13 de março de 2009
Mais Europa
Por Vital Moreira
A União Europeia vive actualmente um triplo teste, que desafia a sua capacidade de acção e de afirmação política no futuro. O mais imediato consiste na resposta à crise financeira e económica global, que afecta gravemente todos os Estados-membros. O segundo diz respeito à afirmação da Europa na cena internacional, onde o seu défice de protagonismo não pode persistir. O terceiro tem a ver com o impasse sobre o Tratado de Lisboa, do qual depende o reforço da organização e dos poderes da União. Vale a pena analisar as implicações de cada um destes desafios.
A UE está a ser especialmente testada pela profunda crise financeira e económica que abrange hoje praticamente todo o mundo, em especial os países desenvolvidos, designadamente os Estados Unidos (onde ela teve origem), o Japão e a própria Europa, com todas as sequelas em matéria de contracção brusca da actividade económica e sobretudo de aumento exponencial do desemprego (que já atinge dois dígitos em alguns países, como em Espanha), com todo o cortejo de insegurança, de perda de rendimentos e de degradação da qualidade de vida para milhões de pessoas.
Apesar dos meritórios esforços da União no apoio e na coordenação das respostas nacionais à crise - sem os quais ela poderia estar a atingir níveis catastróficos em alguns países -, bem como no combate às derivas proteccionistas de alguns Estados-membros, totalmente contrárias à lógica da integração europeia, tais esforços evidenciaram também as limitações dos actuais mecanismos comunitários. É já hoje evidente que um "mercado único", sem fronteiras nacionais, não pode prescindir de uma adequada regulação a nível da própria UE.
Além de questionar o paradigma neoliberal das últimas décadas a nível nacional, a crise tornou igualmente evidente que a integração económica europeia, substituindo mercados nacionais territorialmente segmentados por um mercado integrado, não pode deixar de exigir também um mínimo de "governo económico" e uma regulação integrada a nível de toda a União, implicando a criação de autoridades reguladoras europeias, complementando as autoridades reguladoras nacionais, desde logo no que respeita ao sector financeiro, no que respeita às empresas e às transacções transfronteiriças.
O segundo teste da UE no momento presente está na frente internacional e decorre tanto da dimensão global da crise económica como do novo contexto derivado da eleição do Presidente Barack nos Estados Unidos e do regresso de Washington à cooperação internacional, a começar pela Europa, como forma de enfrentar os grandes problemas internacionais.
Ora, o primeiro grande problema internacional é justamente a necessidade de uma resposta conjunta à crise global da economia, que não pode ser enfrentada senão a nível global. Uma das tarefas prioritárias da UE, como grande potência económica que é, consiste também em contribuir com todo o seu peso político no sentido da regulação da globalização, a começar pela regulação dos movimentos financeiros, pelo combate aos offshores e pela criação de mecanismos de estabilidade e transparência da economia mundial.
Neste sentido, impõe-se a definição de um mandato claro por parte da UE para a cimeira do G20 que em Abril próximo, em Londres, vai definir o novo quadro das instituições financeiras internacionais, porque dele vai depender a confiança quanto à saída da crise, bem como a nova ordem económica e financeira internacional para depois da retoma que há-de vir. Há um novo paradigma a estabelecer para a economia global.
A outra frente da agenda da UE no plano internacional consiste na criação de uma parceria transatlântica virtuosa, em favor de uma nova política de ataque aos principais factores que ameaçam a paz e a segurança internacionais, designadamente o desenvolvimento de uma relação de cooperação e de confiança mútua com a Rússia, uma paz justa no eterno conflito israelo-palestiniano, a contenção pacífica do programa nuclear do Irão, a estabilização militar e política no Afeganistão, o estabelecimento de uma relação de respeito mútuo com o mundo árabe e, last but not the least, a implementação da parceria económica com a África, de cuja estabilidade económica e política depende a própria estabilidade social europeia, desde logo em termos de fluxos de imigração.
O terceiro desafio da UE tem a ver com o impasse do Tratado de Lisboa, que continua pendente da ratificação da Irlanda, depois da sua rejeição em referendo, no ano passado. Há três razões que podem augurar um segundo referendo favorável. Primeiro, tornou-se evidente que alguns dos receios que mais pesaram no voto negativo de muitos irlandeses não têm nenhum fundamento (por exemplo, o fim da neutralidade militar da Irlanda ou a despenalização do aborto). Segundo, a Irlanda foi o primeiro país europeu a ser duramente atingido pela crise financeira e pela recessão económica, pondo em causa o celebrado "modelo celta", e tornando claro que fora da União Europeia a Irlanda poderia ter o mesmo destino que a Islândia. Terceiro, foram entretanto dadas algumas garantias a Dublin que vão ao encontro das principais razões da rejeição do Tratado, designadamente em matéria de neutralidade militar e de ordem jurídica da família, bem como a manutenção de um comissário por país.
É desnecessário sublinhar a importância do Tratado de Lisboa, não somente para modernizar as instituições da União e para lhe conferir instrumentos de acção mais ágeis, mas também para vencer os desafios relativos à recessão económica e à agenda internacional. Se por desventura o Tratado ficasse pelo caminho, a situação da União tornar-se-ia muito mais complicada, prolongando por tempo indefinido os actuais constrangimentos institucionais e a crise de confiança na UE.
Para tudo isso, que é muito, precisamos de mais Europa e de uma UE mais forte, e não menos.
(Público, terça-feira, 3 de Março de 2009)
A União Europeia vive actualmente um triplo teste, que desafia a sua capacidade de acção e de afirmação política no futuro. O mais imediato consiste na resposta à crise financeira e económica global, que afecta gravemente todos os Estados-membros. O segundo diz respeito à afirmação da Europa na cena internacional, onde o seu défice de protagonismo não pode persistir. O terceiro tem a ver com o impasse sobre o Tratado de Lisboa, do qual depende o reforço da organização e dos poderes da União. Vale a pena analisar as implicações de cada um destes desafios.
A UE está a ser especialmente testada pela profunda crise financeira e económica que abrange hoje praticamente todo o mundo, em especial os países desenvolvidos, designadamente os Estados Unidos (onde ela teve origem), o Japão e a própria Europa, com todas as sequelas em matéria de contracção brusca da actividade económica e sobretudo de aumento exponencial do desemprego (que já atinge dois dígitos em alguns países, como em Espanha), com todo o cortejo de insegurança, de perda de rendimentos e de degradação da qualidade de vida para milhões de pessoas.
Apesar dos meritórios esforços da União no apoio e na coordenação das respostas nacionais à crise - sem os quais ela poderia estar a atingir níveis catastróficos em alguns países -, bem como no combate às derivas proteccionistas de alguns Estados-membros, totalmente contrárias à lógica da integração europeia, tais esforços evidenciaram também as limitações dos actuais mecanismos comunitários. É já hoje evidente que um "mercado único", sem fronteiras nacionais, não pode prescindir de uma adequada regulação a nível da própria UE.
Além de questionar o paradigma neoliberal das últimas décadas a nível nacional, a crise tornou igualmente evidente que a integração económica europeia, substituindo mercados nacionais territorialmente segmentados por um mercado integrado, não pode deixar de exigir também um mínimo de "governo económico" e uma regulação integrada a nível de toda a União, implicando a criação de autoridades reguladoras europeias, complementando as autoridades reguladoras nacionais, desde logo no que respeita ao sector financeiro, no que respeita às empresas e às transacções transfronteiriças.
O segundo teste da UE no momento presente está na frente internacional e decorre tanto da dimensão global da crise económica como do novo contexto derivado da eleição do Presidente Barack nos Estados Unidos e do regresso de Washington à cooperação internacional, a começar pela Europa, como forma de enfrentar os grandes problemas internacionais.
Ora, o primeiro grande problema internacional é justamente a necessidade de uma resposta conjunta à crise global da economia, que não pode ser enfrentada senão a nível global. Uma das tarefas prioritárias da UE, como grande potência económica que é, consiste também em contribuir com todo o seu peso político no sentido da regulação da globalização, a começar pela regulação dos movimentos financeiros, pelo combate aos offshores e pela criação de mecanismos de estabilidade e transparência da economia mundial.
Neste sentido, impõe-se a definição de um mandato claro por parte da UE para a cimeira do G20 que em Abril próximo, em Londres, vai definir o novo quadro das instituições financeiras internacionais, porque dele vai depender a confiança quanto à saída da crise, bem como a nova ordem económica e financeira internacional para depois da retoma que há-de vir. Há um novo paradigma a estabelecer para a economia global.
A outra frente da agenda da UE no plano internacional consiste na criação de uma parceria transatlântica virtuosa, em favor de uma nova política de ataque aos principais factores que ameaçam a paz e a segurança internacionais, designadamente o desenvolvimento de uma relação de cooperação e de confiança mútua com a Rússia, uma paz justa no eterno conflito israelo-palestiniano, a contenção pacífica do programa nuclear do Irão, a estabilização militar e política no Afeganistão, o estabelecimento de uma relação de respeito mútuo com o mundo árabe e, last but not the least, a implementação da parceria económica com a África, de cuja estabilidade económica e política depende a própria estabilidade social europeia, desde logo em termos de fluxos de imigração.
O terceiro desafio da UE tem a ver com o impasse do Tratado de Lisboa, que continua pendente da ratificação da Irlanda, depois da sua rejeição em referendo, no ano passado. Há três razões que podem augurar um segundo referendo favorável. Primeiro, tornou-se evidente que alguns dos receios que mais pesaram no voto negativo de muitos irlandeses não têm nenhum fundamento (por exemplo, o fim da neutralidade militar da Irlanda ou a despenalização do aborto). Segundo, a Irlanda foi o primeiro país europeu a ser duramente atingido pela crise financeira e pela recessão económica, pondo em causa o celebrado "modelo celta", e tornando claro que fora da União Europeia a Irlanda poderia ter o mesmo destino que a Islândia. Terceiro, foram entretanto dadas algumas garantias a Dublin que vão ao encontro das principais razões da rejeição do Tratado, designadamente em matéria de neutralidade militar e de ordem jurídica da família, bem como a manutenção de um comissário por país.
É desnecessário sublinhar a importância do Tratado de Lisboa, não somente para modernizar as instituições da União e para lhe conferir instrumentos de acção mais ágeis, mas também para vencer os desafios relativos à recessão económica e à agenda internacional. Se por desventura o Tratado ficasse pelo caminho, a situação da União tornar-se-ia muito mais complicada, prolongando por tempo indefinido os actuais constrangimentos institucionais e a crise de confiança na UE.
Para tudo isso, que é muito, precisamos de mais Europa e de uma UE mais forte, e não menos.
(Público, terça-feira, 3 de Março de 2009)