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19 de agosto de 2010

Aventureirismo constitucional 

Por Vital Moreira

As surpreendentes propostas do PSD para remodelar o nosso sistema político na próxima revisão constitucional não significam apenas, como já foi dito, o regresso a um passado que não merece ser re-editado. No seu conjunto as propostas são tão inconsistentes que só podem ser qualificadas como verdadeiro aventureirismo constitucional. Vejamos porquê.

A proposta mais chamativa consiste em voltar a dar ao Presidente da República o poder de demitir livremente o Governo, independentemente de dissolução da Assembleia da República, podendo substituí-lo por sua iniciativa, fora de qualquer ocorrência de demissão do primeiro-ministro ou por voto parlamentar de desconfiança. Como se sabe, era este o sistema originário da Constituição de 1976, durante o período constitucional transitório que vigorou até à primeira revisão constitucional, em 1982, que retirou tal poder ao Presidente, o qual, a partir daí, só pode demitir diretamente o Governo a título excecional, quanto estiver em causa o "regular funcionamento das instituições" (o que, por sinal, nunca sucedeu ao longo destes quase trinta anos).

Trata-se de uma profunda alteração do sistema de governo vigente e da sua própria filosofia. Como reconheceu o próprio líder do PSD, explicando a mudança, ela implica também recuperar a ideia da dupla responsabilidade política do Governo, simultaneamente perante o Parlamento e o Presidente da República, dando a este o poder de pedir contas pelo exercício do mandato governativo. O Governo passa a estar sob dupla dependência e sob duplo controlo, podendo ser derrubado por qualquer dos órgãos de cuja confiança depende. Como é bom de ver, e a nossa experiência constitucional confirma, o poder presidencial de demissão do Governo alimenta também um paralelo poder presidencial de intervenção na formação e orientação dos governos. Se estes passam a depender da confiança presidencial, é inevitável a tentação para a intervenção presidencial na escolha do primeiro-ministro e composição do Governo e na condução da ação governativa.

Ninguém contesta que a revisão de 1982 se traduziu numa decisão político-constitucional fundamental para o nosso sistema de governo, abandonando a ingerência presidencial na subsistência e ação do Governo e fazendo-o depender exclusivamente da Assembleia da República. O único modo de o Presidente poder influir indiretamente na permanência de um Governo passou a ser por via da dissolução parlamentar, desde que as subsequentes eleições parlamentares deem lugar a uma nova maioria. Ora, se a reforma de 1982 foi unanimemente considerada com uma alteração substancial do sistema de governo, é evidente que o regresso ao modelo anterior não pode deixar de ser considerada como uma reforma de igual gabarito.

Sucede que esta represidencialização do sistema de governo não poderia deixar de ter os mesmos efeitos sobre a instabilidade política que teve na primeira fase do regime constitucional. Nesse período de seis anos houve sete governos, entre os quais três ditos de "iniciativa presidencial". Primeiro, é óbvio que quando os governos estão sujeitos a uma dupla confiança tornam-se automaticamente mais vulneráveis, sobretudo (mas não somente) quando não existe sintonia política entre o Presidente da República e a maioria parlamentar existente. Segundo, como se viu, o poder presidencial de demissão acaba por justificar um poder presidencial na formação e atuação dos governos. Nada disso faltou no referido período. E nada faz supor que, três décadas depois, a mesma receita não teria os mesmos nefastos resultados.

O que surpreende é que o PSD, que foi coautor empenhado da reforma de 1982 e que durante todo este tempo sempre se manteve solidário com ela, venha agora anunciar a contrarreforma, sem que nada justifique essa inesperada viragem presidencialista. Qual a razão? Aparentemente, a única coisa que mudou foi que ao longo de vinte anos os ocupantes do Palácio de Belém eram oriundos do PS, enquanto agora há em Belém pela primeira vez um presidente saído da área do PSD, com grandes possibilidades de renovar o seu mandato. A ser esta a justificação - e outra não se vê -, trata-se de uma inaceitável deriva de oportunismo político. Cultivando até aqui a dominante parlamentar do sistema de governo vigente, o PSD está disposto a converter-se a um semipresidencialismo musculado só porque agora tem um dos seus duradouramente em Belém.

Mas as ideias do PSD não são somente retrógradas e oportunistas. São também contraditórias, pois, ao mesmo tempo que dão ao Presidente da República o poder de livremente demitir e de tutelar os governos, já reduzem a nada o poder do Presidente em caso de demissão parlamentar dos governos.

De facto, hoje, quando um governo é demitido por aprovação de moção de censura, cabe ao Presidente avaliar a situação e decidir se há condições para a formação de um novo governo na base da composição parlamentar existente ou se não resta senão convocar eleições antecipadas. Na proposta anunciada pelo PSD, tudo muda. Se os partidos que votaram a moção de censura tiverem acordado em formar governo entre eles, o Presidente da República teria de nomear esse governo, por menos consistente que o considerasse. Na falta de um acordo desses, o Presidente seria obrigado a dissolver a Assembleia e a convocar eleições antecipadas, mesmo havendo boas condições políticas para formar novo governo com suficiente base parlamentar. Em qualquer caso, o Presidente fica completamente manietado.

Independentemente da pertinência dessas soluções no quadro de um sistema de tipo parlamentar, nada as pode justificar no âmbito do semipresidencialismo "aditivado" que o PSD quer ressuscitar. Trata-se de uma óbvia, e comprometedora, incongruência.

Obviamente, estas propostas não vão vingar na revisão constitucional, por falta de apoio político suficiente. Mas o facto de terem sido feitas publicamente diz muito sobre a forma caprichosa, aventureira e irresponsável como o PSD aborda as mais sérias questões político-institucionais.

(Público, terça-feira, 20 de Julho de 2010)

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