6 de outubro de 2010
A República e as mulheres
por Ana Gomes
Foi com a ascensão das correntes republicanas que, há mais de cem anos, o movimento feminista ganhou expressão em Portugal. A organização mais proeminente na altura, a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, foi mesmo apadrinhada pelo Partido Republicano. Mas este, chegado ao poder, desiludiu: com a República foram reconhecidos alguns direitos cívicos às mulheres (lei da família, o divórcio), mas não os políticos, como o direito de voto. A igualdade era uma luta para mais cem anos. Ou mais.
Carolina Beatriz Ângelo, uma influente feminista da época, foi a primeira mulher a votar em Portugal (e na Peninsula Ibérica), nas eleições constituintes em 1911. Para isso aproveitou uma brecha na lei, que dava direito de voto a todos os chefes de família que soubessem ler e escrever – ser mulher não chegava. Mas os homens da Republica apressaram-se a corrigir a lacuna legal, excluindo do acto eleitoral, a partir de 1913, todas as mulheres – que já então somamavam mais de metade da população portuguesa.
Apesar deste retrocesso, a verdade é que o movimento republicano criou o ambiente para se começarem a quebrar "telhados de vidro" na sociedade portuguesa: abriu o debate e trouxe a liberdade que permitiu às mulheres reivindicarem a igualdade, contestando a organização patriarcal na família, no trabalho, na esfera social e política.
Cem anos depois, as desigualdades persistem: o reconhecimento dos direitos das mulheres foi acompanhando a evolução política do país:
- No Estado Novo, o direito de voto, concedido em 1931, incidia apenas nas eleições locais e era reservado às chefes de família. A repressão das liberdades básicas não favorecia, evidentemente, a emancipação das mulheres. E, no entanto, tantas se sacrificaram e distinguiram na luta contra a ditadura fascista, incluindo na clandestinidade!
Apesar do obscurantismo do regime, dois dos seus subprodutos acabaram por contribuir para mudar a condição das mulheres: a emigração abriu mentalidades e o mercado do trabalho às mulheres; e o desvio dos homens para a Guerra Colonial, a partir dos anos 60, fez entrar as mulheres em força na Administração Pública, embora lhes continuassem vedadas carreiras profissionais nas Forças Armadas e de Segurança, na diplomacia e na magistratura judicial.
Com o 25 de Abril de 1974 abriu-se uma página decisiva na afirmação dos direitos das mulheres na Republica, reconhecidos como o que realmente são: os direitos humanos de mais de metade da população portuguesa. Portugal aderiu ao Conselho da Europa, subscrevendo a Convenção Europeia dos Direitos Humanos; tornou-se parte dos Pactos Internacional dos Civis e Políticos e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais logo em 1976, que proíbem discriminações com base do sexo; e em 1980 ratificou a Convenção das Nações Unidas para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. Todos estes instrumentos de direitos humanos passaram a ser directamente aplicáveis pelos tribunais portugueses, conforme a Constituição da República Portuguesa, que já em 1976 consagrava a igualdade e o princípio da não discriminação.
O papel da Europa não pode ser subestimado na viragem de 1974/75 e na caminhada subsequente, que ainda hoje prossegue: pela pressão cultural e política, pelas directivas que obrigam a mudar as leis nacionais, pelas redes de cidadania em que nos faz participar. Mas apesar das proclamações e da lei, ainda não conseguimos hoje, em 2010, romper as barreiras que impedem as mulheres portuguesas de ver reflectido o seu peso demográfico, eleitoral e político na governação, na academia ou nas empresas.
Não obstante já termos tido em 1980, pela primeira vez na história da Republica, uma mulher como Chefe de Governo - Maria de Lurdes Pintasilgo, nomeada pelo Presidente Ramalho Eanes - temos de reconhecer que, trinta anos depois, as mulheres continuam sub-representadas nos lugares de topo dos órgãos de representação politica e da governação política e económica.
Apesar da Lei da Paridade, promovida em 2006 pelo PS, sob a liderança do Primeiro Ministro José Sócrates, constituir um importante passo em frente, a verdade é que limita a 33% a reserva de lugares para mulheres e não obriga, portanto, a uma verdadeira paridade – que supõe um equilíbrio de representação de ambos sexos em qualquer órgão, ou seja um mínimo de 40% e um máximo de 60% para qualquer género. No entanto, já está a mostrar resultados: em 2009, houve 19 mil candidatas nas eleições autárquicas e ficámos, de facto, com 33% de deputadas entre 230 parlamentares na Assembleia da República.
Ainda há caminho a fazer e, na vizinha Espanha, o Primeiro-ministro Zapatero mostrou-o: em dezassete ministérios, 8 estão entregues a mulheres, (entre nós, apenas 5 são hoje ministras) incluindo em pastas tradicionalmente "masculinas", como a Defesa ou a Economia. O exemplo de Espanha mostra que, além de leis e discursos, é preciso clarividência e vontade política no posto de comando para impor a agenda da igualdade. Até porque não basta ter os “números” (embora os números determinem a “massa crítica” que pode fazer a diferença): trata-se de influenciar a agenda política segundo os interesses, sensibilidades e aspirações das mulheres. Trata-se, por exemplo, a propósito do drástico Orçamento de Estado que se anuncia, de procurar escrutiná-lo com os “óculos de género” postos, a fim de arredar medidas que penalizem especialmente as mulheres e crianças ou de encontrar mecanismos para as compensar positivamente.
Não faltam em Portugal mulheres qualificadas, experientes e com capacidade para assumirem cargos públicos e privados de topo. Mas, claro, não abundam no círculo dos "boys for the jobs" que persiste, incluindo na gestão de empresas públicas ou participadas pelo Estado: um artigo na ultima edição do jornal “Expresso” identificava 84 ex-governantes saidos do governo para administrações na Banca, só 3 sendo mulheres!
Além de continuarem a ser hoje a maior parte da população – e dos eleitores – em Portugal, as mulheres constituem a maioria dos licenciados e estudantes universitários. Mas também são as mais afectadas pela crise, vítimas primeiras do desemprego e da precariedade, além de continuarem a sofrer a ignomínia da desigualdade salarial.
É verdade também que para concretizarmos a paridade nesta Republica Portuguesa continua a ser preciso mudar mentalidades – dos homens e das mulheres. É crucial reinventarmos a conciliação entre a vida privada e vida profissional, com uma mais equilibrada partilha das tarefas familiares. De facto, também as mulheres fogem muitas vezes de cargos políticos e de mais responsabilidades profissionais por lhes pesar a dupla jornada de trabalho a que estão obrigadas: de dia, no emprego; à noite, em casa. Neste sentido, a governação PS tem feito uma grande diferença desde 2005. Por seu impulso têm sido aprovadas importantes leis no campo social e da família, como a Lei da Parentalidade, em 2009.
Em sectores profissionais desde sempre dominados pelo sexo masculino, o desequilíbrio na representação dos géneros torna-se hoje mais chocante, apesar de algum progresso entretanto lentamente feito. É o caso das Forças Armadas e outras forcas de segurança, como a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana.
Foi preciso chegar à década de ´90 para ver as carreiras militares admitirem mulheres – em muitos outros países europeus isso aconteceu quase vinte anos antes – por determinação do poder político (na PSP já nos anos 80 ingressaram mulheres, mas na GNR e nas Forças Armadas só em 93 foram admitidas as primeiras candidatas). Isto apesar de a entrada de mulheres na Força Aérea em Portugal datar de 1961, em pleno Estado Novo, com o recrutamento de Enfermeiras Pára-quedistas - as primeiras ficaram conhecidas pelas "seis Marias", todas com a patente de alferes e com brevet de pára-quedista da Força Aérea. Durante 13 anos, na Guerra Colonial, estas destemidas mulheres portuguesas socorreram feridos nas linhas de combate, muitas vezes debaixo de fogo, e evacuaram civis e soldados dos três ramos das FA Portuguesas. Mas depois de ´74, com o fim da Guerra, a Força Aérea deixou de abrir cursos para enfermeiras pára-quedistas...
Quase vinte anos depois, e por decisão política, as Forças Armadas começaram o recrutamento feminino. Mas o progresso tem sido lento: segundo dados do Ministério da Defesa Nacional, as mulheres constituem 17% do total dos militares no Exercito e na Forca Aérea, ao passo que na Marinha o número desce para os 9%; por outro lado, de acordo com o Ministério da Administração Interna, entre PSP e GNR, as mulheres de farda representam apenas 7% do universo total das forcas policiais.
Todas as mulheres que ingressam nas Forças Armadas, na PSP ou na GNR, sabem que estão a desafiar o sistema e os preconceitos ali instalados e que têm de forçar uma lógica de mudança dentro de um universo que lhes é, ainda, hostil. Basta lembrar o caso de Cláudia Brito, a primeira mulher oficial de Infantaria, que em 2006 foi sujeita a uma praxe bárbara na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, depois de 4 anos de Academia Militar. Vergonhosamente, nunca se puniram os responsáveis, mas a Oficial Brito foi levada a demitir-se das Forcas Armadas.
É preciso que os mais altos comandos das Policias e das Forças Armadas portuguesas tomem a iniciativa de combater activamente a discriminação contra as mulheres, que não serve a República regida pela Constituição, nem a Segurança Nacional – ambas precisam, obviamente, da contribuição das mulheres.
Tanto assim é que, este ano, pela primeira vez, passou a ser obrigatória a comparência de mulheres no Dia da Defesa Nacional. É um passo pela igualdade de deveres e de direitos? Sem duvida, e muito importante. Mas reflecte também uma outra realidade: é que as Forças Armadas, abolido o serviço militar obrigatório, precisam hoje de gente! Precisam de mulheres, que os homens andam arredios...
Precisam delas, também, porque a eficácia das suas próprias missões exige o envolvimento de mulheres, em particular no quadro internacional em que frequentemente as nossas Forças Armadas se vêem empenhadas. Isso determina a Resolução 1325, adoptada pelo Conselho de Segurança da ONU em 200O, recomendando a participação de mais mulheres, a todos os níveis e em todo o tipo de funções, incluindo as policiais e militares, em missões de prevenção de conflitos e de manutenção da paz. Só assim se pode dar ouvidos e voz às mulheres das zonas em conflito e envolvê-las nos processos de paz e de democratização, pois sem elas não há reconciliação, nem solução de conflito que dure... Como bem sabem hoje os policias e militares portugueses que nos últimos dez anos têm visto a mais-valia e a capacidade das suas colegas integrantes de missões sob a égide da ONU, da NATO, ou da PESD – do Líbano a Timor-Leste, do Afeganistão, à Bósnia-Herzegovina e ao Kosovo.
Ainda assim, nesta nossa Republica há quem continue a discutir a adequação da mulher para tarefas militares (é não perceber, inclusive, como as novas tecnologias mudaram as ameaças e os meios de as enfrentar - contra um ataque cibernético, um cérebro, de mulher ou homem, será decerto mais útil que a musculatura de um fuzileiro ...).
Basta atentar nas noticias sobre as nossas mais recentes aquisições militares: apesar de os homens e mulheres que pagam impostos nesta Republica irem pagar couro e cabelo por dois submarinos novinhos em folha, eles parecem não vir preparados para receber muitas mulheres na guarnição! Alegadamente, porque a Marinha ainda não formou mulheres na especialidade de submarinistas. E, pelos vistos, não tenciona formar ...
E, no entanto, não haverá falta de mulheres qualificadas e interessadas em se tornarem submarinistas. Tal como não há, nesta Republica Portuguesa, falta de mulheres prontas a ser mobilizadas para qualquer missão ou combate. Como aquele que este Verão nos roubou três soldados da paz, entre eles a jovem estudante e bombeira voluntária Josefa, de Santa Maria da Feira, que perdeu a vida nas chamas do incêndio que procurava travar.
Hoje, a República Portuguesa tem mulheres profissionais, civis e militares, integradas em missões internacionais humanitárias, de manutenção da paz, de construção nacional; tem mulheres jornalistas a cobrir intrepidamente conflitos em todo o mundo; tem mulheres diplomatas nos postos mais dificeis e perigosos; tem observadoras eleitorais nos confins mais inóspitos do planeta, sem sequer o enquadramento logistico e de segurança de uma missão de paz.
As mulheres desta República Portuguesa estão fartas de dar provas de que são capazes e confiáveis em todos os desempenhos profissionais, incluindo nas Forças Armadas e de Segurança. Estão dispostas a correr riscos, tal e qual os homens, sacrificando se necessário a própria vida. Estão prontas para colocar os seus talentos, as suas qualificações, a sua coragem e a sua energia ao serviço de uma República que só se completará verdadeiramente, democraticamente, no dia em que elas exercerem, em plena igualdade com os homens, todas as responsabilidades da cidadania e da governação do pais.
(Intervenção em Seminário da Associação de Auditores de Defesa Nacional, Porto, 2 de Outubro de 2010)
Foi com a ascensão das correntes republicanas que, há mais de cem anos, o movimento feminista ganhou expressão em Portugal. A organização mais proeminente na altura, a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, foi mesmo apadrinhada pelo Partido Republicano. Mas este, chegado ao poder, desiludiu: com a República foram reconhecidos alguns direitos cívicos às mulheres (lei da família, o divórcio), mas não os políticos, como o direito de voto. A igualdade era uma luta para mais cem anos. Ou mais.
Carolina Beatriz Ângelo, uma influente feminista da época, foi a primeira mulher a votar em Portugal (e na Peninsula Ibérica), nas eleições constituintes em 1911. Para isso aproveitou uma brecha na lei, que dava direito de voto a todos os chefes de família que soubessem ler e escrever – ser mulher não chegava. Mas os homens da Republica apressaram-se a corrigir a lacuna legal, excluindo do acto eleitoral, a partir de 1913, todas as mulheres – que já então somamavam mais de metade da população portuguesa.
Apesar deste retrocesso, a verdade é que o movimento republicano criou o ambiente para se começarem a quebrar "telhados de vidro" na sociedade portuguesa: abriu o debate e trouxe a liberdade que permitiu às mulheres reivindicarem a igualdade, contestando a organização patriarcal na família, no trabalho, na esfera social e política.
Cem anos depois, as desigualdades persistem: o reconhecimento dos direitos das mulheres foi acompanhando a evolução política do país:
- No Estado Novo, o direito de voto, concedido em 1931, incidia apenas nas eleições locais e era reservado às chefes de família. A repressão das liberdades básicas não favorecia, evidentemente, a emancipação das mulheres. E, no entanto, tantas se sacrificaram e distinguiram na luta contra a ditadura fascista, incluindo na clandestinidade!
Apesar do obscurantismo do regime, dois dos seus subprodutos acabaram por contribuir para mudar a condição das mulheres: a emigração abriu mentalidades e o mercado do trabalho às mulheres; e o desvio dos homens para a Guerra Colonial, a partir dos anos 60, fez entrar as mulheres em força na Administração Pública, embora lhes continuassem vedadas carreiras profissionais nas Forças Armadas e de Segurança, na diplomacia e na magistratura judicial.
Com o 25 de Abril de 1974 abriu-se uma página decisiva na afirmação dos direitos das mulheres na Republica, reconhecidos como o que realmente são: os direitos humanos de mais de metade da população portuguesa. Portugal aderiu ao Conselho da Europa, subscrevendo a Convenção Europeia dos Direitos Humanos; tornou-se parte dos Pactos Internacional dos Civis e Políticos e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais logo em 1976, que proíbem discriminações com base do sexo; e em 1980 ratificou a Convenção das Nações Unidas para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. Todos estes instrumentos de direitos humanos passaram a ser directamente aplicáveis pelos tribunais portugueses, conforme a Constituição da República Portuguesa, que já em 1976 consagrava a igualdade e o princípio da não discriminação.
O papel da Europa não pode ser subestimado na viragem de 1974/75 e na caminhada subsequente, que ainda hoje prossegue: pela pressão cultural e política, pelas directivas que obrigam a mudar as leis nacionais, pelas redes de cidadania em que nos faz participar. Mas apesar das proclamações e da lei, ainda não conseguimos hoje, em 2010, romper as barreiras que impedem as mulheres portuguesas de ver reflectido o seu peso demográfico, eleitoral e político na governação, na academia ou nas empresas.
Não obstante já termos tido em 1980, pela primeira vez na história da Republica, uma mulher como Chefe de Governo - Maria de Lurdes Pintasilgo, nomeada pelo Presidente Ramalho Eanes - temos de reconhecer que, trinta anos depois, as mulheres continuam sub-representadas nos lugares de topo dos órgãos de representação politica e da governação política e económica.
Apesar da Lei da Paridade, promovida em 2006 pelo PS, sob a liderança do Primeiro Ministro José Sócrates, constituir um importante passo em frente, a verdade é que limita a 33% a reserva de lugares para mulheres e não obriga, portanto, a uma verdadeira paridade – que supõe um equilíbrio de representação de ambos sexos em qualquer órgão, ou seja um mínimo de 40% e um máximo de 60% para qualquer género. No entanto, já está a mostrar resultados: em 2009, houve 19 mil candidatas nas eleições autárquicas e ficámos, de facto, com 33% de deputadas entre 230 parlamentares na Assembleia da República.
Ainda há caminho a fazer e, na vizinha Espanha, o Primeiro-ministro Zapatero mostrou-o: em dezassete ministérios, 8 estão entregues a mulheres, (entre nós, apenas 5 são hoje ministras) incluindo em pastas tradicionalmente "masculinas", como a Defesa ou a Economia. O exemplo de Espanha mostra que, além de leis e discursos, é preciso clarividência e vontade política no posto de comando para impor a agenda da igualdade. Até porque não basta ter os “números” (embora os números determinem a “massa crítica” que pode fazer a diferença): trata-se de influenciar a agenda política segundo os interesses, sensibilidades e aspirações das mulheres. Trata-se, por exemplo, a propósito do drástico Orçamento de Estado que se anuncia, de procurar escrutiná-lo com os “óculos de género” postos, a fim de arredar medidas que penalizem especialmente as mulheres e crianças ou de encontrar mecanismos para as compensar positivamente.
Não faltam em Portugal mulheres qualificadas, experientes e com capacidade para assumirem cargos públicos e privados de topo. Mas, claro, não abundam no círculo dos "boys for the jobs" que persiste, incluindo na gestão de empresas públicas ou participadas pelo Estado: um artigo na ultima edição do jornal “Expresso” identificava 84 ex-governantes saidos do governo para administrações na Banca, só 3 sendo mulheres!
Além de continuarem a ser hoje a maior parte da população – e dos eleitores – em Portugal, as mulheres constituem a maioria dos licenciados e estudantes universitários. Mas também são as mais afectadas pela crise, vítimas primeiras do desemprego e da precariedade, além de continuarem a sofrer a ignomínia da desigualdade salarial.
É verdade também que para concretizarmos a paridade nesta Republica Portuguesa continua a ser preciso mudar mentalidades – dos homens e das mulheres. É crucial reinventarmos a conciliação entre a vida privada e vida profissional, com uma mais equilibrada partilha das tarefas familiares. De facto, também as mulheres fogem muitas vezes de cargos políticos e de mais responsabilidades profissionais por lhes pesar a dupla jornada de trabalho a que estão obrigadas: de dia, no emprego; à noite, em casa. Neste sentido, a governação PS tem feito uma grande diferença desde 2005. Por seu impulso têm sido aprovadas importantes leis no campo social e da família, como a Lei da Parentalidade, em 2009.
Em sectores profissionais desde sempre dominados pelo sexo masculino, o desequilíbrio na representação dos géneros torna-se hoje mais chocante, apesar de algum progresso entretanto lentamente feito. É o caso das Forças Armadas e outras forcas de segurança, como a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana.
Foi preciso chegar à década de ´90 para ver as carreiras militares admitirem mulheres – em muitos outros países europeus isso aconteceu quase vinte anos antes – por determinação do poder político (na PSP já nos anos 80 ingressaram mulheres, mas na GNR e nas Forças Armadas só em 93 foram admitidas as primeiras candidatas). Isto apesar de a entrada de mulheres na Força Aérea em Portugal datar de 1961, em pleno Estado Novo, com o recrutamento de Enfermeiras Pára-quedistas - as primeiras ficaram conhecidas pelas "seis Marias", todas com a patente de alferes e com brevet de pára-quedista da Força Aérea. Durante 13 anos, na Guerra Colonial, estas destemidas mulheres portuguesas socorreram feridos nas linhas de combate, muitas vezes debaixo de fogo, e evacuaram civis e soldados dos três ramos das FA Portuguesas. Mas depois de ´74, com o fim da Guerra, a Força Aérea deixou de abrir cursos para enfermeiras pára-quedistas...
Quase vinte anos depois, e por decisão política, as Forças Armadas começaram o recrutamento feminino. Mas o progresso tem sido lento: segundo dados do Ministério da Defesa Nacional, as mulheres constituem 17% do total dos militares no Exercito e na Forca Aérea, ao passo que na Marinha o número desce para os 9%; por outro lado, de acordo com o Ministério da Administração Interna, entre PSP e GNR, as mulheres de farda representam apenas 7% do universo total das forcas policiais.
Todas as mulheres que ingressam nas Forças Armadas, na PSP ou na GNR, sabem que estão a desafiar o sistema e os preconceitos ali instalados e que têm de forçar uma lógica de mudança dentro de um universo que lhes é, ainda, hostil. Basta lembrar o caso de Cláudia Brito, a primeira mulher oficial de Infantaria, que em 2006 foi sujeita a uma praxe bárbara na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, depois de 4 anos de Academia Militar. Vergonhosamente, nunca se puniram os responsáveis, mas a Oficial Brito foi levada a demitir-se das Forcas Armadas.
É preciso que os mais altos comandos das Policias e das Forças Armadas portuguesas tomem a iniciativa de combater activamente a discriminação contra as mulheres, que não serve a República regida pela Constituição, nem a Segurança Nacional – ambas precisam, obviamente, da contribuição das mulheres.
Tanto assim é que, este ano, pela primeira vez, passou a ser obrigatória a comparência de mulheres no Dia da Defesa Nacional. É um passo pela igualdade de deveres e de direitos? Sem duvida, e muito importante. Mas reflecte também uma outra realidade: é que as Forças Armadas, abolido o serviço militar obrigatório, precisam hoje de gente! Precisam de mulheres, que os homens andam arredios...
Precisam delas, também, porque a eficácia das suas próprias missões exige o envolvimento de mulheres, em particular no quadro internacional em que frequentemente as nossas Forças Armadas se vêem empenhadas. Isso determina a Resolução 1325, adoptada pelo Conselho de Segurança da ONU em 200O, recomendando a participação de mais mulheres, a todos os níveis e em todo o tipo de funções, incluindo as policiais e militares, em missões de prevenção de conflitos e de manutenção da paz. Só assim se pode dar ouvidos e voz às mulheres das zonas em conflito e envolvê-las nos processos de paz e de democratização, pois sem elas não há reconciliação, nem solução de conflito que dure... Como bem sabem hoje os policias e militares portugueses que nos últimos dez anos têm visto a mais-valia e a capacidade das suas colegas integrantes de missões sob a égide da ONU, da NATO, ou da PESD – do Líbano a Timor-Leste, do Afeganistão, à Bósnia-Herzegovina e ao Kosovo.
Ainda assim, nesta nossa Republica há quem continue a discutir a adequação da mulher para tarefas militares (é não perceber, inclusive, como as novas tecnologias mudaram as ameaças e os meios de as enfrentar - contra um ataque cibernético, um cérebro, de mulher ou homem, será decerto mais útil que a musculatura de um fuzileiro ...).
Basta atentar nas noticias sobre as nossas mais recentes aquisições militares: apesar de os homens e mulheres que pagam impostos nesta Republica irem pagar couro e cabelo por dois submarinos novinhos em folha, eles parecem não vir preparados para receber muitas mulheres na guarnição! Alegadamente, porque a Marinha ainda não formou mulheres na especialidade de submarinistas. E, pelos vistos, não tenciona formar ...
E, no entanto, não haverá falta de mulheres qualificadas e interessadas em se tornarem submarinistas. Tal como não há, nesta Republica Portuguesa, falta de mulheres prontas a ser mobilizadas para qualquer missão ou combate. Como aquele que este Verão nos roubou três soldados da paz, entre eles a jovem estudante e bombeira voluntária Josefa, de Santa Maria da Feira, que perdeu a vida nas chamas do incêndio que procurava travar.
Hoje, a República Portuguesa tem mulheres profissionais, civis e militares, integradas em missões internacionais humanitárias, de manutenção da paz, de construção nacional; tem mulheres jornalistas a cobrir intrepidamente conflitos em todo o mundo; tem mulheres diplomatas nos postos mais dificeis e perigosos; tem observadoras eleitorais nos confins mais inóspitos do planeta, sem sequer o enquadramento logistico e de segurança de uma missão de paz.
As mulheres desta República Portuguesa estão fartas de dar provas de que são capazes e confiáveis em todos os desempenhos profissionais, incluindo nas Forças Armadas e de Segurança. Estão dispostas a correr riscos, tal e qual os homens, sacrificando se necessário a própria vida. Estão prontas para colocar os seus talentos, as suas qualificações, a sua coragem e a sua energia ao serviço de uma República que só se completará verdadeiramente, democraticamente, no dia em que elas exercerem, em plena igualdade com os homens, todas as responsabilidades da cidadania e da governação do pais.
(Intervenção em Seminário da Associação de Auditores de Defesa Nacional, Porto, 2 de Outubro de 2010)