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26 de março de 2009

"O SNS e a democracia" 

Por Vital Moreira

(Conferência no colóquio sobre os 30 anos do SNS, nos Hospitais da Universidade de Coimbra, 26 de Março de 2009)

1.
Que relação existe entre SNS e democracia?

Em abstracto, parece não haver uma correlação directa entre um sistema público de saúde e um regime democrático.

Por um lado, é fácil ver que existem sólidas democracias políticas desprovidas de sistemas públicos de saúde e sem garantia do direito à saúde, como, por exemplo, os Estados Unidos. Por outro lado, existem autocracias políticas dotadas de sistemas de saúde avançados, e até invejáveis, como é o caso de Cuba.

Na sua versão liberal tradicional, as democracias políticas não consideravam essenciais os "direitos sociais", a que pertence o direito à saúde, os quais, aliás, são um produto do século XX. Ao invés, no século passado muitos regimes autoritários, incluindo os de direita, apostaram na criação de sistemas públicos de protecção social, incluindo no âmbito da saúde. Lembremos que a própria noção de "Estado social" nasceu inicialmente na Itália fascista, tendo depois sido cooptada pelos regimes democráticos após a II Guerra Mundial.

No entanto, não é difícil observar que os cuidados de saúde constituem um dos factores mais importantes para avaliar a qualidade e aceitabilidade de um sistema político, independentemente do regime político. A ausência de acesso universal aos cuidados de saúde macula o prestígio de qualquer democracia, por mais meritória que ela seja sob outros pontos de vista. Veja-se o caso dos Estados Unidos. Ao contrário, um bom sistema público de cuidados de saúde pode "branquear" ou, pelo menos, amenizar a condenação de sistemas políticos autoritários, que de outro modo seriam muito menos aceitáveis, como sucede com o caso de Cuba.

Por conseguinte, a existência, ou não, de um sistema público de saúde tornou-se numa das variáveis mais importantes na avaliação de um sistema politico.

2.
No que respeita aos sistemas democráticos, é seguro a sua legitimação popular não depende exclusivamente da democracia política, ou seja, das instituições e dos mecanismos da democracia eleitoral-representativa.

Por mais perfeitas que sejam as suas instituições políticas e por mais impecáveis que sejam os procedimentos democráticos, um sistema democrático pode não conseguir sobreviver duradouramente, ou funcionar com um mínimo de estabilidade, se não assegurar um conjunto de serviços públicos essenciais, que se não limitam à defesa, à segurança e à justiça, mas que também passam – de acordo com os níveis de desenvolvimento económico e social de cada país – por um mínimo aceitável de serviços de educação, de saúde e de protecção social. A história da democracia mostra que as excepções a esta regra não passam disso mesmo.

Dificilmente uma democracia é sustentável no meio da miséria sem esperança, do iliteracia ou da doença. Por isso, a moderna teoria da "transição democrática" tem sublinhado a importância das políticas sociais na consolidação e na estabilidade dos novos regimes democráticos saídos de regimes autoritários. A democracia precisa de "mostrar resultados" (deliver the goods), tanto em termos de crescimento económico, emprego e bem-estar, como em termos de acesso a níveis mínimos de educação, de saúde e de protecção social.

O pior que pode suceder a uma democracia recente é defraudar severamente as expectativas que a acompanham, e estas nunca se resumem à liberdade política e à democracia eleitoral. Há alguns anos, um inquérito internacional realizado em vários países latino-americanos que tinham passado por transições democráticas mostrou que uma maioria de pessoas admitia aceitar o regresso do regime autoritário se a democracia não trouxesse consigo níveis satisfatórios de crescimento económico, de emprego, de educação e de saúde.

3.
Seja como for, desde há mais de um século que as concepções mais exigentes de democracia não se contentam somente com os mecanismos institucionais da democracia política (partidos políticos, eleições livres, alternância no poder, etc.).

Desde o século XIX que se sabe que a própria possibilidade de participação na vida política, a começar pelo exercício do direito de voto, varia de acordo com as condições económicas, sociais e culturais das pessoas. As pessoas mais apetrechadas nessas vertentes gozam de maiores possibilidades de envolvimento na vida política. A igualdade de participação na vida política, ou seja, a igualdade democrática, depende de condições minimamente iguais em termos económicos, sociais e culturais.

Não admira, por isso, que desde há muito se fala, não somente na "democratização política", mas também de democratização da educação, democratização da saúde, etc. Pertenço, aliás, a uma geração que nos anos 60 fez de tais objectivos parte integrante da luta pela democratização do País. Neste sentido, a noção de democratização tem a ver com o reconhecimento do direito universal do acesso a esses bens, bem como com o efectivo alargamento de tal acesso tendencialmente a toda a população.

Como sabemos, é esta a ideia que prevalece na concepção europeia da democracia, que casa a democracia política com o chamado "modelo social europeu", o qual não designa senão o conjunto de mecanismos, aliás muito variados de país para país, que asseguram o acesso universal de todos os cidadãos à educação, à saúde e à protecção social. Na origem deste mix virtuoso está, como sabemos, a noção de social-democracia, que tem a ver justamente com a ideia de que uma democracia integral precisa de ser não somente uma democracia política, mas também uma "democracia social".

Ora, a garantia universal de cuidados de saúde, seja qual for o figurino nacional que revista concretamente, faz parte inalienável do "modelo social europeu" e da concepção europeia de "democracia liberal-social".

4.
No caso português, a relação entre a democracia e o SNS é uma relação quase "orgânica" e co-natural.

O Estado Novo não deixou grande herança em matéria de cuidados de saúde, para além do incipiente sistema das "caixas sindicais de previdência". Só no sector público administrativo é que a criação da ADSE constituiu um avanço significativo em termos de garantia de cuidados de saúde.

Foi somente depois de 1974 e da institucionalização do actual regime democrático que surgiu a ideia de um serviço de saúde público, geral e universal , primeiro na Constituição de 1976, logo implementado pela Lei do SNS de 1979 (claramente segundo o modelo britânico de provisão pública e de financiamento por via dos impostos gerais), cujos trinta anos agora celebramos. Por conseguinte, em Portugal, o SNS é produto incontroverso do regime democrático.

Em contrapartida, a criação e consolidação do SNS constituiu um dos esteios da legitimação substantiva do regime democrático. Porventura sem paralelo noutros factores, o SNS faz parte das grandes "conquistas da revolução" e do regime democrático, que só por si justifica a democracia aos olhos da maioria dos portugueses. Estou convencido de que, se se fizesse uma sondagem de opinião sobre a instituição mais valiosa que os portugueses imputam ao regime democrático em Portugal, o SNS apareceria à cabeça, folgadamente. Por isso, sem o SNS as credenciais da democracia seriam seguramente mais frágeis entre nós.

Em suma, no caso português a identificação entre democracia e SNS é uma ligação indelével. Atribuímos o SNS à democracia e consideramos o SNS como um dos esteios da democracia.

5.
Essa conexão, popularmente enraizada, entre o SNS e a democracia teve entre nós duas consequências altamente positivas.

Em primeiro lugar, conferiu ao SNS uma grande base social de apoio e uma grande legitimação política na sociedade portuguesa. Em segundo lugar, ela tornou o SNS em grande parte consensual no nosso espectro partidário, não sendo decididamente contestado por nenhum partido político do arco parlamentar, pelo menos até recentemente, apesar de nem todos os partidos o terem apoiado no início. Depois da sua consolidação nos anos 80, só nos últimos anos, sob pressão da vaga neoliberal, é que começou a surgir a contestação ao SNS, umas vezes em geral, outras pelo menos quanto ao seu actual modelo constitucional.

Todavia, essa mesma conexão íntima estabelecida entre o SNS e a democracia não deixa de ter efeitos colaterais menos positivos, na medida em que tende a congelar como intocável a concreta configuração vigente do SNS, dificultando a sua modernização e a sua reforma. Toda a proposta de mudança tende a ser acusada de pretender "destruir o SNS" e a suscitar resistências a qualquer inovação, mesmo quando se trate de aperfeiçoar o seu desempenho e de aumentar a sua eficiência, como sucedeu, por exemplo, com as reformas desencadeadas pelo anterior ministro da Saúde, Correia de Campos, no que respeita à reordenação da rede de maternidades e dos cuidados de urgência, na primeira metade da actual legislatura.

Seja como for, para o bem e para o mal, a conexão entre democracia e SNS é um dado incontornável entre nós, pelo menos até agora.

6.
Todavia, numa democracia nenhuma instituição pode dar-se por indefinidamente adquirida. Com excepção das próprias regras democráticas, numa democracia tudo pode ser mudado, inclusive a Constituição. Mesmo as instituições mais sólidas podem vir a ser questionadas, se perderem a sua legitimação social e política. O SNS não está imune a esse risco.

Até ao início da presente crise financeira e económica global, a principal ameaça para o SNS era de natureza essencialmente ideológica, à luz da onda neoliberal iniciada há três décadas. Como sabemos, o radicalismo liberal apostava tudo na retracção da esfera pública, na redução das tarefas do Estado às "funções soberanas" (defesa, segurança, justiça), na diminuição da despesa pública, na baixa geral de impostos, na liberalização e privatização dos serviços públicos, no recurso ao mercado para a provisão de serviços, incluindo os serviços de saúde, etc. Nessa perspectiva, não havia nenhum lugar para um SNS, mas apenas, quando muito, para um mecanismo subsidiário de apoio financeiro público às pessoas sem rendimentos, para obterem no mercado os necessários cuidados de saúde ou, numa outra versão, para transformar o SNS numa agência de subcontratação e de financiamento de cuidados de saúde aos prestadores privados, como é ambição destes (aliás compreensível).

Como sabemos, desde há anos que essa visão liberal radical tinha como alvo o SNS, embora de forma um tanto retraída, dado a amplo apoio social de que este goza, mas já com reflexos evidentes em propostas de algumas forças políticas entre nós.

Todavia, constituindo a actual crise um terrível veredicto contra o neoliberalismo na esfera económico-financeira – com a sua crença na auto-suficiência do mercado e a sua hostilidade à regulação e à supervisão pública, e ainda mais à provisão pública de serviços –, é provável que as concepções neoliberais fiquem congeladas nos próximos anos também nas outras esferas da acção pública, incluindo no caso do serviço público de saúde.

Por isso, é de admitir que o referido perigo de "subsidiarização" ou "externalização" geral do SNS fique de remissa enquanto se mantiver o refluxo da vaga neoliberal e o consequente retorno das virtudes da acção pública e do Estado social.

7.
No entanto, seria ilusório, para não dizer irresponsável, pensar que o SNS adquiriu um seguro de vida definitivo, com o actual descrédito do neoliberalismo.

É que a principal razão para algum sucesso que chegaram a alcançar algumas ideias e propostas neoliberais tinha a ver com dois factores críticos para o SNS, que não desapareceram por um acto de mágica. São eles:

–- em primeiro lugar, a questão da capacidade de resposta do SNS às crescentes exigências dos cuidados de saúde na actualidade (em consequência de meios de diagnóstico e de tratamento cada vez mais sofisticados, da incidência de doenças cada vez mais generalizadas e do aumento da longevidade das pessoas);

– e, em segundo lugar, a questão da sustentabilidade financeira do SNS, perante o exponencial aumento dos custos que as referidas situações geram.

Ora, só existe um meio de dar resposta a essas duas questões, sem o incomportável aumento dos encargos orçamentais do SNS ao ritmo que teve durante muitos anos, sempre acima do crescimento do PIB e da despesa pública. Trata-se de apostar decididamente em ganhos de eficiência na gestão das unidades de saúde, na utilização dos seus recursos e nos gastos com medicamentos e outros consumíveis, reduzindo drasticamente os custos de ineficiência do sistema, que o Tribunal de Contas estima serem muito elevados.

Essa aposta na eficiência da gestão e no corte de gastos supérfluos, mediante reformas na organização e na gestão do sistema (sem excluir o recurso ao sector social e ao sector privado quanto tal se mostrar necessário) tem permitido nos últimos anos conter o crescimento excessivo da dotação orçamental do SNS, apesar da melhoria da cobertura e do desempenho do sistema em vários aspectos (cuidados primários, cuidados continuados, IVG, saúde dentária, etc.). Não é este um sucesso de somenos, desde logo na vitória sobre o conservadorismo que resiste à modernização e às reformas na gestão do SNS, dando argumentos aos que apostam na sua ineficiência para provar a sua insustentabilidade financeira.

Todavia, há dois limites para a estratégia da boa gestão e da eficiência.

Primeiro, essa política encontra sempre resistências sociais mais ou menos fortes, tanto dos beneficiários (quando de trata de racionalizar as redes de cuidados e a oferta do sistema em geral) como dos profissionais (quando se trata de medidas tendentes ao aumento da produtividade e ao melhor aproveitamento dos recursos existentes).

Segundo, há sempre tectos para os ganhos de produtividade e de eficiência, que tendem a decrescer à medida que vão sendo alcançados. Não é possível aumentar discricionariamente a produtividade, nem eliminar totalmente a margem de ineficiência.

Por isso, há-de chegar no futuro um momento em que a sustentabilidade financeira do SNS implicará um dilema politicamente muito delicado:

– ou deixar degradar a qualidade de desempenho e mesmo diminuir a cobertura do SNS, de modo a estancar a hemorragia dos custos e dos gastos, o que implicará uma fuga para o sector privado e o início de um círculo vicioso que pode conduzir a uma grave crise do SNS;

– ou aumentar consideravelmente os recursos financeiros destinados ao SNS, o que quer dizer uma de duas coisas (ou ambas), a saber, maior esforço fiscal dos contribuintes ou contribuição directa dos próprios beneficiários do SNS para o pagamento dos cuidados de saúde, com o risco de resistências que podem pôr em causa a sua base de apoio social.

Não podemos dar por adquirida a solução deste dilema, quando ele se impuser. Mas não é difícil augurar que o consenso social e político que até agora sustentou o SNS pode vir a entrar em crise.

Bem podemos esperar que esse momento de opção chegue mais tarde do que cedo. Todavia, adiar esse momento depende da capacidade para definir e implementar reformas que melhorem a capacidade de resposta do SNS, bem como a sua sustentabilidade financeira, reformas que já se viu que são politicamente muito árduas, mesmo em condições politicamente favoráveis. E quanto menos capacidade política houver para as tomar, mais cedo teremos de enfrentar o risco de divórcio na relação entre SNS e a maioria social que o tem sustentado, uma relação até agora virtuosa, apesar dos défices de desempenho e de resposta existentes.

8.
Justifica-se plenamente comemorar a criação do SNS e a sua consolidação social, institucional e política ao longo desde 1979. Mas seria pouco clarividente ignorar as ameaças que se acumulam sobre ele e deixar de preparar atempadamente as respostas que a lucidez e a responsabilidade impõe.

Que estas comemorações dos 30 anos do SNS não sirvam somente para celebrar merecidamente o sucesso das primeiras três décadas da sua vida, mas também para preparar o seu futuro. Prouvera que, daqui a outros trinta anos, os nossos sucessores possam celebrar o SNS com o mesmo espírito de prudente auto-satisfação com que hoje o fazemos.

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