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24 de fevereiro de 2011

UE: pela democratização no mundo árabe 

Por Ana Gomes

O traço comum às revoltas populares que vimos partir da Tunísia para as explosões no Egipto, no Bahrein e na Líbia e para as manifestações que eclodiram no Iémen, na Jordânia, no Iraque, na Argélia, em Marrocos e no Sudão e até no (não árabe) Irão reside na ânsia dos respectivos povos por liberdade, democracia e melhores condições de vida.
Ao ver milhões de tunisinos, egípcios, líbios e outros – homens e mulheres - a clamar e a lutar contra governos corruptos e opressivos, todos os que vivemos o nosso 25 de Abril de 1974 não podemos deixar de estremecer em solidariedade.
Na Tunísia e no Egipto as movimentações populares foram despoletadas pelo martírio de jovens qualificados, mas sem emprego nem horizontes - Bouazizi na Tunísia, Khaled Said no Egipto - e ocorreram num contexto de grande pressão económica sobre o povo, devido ao aumento dos preços de produtos alimentares básicos. Rapidamente se espalharam graças ao poder de informação e mobilização das novas redes sociais online.
Apesar da feroz repressão política em ambos os países, quem sentia que já nada tinha a perder, a não ser o medo, perdeu-o: saiu à rua, arriscando a vida (e mais de 300 manifestantes foram assassinados no Egipto), mas persistiu e conseguiu fazer cair os regimes corruptos e autocráticos de Ben Ali e Mubarak, há décadas no poder.
Se a Tunísia foi a faísca, o Egipto fez irradiar a explosão que contagiou o mundo muçulmano, em sociedades com idênticas reivindicações, embora com expressão diferente.
Não vimos em lado nenhum queimar bandeiras israelitas, americanas ou europeias. Estas explosões populares não foram, não estão a ser, contra ninguém no exterior: são pelos direitos dos próprios povos que se revoltam. E demonstram que as suas aspirações por liberdade, democracia e oportunidades são realmente universais, sem incompatibilidade com a religião islâmica professada pela esmagadora maioria dos manifestantes. Desmentem, assim, frontalmente aqueles que brandem como inevitável um 'confronto de civilizações' entre cristãos e muçulmanos. E desacreditam por completo aqueles que até aqui justificavam o apoio às ditaduras opressoras, a pretexto de que elas garantiam a "estabilidade" e representavam a "segurança" contra ameaças fundamentalistas.
Tal como os anos 70 marcaram o fim das ditaduras em Portugal no sul da Europa, e os anos 80 o estertor dos regimes comunistas na Rússia e na Europa de Leste, agora poderemos ver acelerar-se a transformação do Norte de África e em boa parte do mundo muçulmano.
A Europa não pode ficar impassível, a assistir de braços cruzados: a sua prosperidade e segurança estão directamente dependentes da segurança e do progresso dos povos do Norte de África e do mundo árabe. Não basta já que o petróleo e o gás continuem a vir e não há "Fortaleza Europa" capaz de conter os afluxos de migrantes e refugiados se não tiverem condições de vida nos seus próprios países.
A UE tem de acabar com a hipocrisia de apregoar democracia e direitos humanos e, tal como os EUA, na prática apoiar regimes corruptos e repressivos, a pretexto da estabilidade e do combate ao fundamentalismo islamista. "Estabilidade" que, como vemos, não deu segurança nenhuma a Israel, nem à Europa, nem ao mundo, antes pelo contrário. E "ameaça fundamentalista" que efectivamente se não combateu, antes se reforçou ate pela legitimação na resistência à opressão - e esse é um desafio decisivo que vai travar-se nas transições que se seguirão à revolta no mundo árabe.
A UE tem de tirar as lições e passar a dar apoio, quer àqueles que ainda se batem pela queda dos tiranos - como acontece na Líbia face à brutalidade retaliatória do ditador Kadhafi - quer aos povos tunisino e egípcio na caminhada começada para a construção de regimes democráticos.
Pela nossa experiência em Portugal, sabemos como o processo de construção democrática é árduo, sinuoso e cheio de perigos. Democracia implica incluir no processo de transição e no diálogo as organizações representativas de todos os segmentos da sociedade - como a "Irmandade Muçulmana" no Egipto. No mundo árabe vai ser decisivo obrigar as forças mais radicais a jogar o jogo democrático, tal como aconteceu com o PCP em Portugal.
Uma das tarefas prioritárias para a UE será dar apoio à realização de eleições livres, desde já na Tunísia e no Egipto: e elas não se fazem sem partidos políticos plurais, sem liberdade de expressão e imprensa e sem instituições empenhadas e treinadas para construir o Estado de direito.
A forma como a UE se relacionar com as organizações das sociedades civis neste países e as mensagens que passar aos governos de transição serão decisivas. No mundo árabe, em que está por fazer a distinção entre Estado laico e comunidade religiosa, importa dar atenção especial aos direitos das mulheres e às relações com organizações que os valorizem - os direitos das mulheres serão um decisivo barómetro do respeito pelos direitos humanos nestas sociedades.
A democracia não se impõe à bomba e de fora, como pretendiam os neo-conservadores que instigaram Bush a invadir o Iraque. Os desenvolvimentos na Tunísia, no Egipto, na Líbia e em todo o mundo árabe provam que os seus cidadãos estão dispostos a arriscar as suas vidas por democracia, liberdade e melhores condições de vida. Em todo este processo as forças democráticas do exterior podem ajudar e devem ajudar - mas ninguém pode substituir os próprios povos na deposição dos tiranos e na condução do processo democrático.

(escrevi este artigo na 2a. feira passada, para a edição de hoje do JORNAL DE LEIRIA)

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