27 de dezembro de 2009
A Europa e os EUA
por Ana Gomes, Eurodeputada do PS
O European Council on Foreign Relations publicou um relatório sobre as relações transatlânticas (http://ecfr.3cdn.net/05b80f1a80154dfc64_x1m6bgxc2.pdf) que assinala a desunião entre os países da UE na relação com Washington, a ânsia de alguns em cultivar uma "relação privilegiada", competindo pela atenção americana, e a mania de lidar com assuntos fundamentais como Afeganistão, Médio Oriente ou a Rússia, não como desafios que a Europa deve enfrentar, mas como oportunidades para "brilhar" na lealdade a Washington. Todas estas características têm apenas um resultado prático do lado de lá do Atlântico: projectar uma cacofonia de interesses mesquinhos, incompatíveis com uma União Europeia aspirando a ser actor global e parceiro dos EUA.
De facto, a maioria das capitais europeias ainda não compreendeu que a União Europeia - e a união europeia! - é a única resposta para o declínio relativo do poder da Europa no mundo. A culpa não é dos americanos: é dos europeus que preferem ater-se a agendas nacionais, persistindo na desresponsabilização da UE.
Enquanto os EUA defendem pragmaticamente os seus interesses, os europeus justificam a impotência com mitos e narrativas sentimentais sobre a sua história. É o caso do nosso país, onde a subserviência em relação aos EUA (Iraque, "renditions", Tratado das Lajes não ratificado pelos EUA, etc) é apresentada como instrumental de uma suposta "relação privilegiada". Relação que ninguém do lado de lá valoriza, nem mesmo quando há significativo esforço português. Um exemplo que acabo de testemunhar: uma conferência sobre as relações UE/EUA, organizada no passado dia 10 pela Universidade John Hopkins, em Washington, incluiu um painel sobre energia onde foi destacado o percurso de Espanha nas renováveis, sem qualquer menção a Portugal ou sequer ao investimento feito pela EDP no controlo da companhia americana Horizon, o 4o. maior produtor eólico a nível mundial...
O Afeganistão ilustra a demissão europeia. Apesar de desde 2002 contribuir com €1000 milhões por ano para a reconstrução do país, ter dezenas de milhares de soldados europeus num dos teatros de guerra mais perigosos do mundo (com sacrifício de mais de 500 vidas), a Europa - a União Europeia e os seus Estados Membros - foi até agora incapaz de contribuir para a orientação estratégica da presença internacional no Afeganistão. Os europeus trataram o Afeganistão como teste à sua lealdade para com o aliado americano, em vez de desenvolverem uma narrativa própria, nacional ou europeia, sobre as razões para a sua presença no terreno: mostrando o Afeganistão como desafio à segurança europeia e a presença internacional, por meios militares e civis, como necessidade a longo prazo. O actual descalabro no Afeganistão resultou, sem dúvida, dos muitos erros da Administração Bush; mas durante todos estes anos, os governos europeus - incluindo os que integram a força NATO no Afeganistão - foram incapazes de confrontar Washington com uma abordagem alternativa e coerente. Só recentemente a UE apresentou um ambicioso plano de acção para o Afeganistão e para o Paquistão.
O Tratado de Lisboa tem implicações importantes para a coerência e a eficácia do papel da União Europeia no mundo. Mas a política externa da União Europeia - incluindo a capacidade de resolver crises e conflitos - ainda vai depender da vontade soberana das capitais europeias e de decisões tomadas por consenso. E enquanto essas mesmas capitais continuarem a determinar as principais decisões de política externa por aquilo que acham que Washington quer, não há avanço institucional que salve a Europa da irrelevância na esfera internacional.
Só há uma solução: mais Europa. Ela não é incompatível com uma relação transatlântica forte e eficaz. Antes pelo contrário, na era Obama, que faz ressaltar valores e interesses que europeus e americanos partilham. A relação da Europa com os EUA depende da existência de uma UE coerente, unida e preparada para assumir as suas responsabilidades na segurança global. E só assim, também, a UE será globalmente relevante.
(publicado no Jornal "PUBLICO" em 18.12.09)
O European Council on Foreign Relations publicou um relatório sobre as relações transatlânticas (http://ecfr.3cdn.net/05b80f1a80154dfc64_x1m6bgxc2.pdf) que assinala a desunião entre os países da UE na relação com Washington, a ânsia de alguns em cultivar uma "relação privilegiada", competindo pela atenção americana, e a mania de lidar com assuntos fundamentais como Afeganistão, Médio Oriente ou a Rússia, não como desafios que a Europa deve enfrentar, mas como oportunidades para "brilhar" na lealdade a Washington. Todas estas características têm apenas um resultado prático do lado de lá do Atlântico: projectar uma cacofonia de interesses mesquinhos, incompatíveis com uma União Europeia aspirando a ser actor global e parceiro dos EUA.
De facto, a maioria das capitais europeias ainda não compreendeu que a União Europeia - e a união europeia! - é a única resposta para o declínio relativo do poder da Europa no mundo. A culpa não é dos americanos: é dos europeus que preferem ater-se a agendas nacionais, persistindo na desresponsabilização da UE.
Enquanto os EUA defendem pragmaticamente os seus interesses, os europeus justificam a impotência com mitos e narrativas sentimentais sobre a sua história. É o caso do nosso país, onde a subserviência em relação aos EUA (Iraque, "renditions", Tratado das Lajes não ratificado pelos EUA, etc) é apresentada como instrumental de uma suposta "relação privilegiada". Relação que ninguém do lado de lá valoriza, nem mesmo quando há significativo esforço português. Um exemplo que acabo de testemunhar: uma conferência sobre as relações UE/EUA, organizada no passado dia 10 pela Universidade John Hopkins, em Washington, incluiu um painel sobre energia onde foi destacado o percurso de Espanha nas renováveis, sem qualquer menção a Portugal ou sequer ao investimento feito pela EDP no controlo da companhia americana Horizon, o 4o. maior produtor eólico a nível mundial...
O Afeganistão ilustra a demissão europeia. Apesar de desde 2002 contribuir com €1000 milhões por ano para a reconstrução do país, ter dezenas de milhares de soldados europeus num dos teatros de guerra mais perigosos do mundo (com sacrifício de mais de 500 vidas), a Europa - a União Europeia e os seus Estados Membros - foi até agora incapaz de contribuir para a orientação estratégica da presença internacional no Afeganistão. Os europeus trataram o Afeganistão como teste à sua lealdade para com o aliado americano, em vez de desenvolverem uma narrativa própria, nacional ou europeia, sobre as razões para a sua presença no terreno: mostrando o Afeganistão como desafio à segurança europeia e a presença internacional, por meios militares e civis, como necessidade a longo prazo. O actual descalabro no Afeganistão resultou, sem dúvida, dos muitos erros da Administração Bush; mas durante todos estes anos, os governos europeus - incluindo os que integram a força NATO no Afeganistão - foram incapazes de confrontar Washington com uma abordagem alternativa e coerente. Só recentemente a UE apresentou um ambicioso plano de acção para o Afeganistão e para o Paquistão.
O Tratado de Lisboa tem implicações importantes para a coerência e a eficácia do papel da União Europeia no mundo. Mas a política externa da União Europeia - incluindo a capacidade de resolver crises e conflitos - ainda vai depender da vontade soberana das capitais europeias e de decisões tomadas por consenso. E enquanto essas mesmas capitais continuarem a determinar as principais decisões de política externa por aquilo que acham que Washington quer, não há avanço institucional que salve a Europa da irrelevância na esfera internacional.
Só há uma solução: mais Europa. Ela não é incompatível com uma relação transatlântica forte e eficaz. Antes pelo contrário, na era Obama, que faz ressaltar valores e interesses que europeus e americanos partilham. A relação da Europa com os EUA depende da existência de uma UE coerente, unida e preparada para assumir as suas responsabilidades na segurança global. E só assim, também, a UE será globalmente relevante.
(publicado no Jornal "PUBLICO" em 18.12.09)