11 de dezembro de 2010
Privilégios regionais
Por Vital Moreira
A decisão do Governo Regional dos Açores - confirmada pela assembleia regional - de compensar uma parte dos funcionários públicos da região, mediante um subsídio regional, do corte na remuneração do pessoal de todo o sector público determinado pelo Orçamento do Estado para 2011 é politicamente inaceitável.
Essa medida compensatória permitirá a cerca de 3700 funcionários públicos regionais manterem os seus actuais vencimentos, sem qualquer redução. De facto, os funcionários regionais que auferem entre 1500 e 2000 euros mensais irão receber um subsídio compensatório igual ao montante da redução remuneratória efectuada pelo Orçamento Geral do Estado para 2011. Isto significa que para os funcionários açorianos a redução salarial só começa a partir das remunerações de 2000 euros, ao contrário do que sucede em relação ao pessoal de todas as demais entidades públicas (Estado, Região Autónoma da Madeira, municípios, freguesias, etc.,), para o qual a redução começa nos 1500 euros mensais.
A primeira grande objecção a esta excepção consiste em que o esforço de austeridade orçamental - que não obriga somente o Orçamento do Estado, mas sim todas as finanças públicas - deixa de se aplicar igualmente a todos os funcionários públicos, independentemente da administração a que pertençam. Uma parte dos funcionários regionais açorianos vê-se dispensada de participar no esforço nacional que impende sobre todos os demais funcionários públicos. Passa a haver dois critérios de sujeição às medidas de austeridade: o critério nacional, válido para o Estado e demais entidades públicas, e o critério regional dos Açores, que se desvia do critério nacional. Esta diferença de tratamento é objectivamente injustificável e politicamente inadmissível. E tratando-se de um governo regional socialista, há aqui também uma enorme falta de solidariedade política com o Governo socialista da República, que obviamente bem gostaria de não ter ido tão longe nas medidas de austeridade.
Em segundo lugar, essa isenção das medidas de austeridade em relação a uma parte dos funcionários regionais cria na própria Região Autónoma dos Açores uma arbitrária discriminação entre funcionários públicos com remunerações similares. Com efeito, os funcionários dos serviços do Estado existentes na região (militares, polícias, funcionários judiciais, etc.), bem como os funcionários das autarquias locais dos Açores, verão a sua posição relativa degradada face aos funcionários regionais com remunerações equiparadas, o que se torna tanto mais injustificável quanto é certo que a diferença se manterá para o futuro, com reflexos também sobre as futuras pensões de uns e de outros. Uma vantagem relativamente a situações similares é sempre um privilégio.
Por último, não existe nenhuma razão objectiva para essa "discriminação positiva" de uma parte dos funcionários regionais. Como é sabido, apesar dos "custos de insularidade" (transportes, comunicações, energia, etc.), o custo de vida médio nos Açores não é mais elevado do que a média nacional (pelo contrário) e os impostos (IVA, IRS) são sensivelmente mais baixos, o que faz com que as mesma remunerações tenham maior poder de compra real do que no continente ou na Madeira. Por conseguinte, a referida compensação só aumentará as vantagens dos funcionários açorianos agora beneficiados, por comparação com os demais funcionários públicos portugueses.
Nem se diga, em jeito de justificação, que essa compensação não vai custar um euro ao Orçamento do Estado, sendo obviamente financiada pelo orçamento regional. Há aqui, porém, um duplo equívoco.
Primeiro, a austeridade financeira não vale somente para o Orçamento do Estado, mas também para os orçamentos regionais, sendo, aliás, o Governo da República responsável perante Bruxelas pela consolidação orçamental de todas as administrações públicas e não somente das contas do Estado. Ora, é evidente que a referida compensação vai implicar um aumento da despesa pública com pessoal nas contas regionais (em 2011 e no futuro) em relação ao que deveria ser de acordo com as normas nacionais, sendo certo que a redução da despesa pública deve passar essencialmente pela despesa corrente, incluindo pela despesa com pessoal. Os Açores não vão portanto cumprir a redução de 5% nas despesas com o pessoal.
Segundo, se o orçamento regional dos Açores dispõe de folga para essa despesa adicional, isso deve-se em grande parte ao facto de ele estar isento de contribuir para os encargos gerais da República, que são suportados somente pelo Orçamento do Estado, e de ele beneficiar de volumosas transferências anuais do Orçamento do Estado, para o qual, aliás, os contribuintes das regiões autónomas não contribuem. Ou seja, a magnanimidade do orçamento açoriano é alimentada pela generosidade do Orçamento do Estado para com as regiões autónomas, no essencial preservada, apesar das actuais dificuldades orçamentais nacionais. A prodigalidade à custa alheia não é propriamente uma virtude...
Para além das questões políticas e orçamentais referidas, este infeliz episódio revela mais uma vez a displicência regional no cumprimento do "contrato nacional" inerente às autonomias regionais, que inclui naturalmente a obrigação de execução pelas autoridades regionais das leis da República de aplicação nacional (como não pode deixar de ser em matéria de remuneração dos funcionários públicos). A tentativa de fuga dos Açores ao cumprimento da norma sobre o corte de remunerações do sector público não é politicamente menos grave do que, por exemplo, a recusa de implementação pela Madeira da lei de legalização do aborto pelo serviço de saúde regional (que felizmente não perdurou), com a diferença de ser financeiramente mais onerosa.
Por tudo isto, esta excepção açoriana não deve prevalecer.
(Publico, terça-feira, 7 de Dezembro de 2010)
A decisão do Governo Regional dos Açores - confirmada pela assembleia regional - de compensar uma parte dos funcionários públicos da região, mediante um subsídio regional, do corte na remuneração do pessoal de todo o sector público determinado pelo Orçamento do Estado para 2011 é politicamente inaceitável.
Essa medida compensatória permitirá a cerca de 3700 funcionários públicos regionais manterem os seus actuais vencimentos, sem qualquer redução. De facto, os funcionários regionais que auferem entre 1500 e 2000 euros mensais irão receber um subsídio compensatório igual ao montante da redução remuneratória efectuada pelo Orçamento Geral do Estado para 2011. Isto significa que para os funcionários açorianos a redução salarial só começa a partir das remunerações de 2000 euros, ao contrário do que sucede em relação ao pessoal de todas as demais entidades públicas (Estado, Região Autónoma da Madeira, municípios, freguesias, etc.,), para o qual a redução começa nos 1500 euros mensais.
A primeira grande objecção a esta excepção consiste em que o esforço de austeridade orçamental - que não obriga somente o Orçamento do Estado, mas sim todas as finanças públicas - deixa de se aplicar igualmente a todos os funcionários públicos, independentemente da administração a que pertençam. Uma parte dos funcionários regionais açorianos vê-se dispensada de participar no esforço nacional que impende sobre todos os demais funcionários públicos. Passa a haver dois critérios de sujeição às medidas de austeridade: o critério nacional, válido para o Estado e demais entidades públicas, e o critério regional dos Açores, que se desvia do critério nacional. Esta diferença de tratamento é objectivamente injustificável e politicamente inadmissível. E tratando-se de um governo regional socialista, há aqui também uma enorme falta de solidariedade política com o Governo socialista da República, que obviamente bem gostaria de não ter ido tão longe nas medidas de austeridade.
Em segundo lugar, essa isenção das medidas de austeridade em relação a uma parte dos funcionários regionais cria na própria Região Autónoma dos Açores uma arbitrária discriminação entre funcionários públicos com remunerações similares. Com efeito, os funcionários dos serviços do Estado existentes na região (militares, polícias, funcionários judiciais, etc.), bem como os funcionários das autarquias locais dos Açores, verão a sua posição relativa degradada face aos funcionários regionais com remunerações equiparadas, o que se torna tanto mais injustificável quanto é certo que a diferença se manterá para o futuro, com reflexos também sobre as futuras pensões de uns e de outros. Uma vantagem relativamente a situações similares é sempre um privilégio.
Por último, não existe nenhuma razão objectiva para essa "discriminação positiva" de uma parte dos funcionários regionais. Como é sabido, apesar dos "custos de insularidade" (transportes, comunicações, energia, etc.), o custo de vida médio nos Açores não é mais elevado do que a média nacional (pelo contrário) e os impostos (IVA, IRS) são sensivelmente mais baixos, o que faz com que as mesma remunerações tenham maior poder de compra real do que no continente ou na Madeira. Por conseguinte, a referida compensação só aumentará as vantagens dos funcionários açorianos agora beneficiados, por comparação com os demais funcionários públicos portugueses.
Nem se diga, em jeito de justificação, que essa compensação não vai custar um euro ao Orçamento do Estado, sendo obviamente financiada pelo orçamento regional. Há aqui, porém, um duplo equívoco.
Primeiro, a austeridade financeira não vale somente para o Orçamento do Estado, mas também para os orçamentos regionais, sendo, aliás, o Governo da República responsável perante Bruxelas pela consolidação orçamental de todas as administrações públicas e não somente das contas do Estado. Ora, é evidente que a referida compensação vai implicar um aumento da despesa pública com pessoal nas contas regionais (em 2011 e no futuro) em relação ao que deveria ser de acordo com as normas nacionais, sendo certo que a redução da despesa pública deve passar essencialmente pela despesa corrente, incluindo pela despesa com pessoal. Os Açores não vão portanto cumprir a redução de 5% nas despesas com o pessoal.
Segundo, se o orçamento regional dos Açores dispõe de folga para essa despesa adicional, isso deve-se em grande parte ao facto de ele estar isento de contribuir para os encargos gerais da República, que são suportados somente pelo Orçamento do Estado, e de ele beneficiar de volumosas transferências anuais do Orçamento do Estado, para o qual, aliás, os contribuintes das regiões autónomas não contribuem. Ou seja, a magnanimidade do orçamento açoriano é alimentada pela generosidade do Orçamento do Estado para com as regiões autónomas, no essencial preservada, apesar das actuais dificuldades orçamentais nacionais. A prodigalidade à custa alheia não é propriamente uma virtude...
Para além das questões políticas e orçamentais referidas, este infeliz episódio revela mais uma vez a displicência regional no cumprimento do "contrato nacional" inerente às autonomias regionais, que inclui naturalmente a obrigação de execução pelas autoridades regionais das leis da República de aplicação nacional (como não pode deixar de ser em matéria de remuneração dos funcionários públicos). A tentativa de fuga dos Açores ao cumprimento da norma sobre o corte de remunerações do sector público não é politicamente menos grave do que, por exemplo, a recusa de implementação pela Madeira da lei de legalização do aborto pelo serviço de saúde regional (que felizmente não perdurou), com a diferença de ser financeiramente mais onerosa.
Por tudo isto, esta excepção açoriana não deve prevalecer.
(Publico, terça-feira, 7 de Dezembro de 2010)