9 de setembro de 2010
Disciplina orçamental
Por Vital Moreira
Ao contrário do que sustenta a esquerda radical, a disciplina orçamental não é uma nefanda invenção da direita para asfixiar o Estado. Contrariamente ao que defende a direita, a consolidação orçamental não tem de se traduzir num ataque em forma ao Estado social. Estas posições extremam-se nos períodos em que o ressaneamento das finanças públicas impõe "medidas de austeridade" mais ou menos severas, como ocorre neste momento em vários países europeus, incluindo Portugal, em consequência da forte recessão económica de 2008-09.
Tradicionalmente, a relação da esquerda em geral com a disciplina das finanças públicas - nomeadamente o tendencial equilíbrio orçamental e o limite ao endividamento público consubstanciados no Pacto de Estabilidade e Crescimento da União Europeia - é de desconfiança, na melhor das hipóteses, ou de uma verdadeira hostilidade, na pior. Há setores da esquerda que consideram os programas de austeridade como um expediente da direita para coartar a capacidade do Estado no que respeita às despesas sociais e ao investimento público, sendo também um obstáculo ao crescimento económico e à criação de emprego. Mas nenhuma dessas acusações é fundada.
A disciplina das finanças públicas, impedindo défices excessivos e um demasiado elevado endividamento do Estado, não é de esquerda nem de direita, sendo antes de mais um mecanismo de boa gestão financeira, em geral, e de estabilidade da moeda única, o euro, em especial. Primeiro, é lógico que o Estado não viva sistematicamente acima dos seus recursos financeiros, acrescentando dívida à dívida; segundo, os défices e o endividamento excessivos tendem a encarecer o custo do recurso ao crédito, tornando-se uma sobrepeso nas próprias finanças públicas. De resto, o Pacto de Estabilidade e Crescimento, que contém as regras básicas da disciplina financeira da UE, foi aprovado quando grande parte dos Estados-membros era governada por partidos socialistas e sociais-democratas.
A disciplina das finanças públicas e a consolidação orçamental também não constituem um obstáculo ao crescimento e à criação de emprego, antes pelo contrário. Podendo provocar alguma retração transitória, são porém uma condição do crescimento sustentável. De facto, os défices excessivos e o elevado endividamento público, ao criarem dificuldades no acesso aos mercados financeiros e ao fazerem subir as taxas de juro dos empréstimos, oneram o investimento e o consumo privados - em grande parte financiados pelo recurso ao crédito internacional - e geram desconfiança sobre a estabilidade financeira e económica dos países em causa. É uma ilusão perigosa supor que um persistente desequilíbrio das finanças públicas, deixando maior espaço de manobra transitório para a despesa pública e privada, constitui uma solução duradoura para o crescimento e a criação de emprego.
Nas atuais circunstâncias, ninguém pode duvidar de que, se os governos dos Estados em processo de reequilíbrio das suas contas públicas (Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal, etc.) dessem alguma mostra de atenuação ou adiamento dos seus programas de austeridade, o resultado seria a degradação do rating da sua dívida pública, com reflexos imediatos no custo do recurso ao crédito, não somente por parte o Estado, mas também por parte dos bancos e consequentemente das empresas e dos consumidores, logo menos investimento, menos consumo, menos crescimento e menos emprego. Basta ver as consequências nefastas que tem a simples dúvida ou incerteza sobre a capacidade daqueles Estados para cumprirem as metas a que estão obrigados.
Na União Europeia, a disciplina financeira constitui portanto uma imposição política incontornável para qualquer governo, seja de esquerda ou de direita. Mas o modo de a realizar não tem de seguir o mesmo guião, sendo aí que se podem distinguir as receitas de esquerda e as de direita.
Teoricamente, a recuperação do equilíbrio das finanças públicas pode ser obtido pelo aumento da receita pública, pela redução da despesa pública ou por uma conjugação variável das duas vertentes, como ocorre em geral. Tudo depende do mix escolhido, dos tipos de receita que se decide aumentar e dos setores da despesa onde se vai cortar. Dentro da estreita margem de escolha que estas situações deixam em aberto, a esquerda tenderá a recorrer a uma contribuição razoável do aumento da receita, por via do agravamento de impostos, sobretudo sobre as titulares de mais altos rendimentos, ao mesmo tempo que tenderá a salvaguardar até onde for possível os investimentos públicos suscetíveis de maior impacto na dinamização económica, bem como as despesas sociais, sem excluir porém a racionalização de algumas prestações com mais peso na despesa pública. A direita, por sua vez, tende a aproveitar os períodos de restrição orçamental para defender cortes radicais na despesa pública, sobretudo na despesa social, evitando onerar a carga fiscal, incluindo a dos titulares de mais altos rendimentos.
Se analisarmos a atual polémica sobre o próximo Orçamento entre nós, é fácil ver que, enquanto o PS defende a leal implementação do programa de consolidação orçamental acordado com Bruxelas, mediante uma equilibrada distribuição de encargos entre o aumento da receita e a redução da despesa (incluindo a enorme despesa com subsídios e reembolsos fiscais), o PSD insiste em agravar o corte da despesa já previsto (excluindo o corte na despesa fiscal...), o que só poderia ser compensado com uma redução muito mais severo e drástica na despesa pública com a sustentação do Estado social, nomeadamente com o sistema de saúde, a proteção social e a educação.
Como se vê, podendo ser idêntico o objetivo, não são necessariamente iguais os caminhos para a sustentabilidade das finanças públicas. Embora a margem de manobra possa parecer exígua, há sempre uma receita de esquerda e uma receita de direita.
(Público, terça-feira, 7 de Setembro de 2010).
Ao contrário do que sustenta a esquerda radical, a disciplina orçamental não é uma nefanda invenção da direita para asfixiar o Estado. Contrariamente ao que defende a direita, a consolidação orçamental não tem de se traduzir num ataque em forma ao Estado social. Estas posições extremam-se nos períodos em que o ressaneamento das finanças públicas impõe "medidas de austeridade" mais ou menos severas, como ocorre neste momento em vários países europeus, incluindo Portugal, em consequência da forte recessão económica de 2008-09.
Tradicionalmente, a relação da esquerda em geral com a disciplina das finanças públicas - nomeadamente o tendencial equilíbrio orçamental e o limite ao endividamento público consubstanciados no Pacto de Estabilidade e Crescimento da União Europeia - é de desconfiança, na melhor das hipóteses, ou de uma verdadeira hostilidade, na pior. Há setores da esquerda que consideram os programas de austeridade como um expediente da direita para coartar a capacidade do Estado no que respeita às despesas sociais e ao investimento público, sendo também um obstáculo ao crescimento económico e à criação de emprego. Mas nenhuma dessas acusações é fundada.
A disciplina das finanças públicas, impedindo défices excessivos e um demasiado elevado endividamento do Estado, não é de esquerda nem de direita, sendo antes de mais um mecanismo de boa gestão financeira, em geral, e de estabilidade da moeda única, o euro, em especial. Primeiro, é lógico que o Estado não viva sistematicamente acima dos seus recursos financeiros, acrescentando dívida à dívida; segundo, os défices e o endividamento excessivos tendem a encarecer o custo do recurso ao crédito, tornando-se uma sobrepeso nas próprias finanças públicas. De resto, o Pacto de Estabilidade e Crescimento, que contém as regras básicas da disciplina financeira da UE, foi aprovado quando grande parte dos Estados-membros era governada por partidos socialistas e sociais-democratas.
A disciplina das finanças públicas e a consolidação orçamental também não constituem um obstáculo ao crescimento e à criação de emprego, antes pelo contrário. Podendo provocar alguma retração transitória, são porém uma condição do crescimento sustentável. De facto, os défices excessivos e o elevado endividamento público, ao criarem dificuldades no acesso aos mercados financeiros e ao fazerem subir as taxas de juro dos empréstimos, oneram o investimento e o consumo privados - em grande parte financiados pelo recurso ao crédito internacional - e geram desconfiança sobre a estabilidade financeira e económica dos países em causa. É uma ilusão perigosa supor que um persistente desequilíbrio das finanças públicas, deixando maior espaço de manobra transitório para a despesa pública e privada, constitui uma solução duradoura para o crescimento e a criação de emprego.
Nas atuais circunstâncias, ninguém pode duvidar de que, se os governos dos Estados em processo de reequilíbrio das suas contas públicas (Grécia, Irlanda, Espanha, Portugal, etc.) dessem alguma mostra de atenuação ou adiamento dos seus programas de austeridade, o resultado seria a degradação do rating da sua dívida pública, com reflexos imediatos no custo do recurso ao crédito, não somente por parte o Estado, mas também por parte dos bancos e consequentemente das empresas e dos consumidores, logo menos investimento, menos consumo, menos crescimento e menos emprego. Basta ver as consequências nefastas que tem a simples dúvida ou incerteza sobre a capacidade daqueles Estados para cumprirem as metas a que estão obrigados.
Na União Europeia, a disciplina financeira constitui portanto uma imposição política incontornável para qualquer governo, seja de esquerda ou de direita. Mas o modo de a realizar não tem de seguir o mesmo guião, sendo aí que se podem distinguir as receitas de esquerda e as de direita.
Teoricamente, a recuperação do equilíbrio das finanças públicas pode ser obtido pelo aumento da receita pública, pela redução da despesa pública ou por uma conjugação variável das duas vertentes, como ocorre em geral. Tudo depende do mix escolhido, dos tipos de receita que se decide aumentar e dos setores da despesa onde se vai cortar. Dentro da estreita margem de escolha que estas situações deixam em aberto, a esquerda tenderá a recorrer a uma contribuição razoável do aumento da receita, por via do agravamento de impostos, sobretudo sobre as titulares de mais altos rendimentos, ao mesmo tempo que tenderá a salvaguardar até onde for possível os investimentos públicos suscetíveis de maior impacto na dinamização económica, bem como as despesas sociais, sem excluir porém a racionalização de algumas prestações com mais peso na despesa pública. A direita, por sua vez, tende a aproveitar os períodos de restrição orçamental para defender cortes radicais na despesa pública, sobretudo na despesa social, evitando onerar a carga fiscal, incluindo a dos titulares de mais altos rendimentos.
Se analisarmos a atual polémica sobre o próximo Orçamento entre nós, é fácil ver que, enquanto o PS defende a leal implementação do programa de consolidação orçamental acordado com Bruxelas, mediante uma equilibrada distribuição de encargos entre o aumento da receita e a redução da despesa (incluindo a enorme despesa com subsídios e reembolsos fiscais), o PSD insiste em agravar o corte da despesa já previsto (excluindo o corte na despesa fiscal...), o que só poderia ser compensado com uma redução muito mais severo e drástica na despesa pública com a sustentação do Estado social, nomeadamente com o sistema de saúde, a proteção social e a educação.
Como se vê, podendo ser idêntico o objetivo, não são necessariamente iguais os caminhos para a sustentabilidade das finanças públicas. Embora a margem de manobra possa parecer exígua, há sempre uma receita de esquerda e uma receita de direita.
(Público, terça-feira, 7 de Setembro de 2010).