19 de agosto de 2010
As SCUT e as queixas do Norte
Por Vital Moreira
Os dirigentes políticos locais e as "forças vivas" do Porto e do Norte em geral rebelaram-se contra a introdução de portagens em várias autoestradas da região até agora em regime Scut ("sem custos para o utente"), considerando-a injusta em si mesma ou pelo menos uma discriminação negativa contra o Norte, por não se aplicar em todo o país. Não têm razão quanto ao fundo da questão, como é fácil provar, mas a experiência mostra que as reivindicações do Norte têm grande possibilidade de serem atendidas. Não deveria ser assim desta vez.
O conceito de Scut aplica-se às autoestradas financiadas e exploradas por empresas privadas, mediante concessão pública, cuja remuneração provém da utilização que elas tenham, com a diferença porém de o pagamento não ficar a cargo dos utentes, como nas demais autoestradas, mas sim do Estado, ou seja, dos contribuintes. Sendo infraestruturas de valor acrescentado, nunca deveriam ser gratuitas, nem ser pagas por todos os contribuintes, incluindo pelos residentes em regiões que nem sequer dispõem de estradas decentes.
Não tendo havido desde o princípio um critério minimamente objetivo de identificação das regiões que deveriam beneficiar da isenção de pagamento (critério que só foi decidido pelo último Governo), o conceito prestava-se a aproveitamento pelas regiões mais influentes ou a favoritismos políticos de circunstância. Tendo-se multiplicado as autoestradas Scut, elas começaram a ser um pesado encargo para as finanças públicas, limitando desde logo a capacidade para investir em estradas nas regiões mais carenciadas. Dupla injustiça territorial, portanto.
Pensadas inicialmente para as regiões do interior menos desenvolvido ou para acesso às mesmas, como forma de "ação positiva" em favor da coesão territorial, em breve, porém, as autoestradas Scut se estenderam às regiões litorais, nomeadamente no Algarve e no Norte Litoral, a pretexto da má qualidade da rede rodoviária alternativa. Nenhuma região, porém, beneficiou maciçamente das Scut como a região do Porto e o Norte Litoral em geral. Basta ver um mapa rodoviário para verificar a enorme rede de autoestradas gratuitas na área metropolitana do Porto, sem nenhum paralelo em Lisboa, muito menos em qualquer outra região do país. Com exceção do período limitado em que a CREL (Circular Regional Externa de Lisboa) foi gratuita, o Porto e a sua região gozou de uma situação privilegiada durante todos estes anos em matéria de autoestradas de uso gratuito. Aliás, mesmo com a projetada introdução de portagens nos troços previstos, manter-se-á uma grande vantagem comparativa em relação ao resto do país, inclusivamente em relação a Lisboa.
Sucede, de resto, que esta capacidade do Porto de obter vantagens específicas não se reduz ao setor rodoviário. O mesmo sucede no que respeita aos transportes coletivos urbanos, cujos défices, tal como em Lisboa, não correm por conta dos respetivos municípios ou entidades intermunicipais, como no resto do país, mas sim à custa do Orçamento do Estado, ou seja, de todos os contribuintes nacionais. Acresce que o financeiramente insustentável projeto do metropolitano do Porto não cessa de alargar a sua rede, bem como os seus encargos para o Orçamento do Estado. Tal como Lisboa, o Porto "explora" o resto do país, onde os municípios asseguram eles mesmos os respetivos transportes coletivos.
Se recordarmos também o enorme sobrecusto da Casa da Música, o sobredimensionamento do Aeroporto Sá Carneiro e a projetada linha de TGV entre o Porto e Vigo, cuja exploração é mais do que financeiramente problemática (muito mais do que as outras linhas previstas), temos um quadro especialmente elucidativo sobre a capacidade do Norte para fazer prevalecer os seus interesses regionais perante Lisboa.
O que está por trás deste relativo sucesso?
Há pelo menos quatro razões relevantes. A primeira advém do peso político e eleitoral do Porto e da região Norte em geral, mercê da sua dimensão populacional, da sua importância económica e empresarial e da sua presença no sistema de comunicação social. O Porto é também a única região que tem uma representação ministerial regular nos governos do país, desafiando a tendência monopolista de Lisboa.
A segunda razão tem a ver com o forte sentido de coesão regional das organizações económicas e sociais do Norte, por de cima das clivagens partidárias intrarregionais. Nenhuma outra região, nem mesmo o Algarve, revela uma tal consistência na identificação e defesa dos interesses regionais face ao poder central.
A terceira razão decorre dos reais motivos de queixa do Norte, nomeadamente no que respeita às dificuldades nos setores da indústria tradicional (têxteis, calçado, etc.) em consequência da concorrência internacional e ao tradicional favorecimento da região de Lisboa nos investimentos públicos, incluindo o desvio de fundos europeus de coesão em prejuízo da região Norte.
A última razão (mas não seguramente a menos importante) resulta da grande frustração do projeto de regionalização administrativa do país, que se encontra parado mais de trinta anos depois da entrada em vigor da Constituição, o que alimenta um enorme capital de queixa do Norte, levando Lisboa a tentar "comprá-lo" mediante sucessivas cedências às reivindicações nortistas.
O Norte tem razão quando sustenta que, a haver extinção das Scut, ela deve valer para todo o país. Mas não tem razão quando se queixa de uma "discriminação negativa" contra si, dada a situação privilegiada de que tem beneficiado nessa matéria, e muito menos quando alguns dos dirigentes locais namoram o populismo mais primário para mobilizar as populações para uma maria-da-fonte tripeira, que nada justifica.
Decididamente, as Scut nunca deveriam ter existido, muito menos no Litoral. É mais do que tempo de lhes pôr fim. O Norte deveria fazer parte da solução nacional.
(Publico, terça-feira, 29 de Junho de 2010)
Os dirigentes políticos locais e as "forças vivas" do Porto e do Norte em geral rebelaram-se contra a introdução de portagens em várias autoestradas da região até agora em regime Scut ("sem custos para o utente"), considerando-a injusta em si mesma ou pelo menos uma discriminação negativa contra o Norte, por não se aplicar em todo o país. Não têm razão quanto ao fundo da questão, como é fácil provar, mas a experiência mostra que as reivindicações do Norte têm grande possibilidade de serem atendidas. Não deveria ser assim desta vez.
O conceito de Scut aplica-se às autoestradas financiadas e exploradas por empresas privadas, mediante concessão pública, cuja remuneração provém da utilização que elas tenham, com a diferença porém de o pagamento não ficar a cargo dos utentes, como nas demais autoestradas, mas sim do Estado, ou seja, dos contribuintes. Sendo infraestruturas de valor acrescentado, nunca deveriam ser gratuitas, nem ser pagas por todos os contribuintes, incluindo pelos residentes em regiões que nem sequer dispõem de estradas decentes.
Não tendo havido desde o princípio um critério minimamente objetivo de identificação das regiões que deveriam beneficiar da isenção de pagamento (critério que só foi decidido pelo último Governo), o conceito prestava-se a aproveitamento pelas regiões mais influentes ou a favoritismos políticos de circunstância. Tendo-se multiplicado as autoestradas Scut, elas começaram a ser um pesado encargo para as finanças públicas, limitando desde logo a capacidade para investir em estradas nas regiões mais carenciadas. Dupla injustiça territorial, portanto.
Pensadas inicialmente para as regiões do interior menos desenvolvido ou para acesso às mesmas, como forma de "ação positiva" em favor da coesão territorial, em breve, porém, as autoestradas Scut se estenderam às regiões litorais, nomeadamente no Algarve e no Norte Litoral, a pretexto da má qualidade da rede rodoviária alternativa. Nenhuma região, porém, beneficiou maciçamente das Scut como a região do Porto e o Norte Litoral em geral. Basta ver um mapa rodoviário para verificar a enorme rede de autoestradas gratuitas na área metropolitana do Porto, sem nenhum paralelo em Lisboa, muito menos em qualquer outra região do país. Com exceção do período limitado em que a CREL (Circular Regional Externa de Lisboa) foi gratuita, o Porto e a sua região gozou de uma situação privilegiada durante todos estes anos em matéria de autoestradas de uso gratuito. Aliás, mesmo com a projetada introdução de portagens nos troços previstos, manter-se-á uma grande vantagem comparativa em relação ao resto do país, inclusivamente em relação a Lisboa.
Sucede, de resto, que esta capacidade do Porto de obter vantagens específicas não se reduz ao setor rodoviário. O mesmo sucede no que respeita aos transportes coletivos urbanos, cujos défices, tal como em Lisboa, não correm por conta dos respetivos municípios ou entidades intermunicipais, como no resto do país, mas sim à custa do Orçamento do Estado, ou seja, de todos os contribuintes nacionais. Acresce que o financeiramente insustentável projeto do metropolitano do Porto não cessa de alargar a sua rede, bem como os seus encargos para o Orçamento do Estado. Tal como Lisboa, o Porto "explora" o resto do país, onde os municípios asseguram eles mesmos os respetivos transportes coletivos.
Se recordarmos também o enorme sobrecusto da Casa da Música, o sobredimensionamento do Aeroporto Sá Carneiro e a projetada linha de TGV entre o Porto e Vigo, cuja exploração é mais do que financeiramente problemática (muito mais do que as outras linhas previstas), temos um quadro especialmente elucidativo sobre a capacidade do Norte para fazer prevalecer os seus interesses regionais perante Lisboa.
O que está por trás deste relativo sucesso?
Há pelo menos quatro razões relevantes. A primeira advém do peso político e eleitoral do Porto e da região Norte em geral, mercê da sua dimensão populacional, da sua importância económica e empresarial e da sua presença no sistema de comunicação social. O Porto é também a única região que tem uma representação ministerial regular nos governos do país, desafiando a tendência monopolista de Lisboa.
A segunda razão tem a ver com o forte sentido de coesão regional das organizações económicas e sociais do Norte, por de cima das clivagens partidárias intrarregionais. Nenhuma outra região, nem mesmo o Algarve, revela uma tal consistência na identificação e defesa dos interesses regionais face ao poder central.
A terceira razão decorre dos reais motivos de queixa do Norte, nomeadamente no que respeita às dificuldades nos setores da indústria tradicional (têxteis, calçado, etc.) em consequência da concorrência internacional e ao tradicional favorecimento da região de Lisboa nos investimentos públicos, incluindo o desvio de fundos europeus de coesão em prejuízo da região Norte.
A última razão (mas não seguramente a menos importante) resulta da grande frustração do projeto de regionalização administrativa do país, que se encontra parado mais de trinta anos depois da entrada em vigor da Constituição, o que alimenta um enorme capital de queixa do Norte, levando Lisboa a tentar "comprá-lo" mediante sucessivas cedências às reivindicações nortistas.
O Norte tem razão quando sustenta que, a haver extinção das Scut, ela deve valer para todo o país. Mas não tem razão quando se queixa de uma "discriminação negativa" contra si, dada a situação privilegiada de que tem beneficiado nessa matéria, e muito menos quando alguns dos dirigentes locais namoram o populismo mais primário para mobilizar as populações para uma maria-da-fonte tripeira, que nada justifica.
Decididamente, as Scut nunca deveriam ter existido, muito menos no Litoral. É mais do que tempo de lhes pôr fim. O Norte deveria fazer parte da solução nacional.
(Publico, terça-feira, 29 de Junho de 2010)