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19 de agosto de 2010

"Nunca desperdiçar uma boa crise" 

Por Vital Moreira

Como alguém disse, as crises podem ser oportunidade de ouro na busca de soluções para as ultrapassar - e para prevenir outras no futuro. Assim deverão proceder a União Europeia e os seus Estados-membros perante o terramoto causado pela crise financeira originada nos Estados Unidos há dois anos.

Na verdade, trata-se de uma tripla crise. Primeiro, foi a crise do setor financeiro, com a bancarrota ou ameaça de bancarrota de instituições financeiras, o aperto no crédito, a queda das bolsas. Segundo, foi a crise económica e social, em consequência daquela, traduzida na redução drástica da procura, do investimento e da atividade económica, com consequências dramáticas no desemprego. Finalmente, veio a crise das finanças públicas traduzida no súbito aumento dos défices orçamentais e no disparo da dívida pública, por causa da perda de receita fiscal e do agravamento da despesa pública.

Mercê de medidas coordenadas a nível da União, estas três sucessivas crises foram enfrentadas com maior ou menor determinação e acerto. O setor financeiro foi salvo, à custa de maciço apoio do Estado. A retoma económica está em curso, em virtude de vastos programas de estímulo público. A crise orçamental está a ser combatida, mediante dolorosos programas de austeridade.

Dois anos depois, a Europa está em vias de saída da mais grave crise financeiro-económica desde a grande recessão dos anos trinta do século passado. Para esse sucesso contribuíram as lições dos erros então cometidos, bem como a experiência entretanto acumulada. Mas foi decisivo também o facto de agora haver a União Europeia e de as respostas terem sido dadas num quadro da integração económica e política europeia. Sem as ações tomadas a nível da UE, a crise teria tido um impacto bem mais profundo e duradouro do que teve.

Mas seria impensável que depois disto tudo ficasse na mesma e voltássemos ao "business as usual". Impõem-se reformas profundas e ambiciosas.

A crise do setor financeiro revelou a carência de regulação e de supervisão dos mercados financeiros, sobretudo a nível da UE, bem como a falta de mecanismos de resgate ou de falência de bancos, sem necessidade de recurso ao orçamento do Estado. Num mercado financeiro integrado, como é o da União, impõe-se a criação de um sistema de supervisão "federal", capaz de superar a fragmentação dos sistemas de supervisão nacionais. Para prevenir a repetição futura de resgate público das instituições financeiras privadas à custa dos contribuintes, impõe-se a criação de fundos alimentados por contribuições das próprias instituições, calculadas em proporção dos seus ativos e dos seus riscos.

Se o combate à recessão económica implicou a coordenação dos pacotes de estímulo público a nível da EU, não é admissível que se perca a oportunidade para instituir mecanismos permanentes de coordenação das políticas económicas nacionais, desde logo para atenuar os desequilíbrios macro-económicos dentro da União, promover o crescimento e combater o défice de competitividade externa da própria economia europeia.

A crise orçamental, com maior impacto nos países onde a retração económica foi mais pronunciada ou onde a situação das finanças públicas era estruturalmente mais débil, veio obrigar a exigentes programas nacionais de austeridade e de re-equilíbrio orçamental. O abcesso grego veio revelar a possibilidade de "falência soberana" dentro da zona euro, por impossibilidade de refinanciamento da sua dívida. Daí a necessidade de encarar a criação de um mecanismo de empréstimos ad hoc, que os pais fundadores da moeda única não tinham julgado necessário.

Se a União e os Estados-membros foram em geral eficazes e expeditos na resposta à emergência das sucessivas fases da crise - com exceção da lamentável demora na resposta ao colapso da dívida grega, que salpicou outros países e ameaçou a própria estabilidade do euro -, já tem sido extraordinariamente lenta na montagem das instituições e dos mecanismos pós-crise.

O pacote da regulação e de supervisão financeira, apresentado pela Comissão Europeia há quase um ano, arrasta-se há meses no Parlamento Europeu, sujeito à pressão dos lóbis financeiros. A questão do financiamento do resgate ou encerramento de bancos só agora foi objeto de uma comunicação da Comissão Europeia, propondo a criação de fundos nacionais alimentados por contribuições dos bancos (o que é uma solução "coxa", comparada com a alternativa de um fundo europeu, mais congruente com a já elevada integração do mercado financeiro europeu).

A ideia de maior coordenação europeia das políticas económicas nacionais tem marcado passo, entre a visão mais integracionista da Comissão Europeia e de alguns Estados-membros (como a França e a Espanha), que propõem um verdadeiro "governo económico" da União, e as visões minimalistas de outros, com a Alemanha à cabeça. O Conselho Europeu criou um grupo de trabalho, coordenado pelo seu próprio presidente, Von Rompuy, mas concedeu-lhe um mandato até ao fim do ano (!) para apresentar o seu relatório. Tendo sido arrepiadoramente lenta na resposta à crise orçamental grega e à contaminação que ela produziu noutros países, a União já foi bem mais expedita na apresentação de medidas para debelar e prevenir novas crises orçamentais, incluindo a fiscalização das contas nacionais, o controlo prévio da disciplina orçamental e a punição dos Estados prevaricadores. Mas a ideia de um mecanismo permanente para ajuda aos países em dificuldades orçamentais excecionais continua a ser objeto de especulação sem resultado.

A tripla crise mostrou a indispensabilidade da UE. A União não pode falhar as suas responsabilidades nem perder pela demora na sua assunção. Depois da crise há muita coisa que não pode ficar na mesma.

(Público, terça-feira, 8 de Junho de 2010)

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