25 de setembro de 2010
Até a Suécia...
Por Vital Moreira
Culminando uma série de derrotas eleitorais dos partidos socialistas e sociais-democratas nos últimos anos, no domingo passada o Partido Social-Democrata sueco averbou o seu pior resultado eleitoral num século, perdendo pela primeira vez duas eleições consecutivas. Decididamente, as coisas não vão bem para a social-democracia europeia (sem aliás nenhum proveito para as esquerdas alternativas, em geral limitadas a um papel marginal de protesto). Não admira que ganhem força as teses sobre a "crise estrutural da social-democracia europeia".
Neste momento, apenas quatro dos 27 países da União Europeia - a saber, Portugal, Espanha, Grécia e Eslovénia - têm governos socialistas, nos dois primeiros casos sem disporem de maioria parlamentar, o que compara com a maioria de governos socialistas que existia na última década do século passado. Desde o início da crise económica há dois anos, a esquerda foi afastada do Governo em vários países, como o Reino Unido e a Hungria, não tendo conseguido recuperar o poder em nenhum (salvo a Grécia). Com exceção da Espanha, todos os maiores países europeus são governados pela direita. Em vários países a social-democracia nem sequer tem condições de disputar o poder, sendo a alternativa entre as direitas, incluindo em alguns casos a extrema-direita nacionalista e xenófoba.
Os tempos não se revelam fagueiros para a esquerda democrática. Pior do que isso, o panorama geral não faz prever nenhuma inversão da situação nos anos mais próximos.
Quais as razões para esta razia política, mesmo nas fortalezas tradicionais da social-democracia, como a Escandinávia? Entre elas avultam seguramente duas razões: uma conjuntural, que é a recessão económica e as suas consequências sobre o emprego e as políticas sociais; outra estrutural, que tem a ver com a erosão das condições, económicas, sociais e financeiras do Estado social e do modelo social europeu.
Apesar de a crise financeira, que esteve na base da recessão económica, ter sido gerada essencialmente pelas políticas neoliberais dominantes desde os anos 80 quanto à desregulação financeira e à desintervenção económica do Estado - que a esquerda sempre denunciou com maior ou menor veemência -, a verdade é que esta se mostrou incapaz de tirar proveito político da crise que veio vindicar as suas posições. Paradoxalmente, a crise veio reforçar a direita, como se ela estivesse em melhores condições para emendar as suas próprias malfeitorias.
De facto, as crises económicas são em geral adversas para os partidos socialistas e sociais-democratas e para os seus governos, porque os impede de prosseguir os seus objetivos mais queridos. A retração da economia provoca o aumento do desemprego e reduz os recursos financeiros para o investimento público e as políticas sociais. Tradicionalmente, a esquerda convive mal com as dificuldades das finanças públicas e com a necessidade de políticas de consolidação orçamental, tendendo a defender a virtude do défice orçamental e do endividamento público como resposta à recessão e à redução da receita fiscal. Com algumas exceções nacionais, os partidos socialistas e sociais-democratas tendem a combater a disciplina e a consolidação orçamental, mesmo quando se tornou evidente que os défices excessivos podem degenerar em crises da dívida pública, cortando o acesso aos mercados financeiros e asfixiando a economia.
Mais preocupantes ainda para a social-democracia são as dificuldades estruturais do modelo social europeu, posto em causa pela globalização económica, pelo crescimento económico insuficiente, pelo desemprego estrutural elevado, pelo crescente envelhecimento da população, pela redução da capacidade tributária dos estados, pela pressão financeira crescente sobre os sistemas públicos de saúde e de segurança social, em particular o sistema de pensões. O problema político fundamental na Europa passou a ser a sustentabilidade financeira e o desempenho do Estado social.
De novo, ressalvadas algumas exceções, a generalidade dos partidos socialistas e sociais-democratas por essa Europa fora não se revela disponível para encarar esse repto crucial, tendendo a adiar (quando no governo) ou a combater (quando na oposição) as medidas necessárias. O que se passa neste momento em França, com a encarniçada oposição do PSF, acompanhando a esquerda comunista e trotskista, à elevação da idade de reforma para os 62 anos - apesar do enorme défice do sistema de pensões -, ilustra a dificuldade da esquerda socialista em reagir responsavelmente à mudança das condições que geraram e até agora mantiveram o modelo social europeu. Ora, a falta de adaptação deste às novas condições é o melhor caminho para ditar a sua condenação a prazo.
Felizmente, no Sul da Europa, os governos socialistas em funções decidiram fazer face às dificuldades, quer enfrentando a crise das finanças públicas que a recessão económica gerou, quer fazendo as reformas apropriadas para conferir consistência financeira aos sistemas públicos de saúde, de segurança social e de educação. Apesar dos constrangimentos políticos que a falta de maioria parlamentar gera em Portugal e em Espanha - colocando os governos à mercê da irresponsabilidade das oposições -, não se pode deixar de reconhecer a coragem política colocada nos programas de consolidação orçamental e na adoção das medidas necessárias para assegurar a sustentabilidade do Estado social, que no caso português foram já decididas em grande medida na legislatura passada.
Recai sobre esses governos a enorme responsabilidade de vencerem a maldição história da incapacidade da esquerda para governar em período de crise económica e o atavismo político que impede a esquerda de encarar decididamente a reforma do Estado social, de modo a torná-lo financeiramente e politicamente sustentável. Do seu sucesso ou insucesso pode depender a superação desta fase histórica assaz crítica para a social-democracia europeia.
[Publico, terça-feira, 21 de Setembro de 2010]
Culminando uma série de derrotas eleitorais dos partidos socialistas e sociais-democratas nos últimos anos, no domingo passada o Partido Social-Democrata sueco averbou o seu pior resultado eleitoral num século, perdendo pela primeira vez duas eleições consecutivas. Decididamente, as coisas não vão bem para a social-democracia europeia (sem aliás nenhum proveito para as esquerdas alternativas, em geral limitadas a um papel marginal de protesto). Não admira que ganhem força as teses sobre a "crise estrutural da social-democracia europeia".
Neste momento, apenas quatro dos 27 países da União Europeia - a saber, Portugal, Espanha, Grécia e Eslovénia - têm governos socialistas, nos dois primeiros casos sem disporem de maioria parlamentar, o que compara com a maioria de governos socialistas que existia na última década do século passado. Desde o início da crise económica há dois anos, a esquerda foi afastada do Governo em vários países, como o Reino Unido e a Hungria, não tendo conseguido recuperar o poder em nenhum (salvo a Grécia). Com exceção da Espanha, todos os maiores países europeus são governados pela direita. Em vários países a social-democracia nem sequer tem condições de disputar o poder, sendo a alternativa entre as direitas, incluindo em alguns casos a extrema-direita nacionalista e xenófoba.
Os tempos não se revelam fagueiros para a esquerda democrática. Pior do que isso, o panorama geral não faz prever nenhuma inversão da situação nos anos mais próximos.
Quais as razões para esta razia política, mesmo nas fortalezas tradicionais da social-democracia, como a Escandinávia? Entre elas avultam seguramente duas razões: uma conjuntural, que é a recessão económica e as suas consequências sobre o emprego e as políticas sociais; outra estrutural, que tem a ver com a erosão das condições, económicas, sociais e financeiras do Estado social e do modelo social europeu.
Apesar de a crise financeira, que esteve na base da recessão económica, ter sido gerada essencialmente pelas políticas neoliberais dominantes desde os anos 80 quanto à desregulação financeira e à desintervenção económica do Estado - que a esquerda sempre denunciou com maior ou menor veemência -, a verdade é que esta se mostrou incapaz de tirar proveito político da crise que veio vindicar as suas posições. Paradoxalmente, a crise veio reforçar a direita, como se ela estivesse em melhores condições para emendar as suas próprias malfeitorias.
De facto, as crises económicas são em geral adversas para os partidos socialistas e sociais-democratas e para os seus governos, porque os impede de prosseguir os seus objetivos mais queridos. A retração da economia provoca o aumento do desemprego e reduz os recursos financeiros para o investimento público e as políticas sociais. Tradicionalmente, a esquerda convive mal com as dificuldades das finanças públicas e com a necessidade de políticas de consolidação orçamental, tendendo a defender a virtude do défice orçamental e do endividamento público como resposta à recessão e à redução da receita fiscal. Com algumas exceções nacionais, os partidos socialistas e sociais-democratas tendem a combater a disciplina e a consolidação orçamental, mesmo quando se tornou evidente que os défices excessivos podem degenerar em crises da dívida pública, cortando o acesso aos mercados financeiros e asfixiando a economia.
Mais preocupantes ainda para a social-democracia são as dificuldades estruturais do modelo social europeu, posto em causa pela globalização económica, pelo crescimento económico insuficiente, pelo desemprego estrutural elevado, pelo crescente envelhecimento da população, pela redução da capacidade tributária dos estados, pela pressão financeira crescente sobre os sistemas públicos de saúde e de segurança social, em particular o sistema de pensões. O problema político fundamental na Europa passou a ser a sustentabilidade financeira e o desempenho do Estado social.
De novo, ressalvadas algumas exceções, a generalidade dos partidos socialistas e sociais-democratas por essa Europa fora não se revela disponível para encarar esse repto crucial, tendendo a adiar (quando no governo) ou a combater (quando na oposição) as medidas necessárias. O que se passa neste momento em França, com a encarniçada oposição do PSF, acompanhando a esquerda comunista e trotskista, à elevação da idade de reforma para os 62 anos - apesar do enorme défice do sistema de pensões -, ilustra a dificuldade da esquerda socialista em reagir responsavelmente à mudança das condições que geraram e até agora mantiveram o modelo social europeu. Ora, a falta de adaptação deste às novas condições é o melhor caminho para ditar a sua condenação a prazo.
Felizmente, no Sul da Europa, os governos socialistas em funções decidiram fazer face às dificuldades, quer enfrentando a crise das finanças públicas que a recessão económica gerou, quer fazendo as reformas apropriadas para conferir consistência financeira aos sistemas públicos de saúde, de segurança social e de educação. Apesar dos constrangimentos políticos que a falta de maioria parlamentar gera em Portugal e em Espanha - colocando os governos à mercê da irresponsabilidade das oposições -, não se pode deixar de reconhecer a coragem política colocada nos programas de consolidação orçamental e na adoção das medidas necessárias para assegurar a sustentabilidade do Estado social, que no caso português foram já decididas em grande medida na legislatura passada.
Recai sobre esses governos a enorme responsabilidade de vencerem a maldição história da incapacidade da esquerda para governar em período de crise económica e o atavismo político que impede a esquerda de encarar decididamente a reforma do Estado social, de modo a torná-lo financeiramente e politicamente sustentável. Do seu sucesso ou insucesso pode depender a superação desta fase histórica assaz crítica para a social-democracia europeia.
[Publico, terça-feira, 21 de Setembro de 2010]