17 de dezembro de 2009
Aminatou, pelo seu povo
por Ana Gomes
À hora a que escrevo, não sei se está ainda viva. E se estiver agora, se estará quando este artigo sair publicado. Ou depois, quando você, leitor ou leitora, desfolhar o "Jornal de Leiria" e, por acaso, o ler.
Escrevo sobre Aminatou Haidar, que eu quero que viva. Uma mulher de 42 anos, com 2 filhos adolescentes, que está impedida de voltar a casa, em El Ayoun, no Sahara Ocidental.
Aminatou foi deportada, apesar dos seus protestos, de um aeroporto marroquino. Voltava a casa, de receber um prémio nos EUA, de uma Fundação ligada à família Kennedy, distinguida por ser uma lutadora pelos direitos humanos do povo saharaui, que resiste à ocupação marroquina desde que Espanha decidiu, em 1975, abandonar aquela antiga colónia - sem cuidar de assumir as suas responsabilidades para com os saharauis, seguindo o exemplo vizinho de Portugal relativamente aos timorenses.
Aminatou protesta contra a sua deportação, pela forma mais pacífica, mas mais contundente e estridente, que tem ao seu alcance: uma greve da fome. Que já dura há um mês. Aminatou protesta contra as autoridades marroquinas que oprimem o seu povo, que cruamente a expulsaram e que não cessam de a procurar humilhar, dizendo-a instrumento de manipuladores argelinos. Aminatou protesta, também, contra as autoridades espanholas que são coniventes pelo silêncio e inacção com a opressão do seu povo.
Aminatou não é para mim só um nome, uma figura emblemática, mas distante. Conheço-a pessoalmente, estive com ela várias vezes, em Lisboa e em Bruxelas, nos últimos anos. Conheço-lhe as convicções inquebrantáveis e a fibra de carácter, intransponível como a imensidão das dunas do do Hamada - o deserto dos desertos - onde resiste, em condições duríssimas uma parte do seu povo em campos de refugiados, junto a Tindouf, perto da fronteira entre Marrocos e a Argélia. Conheço-lhe a figura frágil, as mãos esguias, o sorriso doce, o olhar determinado, a palavra persuasiva, inflamatória mesmo, o lenço tradicional e os óculos modernos, a lágrima a escorrer, incontrolada, ao falar do que sofre a sua gente.
‘É uma agente argelina, é tudo uma montagem dos argelinos, já o prémio na Fundação Kennedy foi orquestrado pelos agentes de ‘lobby’ contratados em Washington pelos argelinos’ disse-me um velho amigo, embaixador marroquino, com quem por acaso me cruzei, na semana passada, no átrio de um hotel em Nova Iorque, enquanto afectuosamente me admoestava por eu ... estar contra Marrocos. Respondi-lhe o que respondia a semelhantes admoestações de indonésios antes do referendo em Timor Leste resolver tudo: "não é estar contra Marrocos; é estar a favor de quem vive oprimido, os saharauis". E de Aminatou, pessoalmente. Que sei que jamais será instrumento de ninguém, senão das suas convicções. Que não encena o protesto, por que quem quer que seja lhe pague ou lho ordene. Que querendo muito viver pelos seus filhos, está disposta a morrer pelo seu povo. Dito isto, não desconto o aproveitamento argelino – também Portugal capitalizava, depois de Santa Cruz, com cada novo massacre que os militares indonésios cometiam em Timor Leste. Mas "e que ganha com isto Marrocos?’ pergunto, encostando às tábuas o meu amigo da diplomacia marroquina, ’o que ganha Marrocos por há anos fingir que negoceia mas de facto continuar a obstruir uma solução pacífica e negociada para o conflito?’.
Argumentos cada parte num conflito esgrime. Discernimento é o que cabe a quem está de fora e tem, mais tarde ou mais cedo, de tomar posição, até porque em causa pode estar a sua própria segurança. É o que se exige aos governos europeus, que até aqui tem fingido não ver o conflito que opõe o Sahara Ocidental a Marrocos, apesar de ele estar na ONU desde 1974, exactamente no mesmo Comité da Descolonização em que esteve Timor Leste até que se tornou independente. Governos europeus como os de Portugal e Espanha, que não vêem o perigo de se prolongar o conflito, apesar de o Sahara Ocidental estar aqui tão perto, mesmo sem dobrar o Cabo Bojador, numa zona de interesse estratégico para a segurança europeia, pois naquelas areias desérticas já actuam grupos da Al Qaeda e cartéis do narcotráfico.
A greve de fome da Aminatou já a terá debilitado para além do recuperável. Mas também já fortaleceu a causa do seu povo e debilitou devastadoramente a posição de Marrocos. A Europa não vai poder continuar a fazer vista grossa. O PE vai, esta semana, aprovar uma resolução de urgência sobre este caso.
Cabe a Madrid e aos seus parceiros europeus agir urgentemente e convencer Marrocos a deixar Aminatou voltar a casa. Viva. Pois o retrato de Aminatou enfraquecida alumia já, irreversivelmente, esta presidência espanhola da UE. Seria demasiado trágico que repentinamente a luz se apagasse.
publicado no Jornal de Leiria, 17 de Dezembro de 2009
À hora a que escrevo, não sei se está ainda viva. E se estiver agora, se estará quando este artigo sair publicado. Ou depois, quando você, leitor ou leitora, desfolhar o "Jornal de Leiria" e, por acaso, o ler.
Escrevo sobre Aminatou Haidar, que eu quero que viva. Uma mulher de 42 anos, com 2 filhos adolescentes, que está impedida de voltar a casa, em El Ayoun, no Sahara Ocidental.
Aminatou foi deportada, apesar dos seus protestos, de um aeroporto marroquino. Voltava a casa, de receber um prémio nos EUA, de uma Fundação ligada à família Kennedy, distinguida por ser uma lutadora pelos direitos humanos do povo saharaui, que resiste à ocupação marroquina desde que Espanha decidiu, em 1975, abandonar aquela antiga colónia - sem cuidar de assumir as suas responsabilidades para com os saharauis, seguindo o exemplo vizinho de Portugal relativamente aos timorenses.
Aminatou protesta contra a sua deportação, pela forma mais pacífica, mas mais contundente e estridente, que tem ao seu alcance: uma greve da fome. Que já dura há um mês. Aminatou protesta contra as autoridades marroquinas que oprimem o seu povo, que cruamente a expulsaram e que não cessam de a procurar humilhar, dizendo-a instrumento de manipuladores argelinos. Aminatou protesta, também, contra as autoridades espanholas que são coniventes pelo silêncio e inacção com a opressão do seu povo.
Aminatou não é para mim só um nome, uma figura emblemática, mas distante. Conheço-a pessoalmente, estive com ela várias vezes, em Lisboa e em Bruxelas, nos últimos anos. Conheço-lhe as convicções inquebrantáveis e a fibra de carácter, intransponível como a imensidão das dunas do do Hamada - o deserto dos desertos - onde resiste, em condições duríssimas uma parte do seu povo em campos de refugiados, junto a Tindouf, perto da fronteira entre Marrocos e a Argélia. Conheço-lhe a figura frágil, as mãos esguias, o sorriso doce, o olhar determinado, a palavra persuasiva, inflamatória mesmo, o lenço tradicional e os óculos modernos, a lágrima a escorrer, incontrolada, ao falar do que sofre a sua gente.
‘É uma agente argelina, é tudo uma montagem dos argelinos, já o prémio na Fundação Kennedy foi orquestrado pelos agentes de ‘lobby’ contratados em Washington pelos argelinos’ disse-me um velho amigo, embaixador marroquino, com quem por acaso me cruzei, na semana passada, no átrio de um hotel em Nova Iorque, enquanto afectuosamente me admoestava por eu ... estar contra Marrocos. Respondi-lhe o que respondia a semelhantes admoestações de indonésios antes do referendo em Timor Leste resolver tudo: "não é estar contra Marrocos; é estar a favor de quem vive oprimido, os saharauis". E de Aminatou, pessoalmente. Que sei que jamais será instrumento de ninguém, senão das suas convicções. Que não encena o protesto, por que quem quer que seja lhe pague ou lho ordene. Que querendo muito viver pelos seus filhos, está disposta a morrer pelo seu povo. Dito isto, não desconto o aproveitamento argelino – também Portugal capitalizava, depois de Santa Cruz, com cada novo massacre que os militares indonésios cometiam em Timor Leste. Mas "e que ganha com isto Marrocos?’ pergunto, encostando às tábuas o meu amigo da diplomacia marroquina, ’o que ganha Marrocos por há anos fingir que negoceia mas de facto continuar a obstruir uma solução pacífica e negociada para o conflito?’.
Argumentos cada parte num conflito esgrime. Discernimento é o que cabe a quem está de fora e tem, mais tarde ou mais cedo, de tomar posição, até porque em causa pode estar a sua própria segurança. É o que se exige aos governos europeus, que até aqui tem fingido não ver o conflito que opõe o Sahara Ocidental a Marrocos, apesar de ele estar na ONU desde 1974, exactamente no mesmo Comité da Descolonização em que esteve Timor Leste até que se tornou independente. Governos europeus como os de Portugal e Espanha, que não vêem o perigo de se prolongar o conflito, apesar de o Sahara Ocidental estar aqui tão perto, mesmo sem dobrar o Cabo Bojador, numa zona de interesse estratégico para a segurança europeia, pois naquelas areias desérticas já actuam grupos da Al Qaeda e cartéis do narcotráfico.
A greve de fome da Aminatou já a terá debilitado para além do recuperável. Mas também já fortaleceu a causa do seu povo e debilitou devastadoramente a posição de Marrocos. A Europa não vai poder continuar a fazer vista grossa. O PE vai, esta semana, aprovar uma resolução de urgência sobre este caso.
Cabe a Madrid e aos seus parceiros europeus agir urgentemente e convencer Marrocos a deixar Aminatou voltar a casa. Viva. Pois o retrato de Aminatou enfraquecida alumia já, irreversivelmente, esta presidência espanhola da UE. Seria demasiado trágico que repentinamente a luz se apagasse.
publicado no Jornal de Leiria, 17 de Dezembro de 2009