27 de agosto de 2010
Subsídios fiscais
Por Vital Moreira
As deduções fiscais de certas despesas no imposto sobre o rendimento (IRS) redundam quase sempre num privilégio dos titulares de mais altos rendimentos, que são quem mais pode aproveitar delas. Isso é assim especialmente quando as deduções não têm "tecto", sendo uma percentagem das despesas efectuadas, como sucede com os encargos com saúde. Mas ainda é assim quando existe um limite, como é o caso dos encargos com educação e com os relacionadas com imóveis. Com a agravante de neste último caso tal subsídio ser socialmente ainda menos justificável do que a dedução fiscal com despesas de saúde e de educação.
Com efeito, o regime do IRS admite a dedução das despesas com juros ou amortizações de dívidas contraídas para a aquisição, para construção ou remodelação ou para arrendamento de habitação própria dos contribuintes, equivalente a 30% desses encargos, com um limite anual que neste momento ronda os 600 euros. Faz sentido este subsídio fiscal?
Como é evidente à partida, este subsídio só abrange na prática os encargos com a aquisição, construção ou remodelação de casa própria. Embora a lei refira também os encargos com arrendamento, na vida real isso é pouco provável, pois as pessoas não pedem em geral dinheiro para pagar rendas. Daí que o referido subsídio fiscal só favoreça por via de regra quem tem rendimentos bastantes para se abalançar a comprar ou construir habitação própria e não quem tem de se recorrer ao arrendamento.
Em segundo lugar, quem beneficia dessa dedução fiscal são os contribuintes que têm rendimentos suficientemente altos para poder tirar partido integralmente dela, na medida em que, tudo somado, pagariam imposto pelo menos igual ao valor máximo da dedução. Tal quer dizer que ficam fora do benefício, ou não aproveitam inteiramente dele, todos os que têm rendimentos abaixo do limiar para pagar IRS ou que pagam imposto inferior àquela quantia, o que não é pequena proporção dos portugueses. Trata-se portnato de um benefício que, ao mesmo tempo que subsidia quem não precisa, está longe de ser universal, deixando de fora justamente os mais pobres. Esta é, de resto, uma objecção contra todos os apoios sociais por via de deduções fiscais.
Por conseguinte, esta medida não pode ser justificada - como tradicionalmente é - como instrumento de promoção do direito à habitação, porquanto exclui precisamente os que mais necessitam de ajuda para a obterem. Ainda menos justificável era a mal avisada política de apoiar financeiramente a compra de habitação pelos jovens através de uma generosa bonificação de juros - que durou alguns anos -, pois era óbvio que este benefício criava uma acumulação de vantagens que aproveitava aos mesmos que já beneficiavam da dedução fiscal.
Para além de ser um incentivo à aquisição de casa própria por parte da classe média, a política de apoio fiscal ao crédito à habitação - em que convergiram os partidos políticos e os interesses da banca e da construção civil - contribuiu decididamente para o endividamento dos portugueses e da economia nacional, visto que, na insuficiência de poupança nacional, os fundos necessários foram naturalmente obtidos pelos bancos nos mercados financeiros internacionais. Esse efeito nocivo do incentivo fiscal da casa própria foi potenciado por uma desenfreada política de promoção bancária do crédito hipotecário, aproveitando a baixa da taxa de juros que se seguiu a adesão à moeda única europeia, passando pelo empréstimo do valor total da casa (muitas vezes superior, a título de supostas obras de beneficiação) e de prolongamento da vida dos empréstimos.
Entre os efeitos colaterais negativos desta política conta-se também a acrescida limitação da mobilidade territorial no nosso país. Dada a crescente percentagem de famílias com habitação própria - maior do que a média europeia - e dado o excessivo peso do imposto de transacção de habitações - o que é uma incongruência fiscal -, torna-se enormemente onerosa a mudança de residência, dificultando a mobilidade laboral e profissional.
É altura de rever esta política de subsídio fiscal ao crédito à compra de casa, quando com a retoma económica o crédito hipotecário está de novo em crescimento e se torna necessário limitar o endividamento externo. Não são sobretudo razões financeiras, mas antes razões de política social que reclamam a eliminação das actuais deduções fiscais - que discriminam contra quem menos rendimentos tem - em favor de uma efectiva política de garantia do acesso à habitação de todas as famílias portuguesas, apoiando quem mais precisa de ajuda pública.
Em vez de subsidiar tendencialmente todos os contribuintes de IRS, o Estado deveria assegurar o direito à habitação de quem não tem meios para o conseguir por si mesmo, subsidiando os encargos com aquisição ou arrendamento de casa somente dos que não dispõem de rendimentos acima do limiar tecnicamente considerado suficiente para esse efeito. A poupança da actual despesa fiscal com as deduções (mesmo mantendo, como é devido, as actualmente existentes) deveria ser desviada para esse novo benefício social, agora destinado a quem realmente precisa.
O Estado não tem nenhuma obrigação de subsidiar fiscalmente a compra de habitação por quem menos necessita, antes tem a obrigação de garantir a satisfação do direito à habitação - aliás, constitucionalmente garantido - daqueles que o não podem fazer pelos seus próprios meios.
(Público, terça-feira, 24 de Agosto de 2010)
As deduções fiscais de certas despesas no imposto sobre o rendimento (IRS) redundam quase sempre num privilégio dos titulares de mais altos rendimentos, que são quem mais pode aproveitar delas. Isso é assim especialmente quando as deduções não têm "tecto", sendo uma percentagem das despesas efectuadas, como sucede com os encargos com saúde. Mas ainda é assim quando existe um limite, como é o caso dos encargos com educação e com os relacionadas com imóveis. Com a agravante de neste último caso tal subsídio ser socialmente ainda menos justificável do que a dedução fiscal com despesas de saúde e de educação.
Com efeito, o regime do IRS admite a dedução das despesas com juros ou amortizações de dívidas contraídas para a aquisição, para construção ou remodelação ou para arrendamento de habitação própria dos contribuintes, equivalente a 30% desses encargos, com um limite anual que neste momento ronda os 600 euros. Faz sentido este subsídio fiscal?
Como é evidente à partida, este subsídio só abrange na prática os encargos com a aquisição, construção ou remodelação de casa própria. Embora a lei refira também os encargos com arrendamento, na vida real isso é pouco provável, pois as pessoas não pedem em geral dinheiro para pagar rendas. Daí que o referido subsídio fiscal só favoreça por via de regra quem tem rendimentos bastantes para se abalançar a comprar ou construir habitação própria e não quem tem de se recorrer ao arrendamento.
Em segundo lugar, quem beneficia dessa dedução fiscal são os contribuintes que têm rendimentos suficientemente altos para poder tirar partido integralmente dela, na medida em que, tudo somado, pagariam imposto pelo menos igual ao valor máximo da dedução. Tal quer dizer que ficam fora do benefício, ou não aproveitam inteiramente dele, todos os que têm rendimentos abaixo do limiar para pagar IRS ou que pagam imposto inferior àquela quantia, o que não é pequena proporção dos portugueses. Trata-se portnato de um benefício que, ao mesmo tempo que subsidia quem não precisa, está longe de ser universal, deixando de fora justamente os mais pobres. Esta é, de resto, uma objecção contra todos os apoios sociais por via de deduções fiscais.
Por conseguinte, esta medida não pode ser justificada - como tradicionalmente é - como instrumento de promoção do direito à habitação, porquanto exclui precisamente os que mais necessitam de ajuda para a obterem. Ainda menos justificável era a mal avisada política de apoiar financeiramente a compra de habitação pelos jovens através de uma generosa bonificação de juros - que durou alguns anos -, pois era óbvio que este benefício criava uma acumulação de vantagens que aproveitava aos mesmos que já beneficiavam da dedução fiscal.
Para além de ser um incentivo à aquisição de casa própria por parte da classe média, a política de apoio fiscal ao crédito à habitação - em que convergiram os partidos políticos e os interesses da banca e da construção civil - contribuiu decididamente para o endividamento dos portugueses e da economia nacional, visto que, na insuficiência de poupança nacional, os fundos necessários foram naturalmente obtidos pelos bancos nos mercados financeiros internacionais. Esse efeito nocivo do incentivo fiscal da casa própria foi potenciado por uma desenfreada política de promoção bancária do crédito hipotecário, aproveitando a baixa da taxa de juros que se seguiu a adesão à moeda única europeia, passando pelo empréstimo do valor total da casa (muitas vezes superior, a título de supostas obras de beneficiação) e de prolongamento da vida dos empréstimos.
Entre os efeitos colaterais negativos desta política conta-se também a acrescida limitação da mobilidade territorial no nosso país. Dada a crescente percentagem de famílias com habitação própria - maior do que a média europeia - e dado o excessivo peso do imposto de transacção de habitações - o que é uma incongruência fiscal -, torna-se enormemente onerosa a mudança de residência, dificultando a mobilidade laboral e profissional.
É altura de rever esta política de subsídio fiscal ao crédito à compra de casa, quando com a retoma económica o crédito hipotecário está de novo em crescimento e se torna necessário limitar o endividamento externo. Não são sobretudo razões financeiras, mas antes razões de política social que reclamam a eliminação das actuais deduções fiscais - que discriminam contra quem menos rendimentos tem - em favor de uma efectiva política de garantia do acesso à habitação de todas as famílias portuguesas, apoiando quem mais precisa de ajuda pública.
Em vez de subsidiar tendencialmente todos os contribuintes de IRS, o Estado deveria assegurar o direito à habitação de quem não tem meios para o conseguir por si mesmo, subsidiando os encargos com aquisição ou arrendamento de casa somente dos que não dispõem de rendimentos acima do limiar tecnicamente considerado suficiente para esse efeito. A poupança da actual despesa fiscal com as deduções (mesmo mantendo, como é devido, as actualmente existentes) deveria ser desviada para esse novo benefício social, agora destinado a quem realmente precisa.
O Estado não tem nenhuma obrigação de subsidiar fiscalmente a compra de habitação por quem menos necessita, antes tem a obrigação de garantir a satisfação do direito à habitação - aliás, constitucionalmente garantido - daqueles que o não podem fazer pelos seus próprios meios.
(Público, terça-feira, 24 de Agosto de 2010)