITA.
Essa viagem, inesquecível, tornou-me evidentes algumas coisas que já sabia, outras de que suspeitava, algumas em que ainda não pensara.
Desde logo, foi patente como, por diferentes que fossem as culturas, as crenças, a forma de vestir e de saudar, eram iguais as preocupações dos diversos refugiados: o desejo de segurança, para si, mas, sobretudo, para os seus; as saudades de casa e o desejo de um lugar a que pudessem chamar seu; a vontade de trabalhar e se integrar num novo mundo que se dispusesse a aceitá-los – mas, mais forte ainda, a vontade de voltar para casa, se ali tivessem cessado as razões que os tinham levado a fugir.
Depois, que não havia, no que respeitava à violação de direitos humanos, grande diferença entre regimes pró-soviéticos e regimes pró-americanos. Ambos tendiam a olhar os que discordavam como subversivos, perigosos e indignos de serem vistos como iguais.
Também que os grupos de refugiados eram muitas vezes usadas como carne para canhão dos interesses geo-estratégicos das super-potências: o caso dos miskitos refugiados nas Honduras, que recebiam regularmente a visita de diplomatas norte-americanos, tinham armas no interior dos campos e de quando em quando desapareciam às centenas dos campos do ACNUR para ir combater os sandinistas, enquanto que os refugiados salvadorenhos eram estreitamente vigiados, as armas à vista nos campos de refugiados afegãos no Paquistão, também eles sistematicamente recrutados para a Jihad no interior do Afeganistão, eram os mais evidentes, mas talvez não os únicos..
Finalmente, que havia uma imensa ignorância no Ocidente em relação a estes países e estes povos, não por falta de estudos e especialistas – mas sim por falta de consideração por eles e de vontade de os ouvir. (Compreenderão como fiquei contente há uns dias, quando o novo presidente dos EUA declarou ter dito a Geotge Mitchell, enviado ao Médio Oriente, que “começasse por ouvir, porque muito frequentemente os Estados Unidos começam por dar ordens.”)
Como explicar-vos o que em 1983 senti na Costa Rica, quando, ao chegar a um campo de refugiados normalmente descritos como “comunistas”, os vi reunidos numa celebração da Sexta Feira de Paixão? Ou ao ver nesses campos posters, não de Marx, não de Lenin, sequer de Fidel ou Che Guevara, mas de João Paulo II e de Monsenhor Oscar Romero? Ou como senti, mais tarde – como continuo a sentir hoje – que caíram no vazio as palavras do professor norte-americano, especialista em Afeganistão, que contava que, após a invasão soviética, muitas jovens universitárias de Cabul, até aí habituadas à mini-saia, vestiram voluntariamente burkas, como forma de contestar a ocupação?
Estar no terreno, nesses campos de refugiados, ensinou-me muito mais sobre política internacional do que as leituras que até então fizera das notícias das agências internacionais, onde os rótulos seguiam a lógica da guerra fria. Até porque há algo que nenhum jornalista, por melhor que seja, nos pode dar: o contacto directo com outros seres, as suas dores, as suas lágrimas, a sua necessidade de consolo impossível de satisfazer.
Eu teria, sobre outros observadores, uma vantagem: eu própria fora acusada de atentar contra a segurança interna e externa de um Estado cujo governo nenhuma pessoa de bem, se informada, poderia não querer derrubar. Aprendera como as autoridades de um país podem mentir sobre factos, enviezá-los, para mais facilmente perseguirem os que se lhe opõem, ou os que consideram descartáveis. Por isso, muito do que aquelas pessoas me diziam fazia sentido para mim e não aceitava com facilidade os rótulos que lhes eram apostos. (Como imaginar “subversiva” a senhora de idade que me dizia que sim, tinha ocupado com outros uma embaixada estrangeira – mas é que tinha medo, muito medo, por que na sua terra matavam tanta gente? Ou a jovem grávida que me dizia, como única explicação para a morte do marido, que “era estudante – e, na Guatemala, matavam muitas vezes os estudantes”... Ou a sindicalista salvadorenha, professora, que os militares tinham abandonado numa vala, julgando-a morta, após vária sessões de tortura – incluindo a violação com o cano de uma espingarda – e um simulacro de enforcamento? )
A verdade é que muito nos é dito a nós, jornalistas, sem que o oiçamos correctamente. E muito mais ainda é dito por nós, sem que alguém nos oiça. Quando uma palestiniana, responsável do Crescente Vermelho, diz “A nossa principal preocupação é cuidar das crianças, porque, se não, quem nos substituirá?”, qualquer jornalista intui que essa substituição é na luta e que nesses campos de refugiados – como não pode deixar de ser – se perpetua a revolta e se preparam novas Intifadas. Mas quantas pessoas, quantos políticos portugueses a terão ouvido, quando, no início dos anos 80, a RTP emitiu as suas palavras?
Em 1985, durante a guerra Irão/Iraque, no Iraque, tornou-se-me evidente o carácter ditatorial do regime de Saddam Hussein. Mas ao regressar, houve quem duvidasse. Quem se interessava então pelos direitos humanos dos opositores, ou dos curdos? O inimigo era, nessa altura, o Irão...
O problema é que, demasiadas vezes, os seres humanos são considerados factores descartáveis nas questões geo-estratégicas. Como me tornou claro, em 1983, um embaixador norte-americano, ao falar-lhe dos massacres levados a cabo pelos indonésios em Timor-Leste: “Compreende”, disse ele, “o problema dos timorenses é terem nascido numa zona de grande importância geo-estratégica”. Subentendendo que não se podia deixar o contrôlo de uma área tão importante para o conflito das super-potências nas mãos de um bando de jovens rotulados de comunistas.
Tudo isto foi há muito tempo, as coisas mudaram muito entretanto, mas a sensação com que fiquei, da experiência no terreno, é que a primeira coisa necessária a um mundo mais seguro é combater a ignorância e o deconhecimento do Outro. E temo que isso não tenha mudado. Não foram poucas as vezes em que, nestes últimos anos, me recordei de Kissinger dizer a Mário Soares, a propósito de alguns erros da política externa norte-americana, que só 17 congressistas tinham passaporte... Talvez a recomendação de Obama a George Mitchell tenha afinal a ver com essa coisa tão simples que é conhecer outros países e outras culturas. E creio que todo o caminho para a paz tem de passar por aí – o que implica, também, um grande trabalho dos media.
Alguns meses depois do 11 de Setembro – e gostava que pensassem por um momento como foi fácil levar a opinião pública a sentir-se norte-americana depois desse 11 de Setembro – pediram-me uma intervenção sobre terrorismo. Senti-me ainda mais insegura do que para falar sobre segurança e defesa. Foi então que me lembrei de um livro, que muitas de vós terão lido, “A Condição Humana”, de André Malraux, da solidão de Tchen no quarto do homem que deve matar, preparando o gesto que o separará para sempre dos outros homens, nauseado por esse gesto que deve cumprir, esse gesto não de um combatente, mas de um assassino. “Assassinar não é só matar...” A dificuldade de tocá-lo mais que de matá-lo, porque tocando a sua carne o homem que dorme retoma a sua natureza humana, e já não é apenas um obstáculo a eliminar, nem mesmo um inimigo, mas alguém que faz parte do mesmo grupo a que o seu sacrificador pertence. Lembrei-me do momento em que, sob o medo do acordar do homem que dorme, Tchen logra fazer o movimento que o levara até aí, o golpe do punhal que busca o coração, e do momento seguinte, aquele em que fica irremediavelmente só, confrontado com o silêncio e essa espécie de vertigem em que mergulhou, para sempre separado do mundo dos vivos, esmagado simultaneamente pelo horror e o gosto do sangue. Senti com ele a vontade de tocar alguém vivo e a necessidade de olhar-se ao espelho, onde a sua face reflectida não mostrava o horror do acto acabado de cometer. (“A criança que se sabia possuída pelo Demónio ia ver no espelho se nada transparecia”, escreveu Guillevic.) E compreendi como, para Tchen, que a morte do intermediário separara para sempre dos outros homens, o terrorismo se impôs como um sentido de vida, o único capaz de o fazer sentir-se na posse completa de si mesmo.
Sei que muitos defendem que é preciso condenar o terrorismo e não compreendê-lo, mas discordo: acho que é preciso ler “A Condição Humana” e compreender Tchen, porque Tchen, como o sabem tantos homens traumatizados por actos cometidos na guerra, tantos assassinos que se não reconhecem no seu crime, vive afinal em cada um de nós.
É em nome de Tchen – ou em nome de Malraux e desse livro admirável sobre a solidão, o absurdo, o horror e a nobreza da condição humana – que cada acto de terrorismo me merece uma reflexão outra que a simples condenação. É fácil condenar, mas não me basta. Preciso de mais, preciso de compreender por que é que alguém escolhe cortar-se assim da Humanidade, por que é que em alguém a Humanidade se esvaíu a tal ponto que se torna capaz de negá-la.
Compreendo assim melhor os atentados suicidas: a solidão de Tchen, a terrível, dolorosa solidão de Tchen, ensinou-me que é mais fácil morrer com o seu crime que sobreviver com ele. E não só para o próprio, porque a violência que se desperta num ser humano pode tornar-se incontrolável mesmo para aquele que a despertou. E a náusea de Tchen, o seu horror, perante os sinais de vida que lhe chegam desse homem que deve matar, que sabe que matará, ensinou-me aquilo que todos os carrascos sabem: como são importantes as vendas e os capuzes colocados sobre aqueles que se devem abater, para que nunca um sorriso, um olhar, uma cumplicidade possa estabelecer-se entre o que vai ser morto e o que deve matá-lo. Como tão bem o mostra uma outra obra, “Jogo de Lágrimas” (“The crying game”), de Neil Jordan, em que, aos poucos, para aquele que deve matar, se torna insuportável abater alguém que viu comer, chorar, rir, ter medo, que lhe mostrou a fotografia da namorada, porque a Humanidade, em nós, é algo que custa matar, que, até onde o consigo compreender, só pode ser morto por qualquer coisa ainda mais forte: a recusa, pelo outro, dessa Humanidade em nós.
Há alguns anos, nas ruas de Bordéus, um homem que Aristides Sousa Mendes salvara dos campos de concentração explicou-me claramente esse processo: depois de uma passagem por Portugal, seguira com os pais e irmãos para os Estados Unidos e, aos 18 anos, fora integrado, como tradutor, no Exército norte-americano e enviado de novo para a Europa. “Era muito jovem”, disse-me, “e quando via soldados mortos não conseguia deixar de chorar. Mas um dia percebi que só chorava quando os mortos eram das tropas aliadas: se fossem nazis, não chorava. Foi quando percebi que também eu podia ser um nazi.” Sim, não é uma questão de ser ariano ou semita: apenas uma questão de negar no Outro aquilo que tem em comum connosco, a sua Humanidade. Os nazis tinham destruído a sua inocência, a sua fé no Homem; tinham-lhe implantado o ódio; e, por esse ódio, assemelhava-se a eles.
Foi por esse judeu belga, que hoje se diz apenas “novaiorquino”, que percebi melhor a (condenável) actuação de Israel em relação aos palestinianos e também os (igualmente condenáveis) atentados em nome da Palestina.
Foi por ele – a primeira pessoa a quem telefonei a 11 de Setembro de 2001 – como por Malraux e por essa personagem trágica que é Tchen, que os atentados suicidas contra as Torres Gémeas de Manhattan não me impuseram sómente a (natural, evidente) condenação, mas a necessidade de perceber. E não creio que haja nessa necessidade, na posição daqueles que, face aos atentados, tentam compreendê-los pela acumulação da violência silenciosa que é a humilhação, qualquer conivência com o terrorismo. Pelo contrário: só entendendo as suas causas é possível, se não erradicá-lo, ao menos diminui-lo significativamente.
Há frases que, nos últimos e (aparentemente) apolíticos anos parecem ter desaparecido das nossas memórias. Frases que, há uns anos, todos citávamos, possívelmente sem mesmo nos apercebermos do seu real significado. Frases como “nada mais tendes a perder que as vossas grilhetas” ou “onde há opressão, há resistência”. Em países onde o consumidor substituiu o cidadão, onde é a obesidade, mais do que a fome, a merecer alertas médicos (até porque os que sentem a fome não interessam porque não consomem), essas frases parecem hoje destituídas de sentido, próprias apenas a dinossáurios incapazes de entender que os tempos mudaram e só o sucesso individual interessa. E, porque nos parecem destituídas de sentido aqui, julgamo-las aplicáveis a todo o Mundo. E, porque nos parecem destituídas de sentido no nosso conforto, julgamo-las sem sentido para outros, que se sentem afastados do nosso Mundo por razões de miséria, normalmente, mas também de cor da pele, de costumes ou de religião.
Isolados no nosso bem-estar, desatentos de todos os valores que não os do dinheiro, tornámo-nos incapazes de perceber os outros, e só estremecemos quando vemos que – tão perto de nós, nos Balcãs – a violência pode irromper por razões que se nos afiguram anacrónicas, como a religião ou a vingança da morte de antepassados ou membros do clã. Ou o orgulho ferido, como na Irlanda do Norte ou no País Basco.
Porque já não reagimos às afrontas com o duelo, deixámos de compreender que o orgulho ferido gera a violência, e que só nessa violência, na vingança sangrenta, excessiva, sobre o Outro que o humilha, pode o humilhado reencontrar-se, readquirir a posse completa de si-mesmo.
É isso, afinal, o terrorismo. O ódio feito acção, a humilhação vingada pelo sangue e a humilhação do Outro, por quem nos sentimos negados na nossa Humanidade.
Temo que, não compreendendo isso, estejamos a criar o aumento do terrorismo, não a sua diminuição. Como os conflitos no Médio Oriente ou na Europa de Leste sobejamente o demonstram – para não falar de outros, menos mediáticos – o ódio e a violência que este gera não se extinguem numa geração ou em décadas de aparente paz. A opressão e a humilhação continuam a vingar-se com sangue, e não há bombardeamento norte-americano que garanta que, daqui por uns anos, uma criança afegã ou iraquiana não vingue num qualquer cidadão dos Estados Unidos a morte dos seus pais – como nenhuma violência israelita conseguiu pôr fim aos atentados suicidas de jovens palestinianos. Como não há pena, por mais pesada que seja, que evite que, algures num país do Ocidente, alguém vingue num patrão a humilhação de ter sido despedido e privado de trabalho e de salário, ou nos carros dos burgueses a humilhação de viver num bairro periférico e andar de maus transportes públicos.
O terrorismo é a ponta visível, o grito do mal-estar absoluto – algo que nos é tanto mais dificil perceber quanto os tempos nos parecem de relativização. E provoca-nos, a nós que tentámos afastar de nós todo o desconforto, que remetemos a morte para os Hospitais, tomamos pílulas para suportar o absurdo do Mundo e postergamos a velhice, o horror absoluto. É essa a vantagem dos terroristas sobre nós: numa vida sem sentido, o suicídio em nome de uma causa pode ser a única coisa que os justifica; e nós, de tanto que nos afastámos deles, deixámos de ser seus semelhantes, para sermos apenas os que os olham e os julgam. [1]Os que os descrevem como tendo todos os males e todas as taras.
Já alguma vez repararam como usam ser estrangeiros os maus dos filmes de Hollywood? Já repararam como têm cor e origem os bandidos dos muitos programas de televisão sobre a acção policial? Já repararam como nós, os defensores do Estado de Direito e da Convenção de Genebra, achamos normal que se matem Bin Laden e os membros da El-Qaeda? Já repararam como, sem disso darmos conta, continuamos a dividir o Mundo entre os Homens e os Outros?
O terrorismo é o mal absoluto? Talvez. Mas como perante Tchen, perante a náusea que o invade ao saber que vai matar, não consigo deixar de me perguntar: e qual é a minha, a nossa responsabilidade nesse mal?
E só tentando responder a essa pergunta poderemos, creio, caminhar para a paz. Talvez a crise que agora atravessamos e que abalou os alicerces da nossa falsa segurança possa vir a ser uma oportunidade nesse caminho.
Diana Andringa
6 de Fevereiro de 2009
[1] “Les hommes ne sont pas mes semblables. Ils sont ceux qui me regardent et qui me jugent.” André Malraux, “La Condition Humaine”