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19 de agosto de 2010

Depois da recessão 

Por Vital Moreira

Tudo indica que a grande recessão económica desencadeada há três anos no setor financeiro norte-americano, tendo-se depois rapidamente globalizado, ficou para trás. A retoma económica parece firme. Entrámos, pois, na era pós-recessão. Todavia, o mundo não regressará ao estado de coisas anterior. Muita coisa não ficará como dantes. Primeiro, as sequelas da crise, sobretudo no plano social, far-se-ão sentir durante um período prolongado. Segundo, terão de retirar-se as lições que esta provação impõe para o futuro. Não se passa impunemente por uma crise desta dimensão.

Os mercados financeiros, onde começou a crise, serão sujeitos a mais intensa regulação, contra os fatores que estiveram na origem daquela. Dada a globalização económica, intensificar-se-ão os esforços para a criação de mecanismos de regulação global, sobretudo no setor financeiro. As teses neoliberais sobre os malefícios da intervenção do Estado e da regulação pública dos mercados - que dominaram as últimas décadas do pensamento económico e da política económica - ficarão de remissa enquanto a recordação da crise persistir. Muitos países sofrerão durante anos o impacto da recessão sobre as suas finanças públicas (défices orçamentais e endividamento público), tendo de adotar severas medidas de disciplina financeira.

Provavelmente, porém, a mais visível das consequências da crise será uma alteração substancial da paisagem económica mundial antes existente. As economias mais desenvolvidas, nomeadamente os Estados Unidos e a União Europeia, foram as mais fustigadas pela crise, sendo também aquelas que mais dificuldades mostram em retomar níveis de crescimento significativos. A sua liderança sairá debilitada ou pelo menos atenuada. As chamadas "economias emergentes" (China, Índia, Brasil, etc.), que já antes cresciam a ritmo muito superior às economias desenvolvidas, não só foram menos atingidas pela recessão mas também saíram dela mais cedo e com renovada pujança, sendo os verdadeiros motores da retoma da economia global. O seu atraso para o pelotão da frente vai encurtar mais rapidamente. Sendo favorecidas por custos de produção comparativamente baixos - sobretudo em matéria de custos de trabalho, mas também de encargos sociais e ambientais -, elas tiram agora partido das dificuldades acrescidas que a recessão trouxe às economias desenvolvidas. O poder económico move-se para leste e para sul.

A tradicional distinção entre os países desenvolvidos e o grosso dos "países em desenvolvimento" deixa de traduzir a realidade económica atual, sendo necessário contar com um grupo intermédio, que já não pode ser considerado em conjunto com os segundos, sem todavia ainda poder ser incluído entre os primeiros. Esta mudança implica a reavaliação das situações que se baseavam no dualismo anterior à crise, como sucedia no campo do comércio internacional, da ajuda ao desenvolvimento e outros. O falhanço da conferência de Copenhaga sobre o aquecimento climático e a paralisação da "Ronda de Doha" para um acordo global de comércio internacional não podem deixar de ser vistos como expressão dessa nova relação de forças económicas a nível mundial. Outras consequências podem ser antecipadas no governo das organizações globais (como o FMI), sem excluir obviamente as Nações Unidas.

E quanto à Europa? Especialmente afetada com a crise, a Europa está a sair dela de forma lenta, o que vai prolongar o elevado desemprego e os seus custos sociais. A pesada perda de receitas públicas provocada pela profunda retração da atividade económica e pelo aumento da despesa pública com vista a lutar contra a recessão (resgate do sistema financeiro, medidas de estímulo económico, proteção social de emergência) degradaram a situação das finanças públicas em muitos estados-membros, permitindo um perigoso contágio da superveniente crise da dívida grega. Uma crise orçamental somou-se à inicial crise do setor financeiro e à subsequente crise económica e social. A própria estabilidade da moeda única foi posta em causa.

São essencialmente duas as nefastas consequências estruturais desta tripla crise europeia.

Em primeiro lugar, tornou-se mais marcada a menor capacidade de recuperação económica da UE, quando comparada tanto com as economias emergentes como com os próprios Estados Unidos. Considerada em conjunto, a economia europeia revelou e acentuou a sua perda de competitividade relativa, estando ameaçada de um prolongado período de crescimento reduzido e de perda de terreno para os seus competidores globais. Seria estulto falar em "declínio da Europa", como alguns profetizam, mas seria irresponsabilidade ignorar os riscos de perda de protagonismo e de capacidade de gerar riqueza e bem-estar, condições essenciais para a sustentação do modelo social europeu.

Em segundo lugar, é manifesto que a crise também revelou e acentuou as assimetrias regionais dentro da União, especialmente entre o Norte e o Sul, ou entre o centro e as periferias, dependendo da perspetiva. As economias do Sul mostraram-se mais vulneráveis à recessão, estão a escapar dela com maiores dificuldades, foram mais atingidas pelos desequilíbrios orçamentais e muito provavelmente vão divergir em vez de convergir para os níveis médios de desenvolvimento económico dentro da UE. Se tivermos em conta os seus baixos níveis de competitividade e a grande dimensão dos seus défices externos e do seu endividamento externo, há todas as razões para preocupação.

Manifestamente, a grande recessão trouxe à UE novos desafios políticos, no plano interno e no plano global, onde é um player incontornável. As instituições europeias, armadas com os novos instrumentos do Tratado de Lisboa, incluindo no respeitante à coordenação da política económica e à ação externa comum, não podem falhar esses desafios.

(Público, terça-feira, 15 de Junho de 2010)

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