13 de março de 2009
Vítimas merecidas
Por Vital Moreira
Da actual crise económica sabemos que é profunda, global e prolongada. Profunda, pela intensidade dos seus efeitos na contracção da actividade económica e no emprego. Global, porque não vai limitar-se às economias desenvolvidas (Estados Unidos, Europa, Japão), estando a afectar também a generalidade dos países por esse mundo fora. Prolongada, porque ainda não sabemos se já chegou ao fundo e quando se inicia a retoma. Estamos perante uma crise "uma-vez-num-século".
Tal como as crises que a antecederam, também esta será superada, embora com incontáveis "baixas", sem excluir a bancarrota de alguns países. Mas da crise e dos instrumentos usados para lhe responder vai sair necessariamente uma nova ordem económica, incluindo quanto ao papel do Estado na economia. As circunstâncias e os mecanismos que motivaram a crise - falta ou insuficiência de regulação dos mercados financeiros, excesso de "alavancagem" das instituições financeiras e de endividamento dos estados, das empresas e das famílias, globalização financeira sem regras e sem controlo, etc. - não podem deixar de ser doravante evitados e combatidos.
A primeira consequência vai ser naturalmente a criação de um novo sistema regulatório do sector financeiro, mais abrangente e mais intenso do que aquele que prevaleceu nas últimas décadas, abarcando todos os agentes (incluindo os fundos de risco e as agências de rating), todos os produtos (desde o crédito hipotecário aos produtos estruturados) e todas as instituições (desde a governação das instituições financeiras à arquitectura das autoridades reguladoras). Se o sistema financeiro se revelou demasiado importante para poder cair, há que o encarar como uma verdadeira responsabilidade pública.
A segunda consequência vai ser o controlo da globalização financeira. Não é possível manter uma supervisão acantonada a nível nacional, quando os mercados se mundializam sob a égide de grandes grupos financeiros multinacionais e de operações transfronteiriças sem fronteiras. Um mercado global exige uma supervisão global. Impõe-se a reforma profunda das instituições financeiras internacionais saídas da II Guerra Mundial, a transparência dos movimentos financeiros, o combate aos paraísos fiscais. No caso da UE, aliás, a necessidade de uma regulação financeira supranacional é exigência do mercado único, que não pode manter-se territorialmente segmentado para efeitos regulatórios.
A terceira consequência tem a ver com uma gestão mais prudente do crédito e do endividamento, tanto dos países como das empresas e das pessoas. Na origem da crise financeira, nos Estados Unidos, esteve uma enorme complacência com o dinheiro barato, o endividamento desmedido, a aposta no crescimento e no consumo a todo o custo, a miragem de uma "sociedade de proprietários" assente na aquisição de casa própria, que resultou numa orgia de crédito hipotecário de alto risco e numa "bolha imobiliária" insustentável. No fundo, a culpa primeira da crise tem de ser imputada à irresponsável política de juros baixos, de crédito barato e de excessiva alavancagem financeira seguida pela Reserva Federal dos Estados Unidos. Os países, as empresas e as pessoas não podem viver indefinidamente acima das suas possibilidades, numa espiral de endividamento interno e externo.
Para além das suas vítimas imediatas em termos de desemprego, de activos perdidos e de empresas abatidas, esta crise faz duas vítimas bem mais merecidas. Uma delas é a mundividência neoliberal que dominou o pensamento económico e político nas últimas três décadas; a outra é a versão norte-americana do capitalismo de mercado, que vinha sendo cada vez mais mimetizado como modelo universal.
Assente na ideia da soberania e auto-suficiência do mercado, na auto-regulação da concorrência, na noção da regulação pública como um estorvo, no total afastamento do Estado da economia, na redução do Estado às "tarefas soberanas" (defesa, segurança, ordem pública, justiça), na baixa geral dos impostos, na diabolização dos serviços públicos, na "auto-responsabilidade" dos indivíduos -, o neoliberalismo viu-se rotundamente negado, mesmo por alguns dos seus anteriores arautos, quando todos os governos, independentemente da sua orientação política, tiveram de vir em socorro dos mercados financeiros (incluindo a nacionalização de bancos), quanto apostaram maciçamente no investimento público para compensar a quebra do investimento privado, quando se viram obrigados a amortecer por todos os meios o impacto social da crise.
A outra vítima é o modelo norte-americano (e em geral anglo-saxónico) do capitalismo. Vem desde há muito a investigação sobre as diferentes "variedades" ou "modalidades" do capitalismo contemporâneo, separando por um lado o modelo europeu continental de "economia social de mercado regulado", assente sobre a coordenação e regulação pública e sobre a responsabilidade social do Estado, e por outro lado o modelo anglo-saxónico de "economia liberal de mercado", assente na ausência de regulação ou numa "regulação light" e na falta de compromisso do Estado com a protecção social. Tendo eclodido no âmago deste segundo modelo, e por causa dele, a crise é também a sua condenação.
Se é lícito antecipar os tempos que hão-de vir depois de esta crise passar, assistiremos com certeza à afirmação de um novo paradigma político-económico que, embora sem questionar a economia de mercado em si mesma, revalorizará a importância crucial da regulação pública e o próprio papel da economia pública (em especial no sector financeiro), restaurará a responsabilidade do Estado com a coesão e a igualdade social e tirará as devidas ilações da incontornável globalização, em termos de governo financeiro e económico mundial.
Como a história ensina, as grandes crises são também parteiras das grandes mudanças. Desta vez, esperemos uma mudança para melhor.
(Público, Terça-feira, 24 de Fevereiro, 2009)
Da actual crise económica sabemos que é profunda, global e prolongada. Profunda, pela intensidade dos seus efeitos na contracção da actividade económica e no emprego. Global, porque não vai limitar-se às economias desenvolvidas (Estados Unidos, Europa, Japão), estando a afectar também a generalidade dos países por esse mundo fora. Prolongada, porque ainda não sabemos se já chegou ao fundo e quando se inicia a retoma. Estamos perante uma crise "uma-vez-num-século".
Tal como as crises que a antecederam, também esta será superada, embora com incontáveis "baixas", sem excluir a bancarrota de alguns países. Mas da crise e dos instrumentos usados para lhe responder vai sair necessariamente uma nova ordem económica, incluindo quanto ao papel do Estado na economia. As circunstâncias e os mecanismos que motivaram a crise - falta ou insuficiência de regulação dos mercados financeiros, excesso de "alavancagem" das instituições financeiras e de endividamento dos estados, das empresas e das famílias, globalização financeira sem regras e sem controlo, etc. - não podem deixar de ser doravante evitados e combatidos.
A primeira consequência vai ser naturalmente a criação de um novo sistema regulatório do sector financeiro, mais abrangente e mais intenso do que aquele que prevaleceu nas últimas décadas, abarcando todos os agentes (incluindo os fundos de risco e as agências de rating), todos os produtos (desde o crédito hipotecário aos produtos estruturados) e todas as instituições (desde a governação das instituições financeiras à arquitectura das autoridades reguladoras). Se o sistema financeiro se revelou demasiado importante para poder cair, há que o encarar como uma verdadeira responsabilidade pública.
A segunda consequência vai ser o controlo da globalização financeira. Não é possível manter uma supervisão acantonada a nível nacional, quando os mercados se mundializam sob a égide de grandes grupos financeiros multinacionais e de operações transfronteiriças sem fronteiras. Um mercado global exige uma supervisão global. Impõe-se a reforma profunda das instituições financeiras internacionais saídas da II Guerra Mundial, a transparência dos movimentos financeiros, o combate aos paraísos fiscais. No caso da UE, aliás, a necessidade de uma regulação financeira supranacional é exigência do mercado único, que não pode manter-se territorialmente segmentado para efeitos regulatórios.
A terceira consequência tem a ver com uma gestão mais prudente do crédito e do endividamento, tanto dos países como das empresas e das pessoas. Na origem da crise financeira, nos Estados Unidos, esteve uma enorme complacência com o dinheiro barato, o endividamento desmedido, a aposta no crescimento e no consumo a todo o custo, a miragem de uma "sociedade de proprietários" assente na aquisição de casa própria, que resultou numa orgia de crédito hipotecário de alto risco e numa "bolha imobiliária" insustentável. No fundo, a culpa primeira da crise tem de ser imputada à irresponsável política de juros baixos, de crédito barato e de excessiva alavancagem financeira seguida pela Reserva Federal dos Estados Unidos. Os países, as empresas e as pessoas não podem viver indefinidamente acima das suas possibilidades, numa espiral de endividamento interno e externo.
Para além das suas vítimas imediatas em termos de desemprego, de activos perdidos e de empresas abatidas, esta crise faz duas vítimas bem mais merecidas. Uma delas é a mundividência neoliberal que dominou o pensamento económico e político nas últimas três décadas; a outra é a versão norte-americana do capitalismo de mercado, que vinha sendo cada vez mais mimetizado como modelo universal.
Assente na ideia da soberania e auto-suficiência do mercado, na auto-regulação da concorrência, na noção da regulação pública como um estorvo, no total afastamento do Estado da economia, na redução do Estado às "tarefas soberanas" (defesa, segurança, ordem pública, justiça), na baixa geral dos impostos, na diabolização dos serviços públicos, na "auto-responsabilidade" dos indivíduos -, o neoliberalismo viu-se rotundamente negado, mesmo por alguns dos seus anteriores arautos, quando todos os governos, independentemente da sua orientação política, tiveram de vir em socorro dos mercados financeiros (incluindo a nacionalização de bancos), quanto apostaram maciçamente no investimento público para compensar a quebra do investimento privado, quando se viram obrigados a amortecer por todos os meios o impacto social da crise.
A outra vítima é o modelo norte-americano (e em geral anglo-saxónico) do capitalismo. Vem desde há muito a investigação sobre as diferentes "variedades" ou "modalidades" do capitalismo contemporâneo, separando por um lado o modelo europeu continental de "economia social de mercado regulado", assente sobre a coordenação e regulação pública e sobre a responsabilidade social do Estado, e por outro lado o modelo anglo-saxónico de "economia liberal de mercado", assente na ausência de regulação ou numa "regulação light" e na falta de compromisso do Estado com a protecção social. Tendo eclodido no âmago deste segundo modelo, e por causa dele, a crise é também a sua condenação.
Se é lícito antecipar os tempos que hão-de vir depois de esta crise passar, assistiremos com certeza à afirmação de um novo paradigma político-económico que, embora sem questionar a economia de mercado em si mesma, revalorizará a importância crucial da regulação pública e o próprio papel da economia pública (em especial no sector financeiro), restaurará a responsabilidade do Estado com a coesão e a igualdade social e tirará as devidas ilações da incontornável globalização, em termos de governo financeiro e económico mundial.
Como a história ensina, as grandes crises são também parteiras das grandes mudanças. Desta vez, esperemos uma mudança para melhor.
(Público, Terça-feira, 24 de Fevereiro, 2009)