13 de março de 2009
O regresso da "boa América"
Por Vital Moreira
Poderá ter havido presidentes dos Estados Unidos com um apoio inicial interno tão esmagador como Barack Obama. Porém, com tanto apoio em todo o mundo, seguramente que não. Merecidamente o tem, aliás, depois do pesadelo da era Bush e da degradação que a imagem dos Estados Unidos sofreu na opinião pública mundial ao longo destes anos.
O notável "discurso inaugural" do novo Presidente não desiludiu, antes pelo contrário, deliberadamente ancorado nas grandes tradições progressistas norte-americanas. A questão essencial é agora a de saber se nas suas decisões políticas o novo Presidente vai estar à altura das enormes expectativas que criou, tanto no plano doméstico como no plano internacional, especialmente na Europa.
O mais fácil, mas também aquilo que não podia tardar, era marcar a diferença nas ideias e nos propósitos em relação ao seu antecessor, cortando radicalmente com o discurso neoliberal e neoconservador. Começando desde logo a corrigir as criminosas sequelas da guerra do Iraque e da "guerra ao terrorismo", Obama arrancou bem, ao anunciar um calendário para a retirada das tropas de Bagdad, ao determinar o encerramento do campo de detenção de Guantánamo, bem como a suspensão imediata do pseudojulgamento dos detidos por "comissões militares" e a proibição da tortura como método de informação.
A mensagem não podia ter sido mais explícita, quando frisou que os Estados Unidos não têm de sacrificar os seus valores, designadamente a defesa dos direitos humanos, o "rule of law" e o respeito do direito internacional, para garantir a sua segurança e ganhar a luta contra o terrorismo. Obama foi igualmente claro na afirmação de um novo paradigma nas relações internacionais, trocando o unilateralismo pela cooperação e pelas parcerias com os aliados, abandonando os anátemas ideológicos, tipo "eixo do mal" (embora sem os mencionar), em favor do relacionamento pragmático com todos os países, na base dos interesses recíprocos. Por último, também não silenciou a decisão de fazer entrar os Estados Unidos na luta internacional contra o aquecimento global, corrigindo a militância do seu antecessor contra o Protocolo de Quioto e deixando admitir uma participação empenhada no novo quadro pós-Quioto, que está em preparação.
A "boa América" está então de regresso ao palco internacional. Por certo, bem necessária é.
Na agenda doméstica, toda a atenção vai ter de ser canalizada para o ataque à profundíssima recessão que assola o país e o mundo, em consequência da crise financeira desencadeada em 2007 e alimentada pela irresponsável política de "auto-regulação" dos mercados financeiros e de promoção do dinheiro fácil. O problema é que, com a necessidade de concentrar todos os esforços financeiros nessa frente - agravando exponencialmente o já elevado défice orçamental e o endividamento público dos Estados Unidos -, Obama vai ter de adiar ou reduzir os seus programas sociais, sobretudo em matéria de sistema de saúde e de protecção social.
No seu discurso inaugural, Obama disse claramente que, embora não existindo alternativa ao mercado como instrumento de criação de riqueza, ele tende porém a sair dos eixos, na falta de um "olhar vigilante" (watchful eye). Conjugando esta óbvia condenação do "capitalismo laissez-faire" com as medidas já anunciadas para reformar a regulação no sector financeiro, incluindo no plano internacional, a conclusão é a de que os Estados Unidos podem vir a convergir com o modelo de uma "economia de mercado regulada", na tradição europeia. E se, apesar da crise, o novo Presidente ainda puder realizar o seu programa social, então não é temerário antecipar que os Estados Unidos venham também a ficar menos distantes do "modelo social europeu", embora nas suas versões menos exigentes.
No plano internacional, os desafios não são menos decisivos. Sem esquecer a velha questão de Cuba, à porta, e sem desvalorizar os problemas que o Iraque ainda vai causar, há a questão nuclear do Irão, o impasse no Afeganistão e a instabilidade no Paquistão, o drama humanitário no Darfur e no Zimbabwe e, acima de todos, a eterna questão palestiniana, que a recente e brutal intervenção de Israel em Gaza veio mais uma vez sublinhar. A resolução satisfatória de todos estes pólos de conflito internacional depende em grande medida dos Estados Unidos, como única potência global que continuam a ser. É sobre eles que Obama vai ser julgado pela opinião pública mundial. O capital de simpatia de que goza deve ser investido no ataque a todas eles, mas também pode ser desbaratado em caso de insucesso.
A mais árdua de entre todas as questões pendentes - mesmo que haja outras mais prementes - é seguramente a questão palestiniana. Trata-se de um cancro de mais de meio século, que envenena as relações entre o Ocidente e o mundo árabe, que alimenta e autolegitima o terrorismo islâmico, que gera uma "guerra civil fria" entre as comunidades muçulmanas e judaicas em vários países europeus e, sobretudo, que gera a revolta e o desespero entre os palestinianos, vítimas da opressão, da miséria, da humilhação e da injustiça na sua própria terra, como os novos párias deste mundo.
Pelas suas próprias responsabilidades históricas na região, incluindo pela sua aliança preferencial com Israel, só os Estados Unidos podem fazer valer a única solução simultaneamente justa e conforme ao direito internacional, que é o fim da ocupação israelita dos territórios palestinos ocupados em 1967 e a criação de um Estado palestiniano na base dos referidos territórios, garantindo simultaneamente a segurança a que Israel tem direito.
Já não podem restar muitas dúvidas sobre a grande mudança que a eleição de Obama veio trazer aos Estados Unidos e ao mundo. Mas provavelmente o seu principal teste vai ser a sua capacidade para alcançar uma paz justa na Palestina. Bastará isso para ficar na História.
(Público, 27 de Janeiro de 2009)
Poderá ter havido presidentes dos Estados Unidos com um apoio inicial interno tão esmagador como Barack Obama. Porém, com tanto apoio em todo o mundo, seguramente que não. Merecidamente o tem, aliás, depois do pesadelo da era Bush e da degradação que a imagem dos Estados Unidos sofreu na opinião pública mundial ao longo destes anos.
O notável "discurso inaugural" do novo Presidente não desiludiu, antes pelo contrário, deliberadamente ancorado nas grandes tradições progressistas norte-americanas. A questão essencial é agora a de saber se nas suas decisões políticas o novo Presidente vai estar à altura das enormes expectativas que criou, tanto no plano doméstico como no plano internacional, especialmente na Europa.
O mais fácil, mas também aquilo que não podia tardar, era marcar a diferença nas ideias e nos propósitos em relação ao seu antecessor, cortando radicalmente com o discurso neoliberal e neoconservador. Começando desde logo a corrigir as criminosas sequelas da guerra do Iraque e da "guerra ao terrorismo", Obama arrancou bem, ao anunciar um calendário para a retirada das tropas de Bagdad, ao determinar o encerramento do campo de detenção de Guantánamo, bem como a suspensão imediata do pseudojulgamento dos detidos por "comissões militares" e a proibição da tortura como método de informação.
A mensagem não podia ter sido mais explícita, quando frisou que os Estados Unidos não têm de sacrificar os seus valores, designadamente a defesa dos direitos humanos, o "rule of law" e o respeito do direito internacional, para garantir a sua segurança e ganhar a luta contra o terrorismo. Obama foi igualmente claro na afirmação de um novo paradigma nas relações internacionais, trocando o unilateralismo pela cooperação e pelas parcerias com os aliados, abandonando os anátemas ideológicos, tipo "eixo do mal" (embora sem os mencionar), em favor do relacionamento pragmático com todos os países, na base dos interesses recíprocos. Por último, também não silenciou a decisão de fazer entrar os Estados Unidos na luta internacional contra o aquecimento global, corrigindo a militância do seu antecessor contra o Protocolo de Quioto e deixando admitir uma participação empenhada no novo quadro pós-Quioto, que está em preparação.
A "boa América" está então de regresso ao palco internacional. Por certo, bem necessária é.
Na agenda doméstica, toda a atenção vai ter de ser canalizada para o ataque à profundíssima recessão que assola o país e o mundo, em consequência da crise financeira desencadeada em 2007 e alimentada pela irresponsável política de "auto-regulação" dos mercados financeiros e de promoção do dinheiro fácil. O problema é que, com a necessidade de concentrar todos os esforços financeiros nessa frente - agravando exponencialmente o já elevado défice orçamental e o endividamento público dos Estados Unidos -, Obama vai ter de adiar ou reduzir os seus programas sociais, sobretudo em matéria de sistema de saúde e de protecção social.
No seu discurso inaugural, Obama disse claramente que, embora não existindo alternativa ao mercado como instrumento de criação de riqueza, ele tende porém a sair dos eixos, na falta de um "olhar vigilante" (watchful eye). Conjugando esta óbvia condenação do "capitalismo laissez-faire" com as medidas já anunciadas para reformar a regulação no sector financeiro, incluindo no plano internacional, a conclusão é a de que os Estados Unidos podem vir a convergir com o modelo de uma "economia de mercado regulada", na tradição europeia. E se, apesar da crise, o novo Presidente ainda puder realizar o seu programa social, então não é temerário antecipar que os Estados Unidos venham também a ficar menos distantes do "modelo social europeu", embora nas suas versões menos exigentes.
No plano internacional, os desafios não são menos decisivos. Sem esquecer a velha questão de Cuba, à porta, e sem desvalorizar os problemas que o Iraque ainda vai causar, há a questão nuclear do Irão, o impasse no Afeganistão e a instabilidade no Paquistão, o drama humanitário no Darfur e no Zimbabwe e, acima de todos, a eterna questão palestiniana, que a recente e brutal intervenção de Israel em Gaza veio mais uma vez sublinhar. A resolução satisfatória de todos estes pólos de conflito internacional depende em grande medida dos Estados Unidos, como única potência global que continuam a ser. É sobre eles que Obama vai ser julgado pela opinião pública mundial. O capital de simpatia de que goza deve ser investido no ataque a todas eles, mas também pode ser desbaratado em caso de insucesso.
A mais árdua de entre todas as questões pendentes - mesmo que haja outras mais prementes - é seguramente a questão palestiniana. Trata-se de um cancro de mais de meio século, que envenena as relações entre o Ocidente e o mundo árabe, que alimenta e autolegitima o terrorismo islâmico, que gera uma "guerra civil fria" entre as comunidades muçulmanas e judaicas em vários países europeus e, sobretudo, que gera a revolta e o desespero entre os palestinianos, vítimas da opressão, da miséria, da humilhação e da injustiça na sua própria terra, como os novos párias deste mundo.
Pelas suas próprias responsabilidades históricas na região, incluindo pela sua aliança preferencial com Israel, só os Estados Unidos podem fazer valer a única solução simultaneamente justa e conforme ao direito internacional, que é o fim da ocupação israelita dos territórios palestinos ocupados em 1967 e a criação de um Estado palestiniano na base dos referidos territórios, garantindo simultaneamente a segurança a que Israel tem direito.
Já não podem restar muitas dúvidas sobre a grande mudança que a eleição de Obama veio trazer aos Estados Unidos e ao mundo. Mas provavelmente o seu principal teste vai ser a sua capacidade para alcançar uma paz justa na Palestina. Bastará isso para ficar na História.
(Público, 27 de Janeiro de 2009)