1 de maio de 2011
Compromissos prematuros
Por Vital Moreira
Têm tão pouca razão os que asseguram que depois do programa de reajustamento financeiro e económico da UE e do FMI deixará de haver margem para qualquer política governativa autónoma, sendo indiferente quem ganhe as eleições, como aqueles que exigem e acham imprescindível antecipar desde já um entendimento político entre os partidos (nomeadamente o PS e o PSD) para a próxima legislatura.
Antes de mais, não é preciso grande elaboração para verificar que o programa UE/FMI, por mais abrangente e por mais estrito que se apresente, não vai cancelar nem as diferenças entre as duas naturais alternativas de Governo entre nós (PS ou PSD) nem as distintas práticas governativas de ambos. Para além da margem de discricionariedade política que a implementação do próprio programa de ajustamento financeiro e económico vai deixar ao Governo - incluindo quanto a despesas a cortar e quanto a receitas a aumentar -, a verdade é que há muitos capítulos da agenda governativa que não vão ser afetados diretamente pelo "PEC IV 2R" (ou seja, o PEC IV reabilitado e reforçado...). Políticas de justiça, de segurança, de educação, de cultura, de ordenamento territorial, de ambiente, de agricultura, de imigração, de energia, de informação, etc., etc. -, nada disso vai deixar de ser previsivelmente diferente, conforme se trate de um Governo do PS ou do PSD.
Há muitas diferenças entre a social-democracia do PS, cioso dos serviços públicos universais de educação, de segurança social e de saúde, e o novo liberalismo do PSD, apostado no "Estado mínimo", no princípio do utente-pagador mesmo nos serviços sociais e na "liberdade de opção" entre o público e o privado. Podendo sofrer constrangimentos, essas diferenças não são apagadas em tempos de austeridade financeira e de recessão económica. De resto, mesmo na aplicação do programa de ajustamento económico e financeiro não é a mesma coisa fazê-la mantendo um mínimo de almofadas sociais e de responsabilidade social do Estado ou antes aplicando ortodoxamente as conhecidas receitais neoliberais de anátema do Estado, redução de impostos para os ricos, corte selvagem nas despesas sociais, privatização dos serviços sociais essenciais.
No entanto, há muita gente, de ambos os lados, a dar já como assente um entendimento de Governo entre o PS e o PSD (ou vice-versa). Penso que, a mais de um mês das eleições, se está a pôr o carro à frente dos bois. Sem dúvida que, para além do programa de austeridade, há necessidade de entendimento entre os dois partidos sobre os bloqueamentos estruturais de que o país padece (justiça, sistema eleitoral, administração territorial, etc.), mas isso não requer uma coligação de Governo. Face aos resultados eleitorais, um entendimento governativo pode vir a mostra-se imperioso, mas não se ganha nada, de lado a lado, em dá-lo por inevitável desde o início, muito menos em ignorar as suas dificuldades.
Senso certo que neste momento nenhum partido pode ter esperanças de obter uma maioria absoluta e dando por adquirido, depois da amarga experiência do último ano e meio, que um Governo minoritário não é solução nos tempos que correm, pode impor-se como inevitável uma qualquer forma de coligação, não podendo os partidos descartar essa provável hipótese. Mas isso não quer dizer que deva dar por antecipadamente adquirida uma coligação entre o PS e o PSD. Tal como o PSD continua a jogar no seu acordo pré-eleitoral com o CDS, também o PS deve abster-se de conceder desde já em que a única hipótese governativa, caso ganhe as eleições, é uma aliança com o PSD. Deve antes manter em aberto todas as alternativas - sem mesmo excluir liminarmente um improvável acordo com o PCP e/ou o BE, pois, embora estes não tenham nenhuma disponibilidade para assumir compromissos de Governo, não deve ser o PS a marginalizá-los antecipadamente, devendo deixar que sejam eles a auto-excluir-se.
Aparentemente, há mesmo quem pense que poderia ser repetido o compromisso pré-eleitoral de 1983 entre o PS e o PSD, quando Mário Soares e Mota Pinto se comprometeram antecipadamente numa coligação pós-eleitoral de ambos os partidos, quem quer que as ganhasse.
As condições são, porém, muito diferentes. Primeiro, tratou-se então de formar um Governo de largo suporte político e parlamentar para negociar e implementar o inevitável acordo de saneamento financeiro com o FMI, ao passo que agora o acordo já estará concluído e politicamente assumido pelos dois partidos antes das eleições. Segundo, ao contrário do que se pensa, as clivagens políticas entre os dois partidos são hoje mais fundas do que eram então, não se afigurando que o PSD esteja disponível para abdicar da sua nova agenda liberal do "Estado mínimo". Terceiro, nem Sócrates nem Passos Coelho são Soares e Mota Pinto, que se estimavam mutuamente (Mota Pinto tinha mesmo sido ministro independente de um Governo de Soares), ao contrário do que sucede agora, como revela o inaceitável veto pessoal do líder do PSD ao líder do PS.
Governos de grande coligação ao centro, cancelando a natural dialética alternativa entre os dois partidos de Governo do nosso sistema político, favorecendo uma lógica de "loteamento" do aparelho de Estado entre ambos (como mostrou a perniciosa experiência do "bloco central" de 83-85) e deixando a oposição exclusivamente nas mãos dos partidos mais radicais, só podem ser aceites como soluções excecionais e transitórias, com cláusulas políticas contra o "fogo amigo" e contra o "abuso de posição dominante" e com um mandato muito claro e temporalmente limitado.
[Público, terça-feira, 26 de Abril de 2011]
Têm tão pouca razão os que asseguram que depois do programa de reajustamento financeiro e económico da UE e do FMI deixará de haver margem para qualquer política governativa autónoma, sendo indiferente quem ganhe as eleições, como aqueles que exigem e acham imprescindível antecipar desde já um entendimento político entre os partidos (nomeadamente o PS e o PSD) para a próxima legislatura.
Antes de mais, não é preciso grande elaboração para verificar que o programa UE/FMI, por mais abrangente e por mais estrito que se apresente, não vai cancelar nem as diferenças entre as duas naturais alternativas de Governo entre nós (PS ou PSD) nem as distintas práticas governativas de ambos. Para além da margem de discricionariedade política que a implementação do próprio programa de ajustamento financeiro e económico vai deixar ao Governo - incluindo quanto a despesas a cortar e quanto a receitas a aumentar -, a verdade é que há muitos capítulos da agenda governativa que não vão ser afetados diretamente pelo "PEC IV 2R" (ou seja, o PEC IV reabilitado e reforçado...). Políticas de justiça, de segurança, de educação, de cultura, de ordenamento territorial, de ambiente, de agricultura, de imigração, de energia, de informação, etc., etc. -, nada disso vai deixar de ser previsivelmente diferente, conforme se trate de um Governo do PS ou do PSD.
Há muitas diferenças entre a social-democracia do PS, cioso dos serviços públicos universais de educação, de segurança social e de saúde, e o novo liberalismo do PSD, apostado no "Estado mínimo", no princípio do utente-pagador mesmo nos serviços sociais e na "liberdade de opção" entre o público e o privado. Podendo sofrer constrangimentos, essas diferenças não são apagadas em tempos de austeridade financeira e de recessão económica. De resto, mesmo na aplicação do programa de ajustamento económico e financeiro não é a mesma coisa fazê-la mantendo um mínimo de almofadas sociais e de responsabilidade social do Estado ou antes aplicando ortodoxamente as conhecidas receitais neoliberais de anátema do Estado, redução de impostos para os ricos, corte selvagem nas despesas sociais, privatização dos serviços sociais essenciais.
No entanto, há muita gente, de ambos os lados, a dar já como assente um entendimento de Governo entre o PS e o PSD (ou vice-versa). Penso que, a mais de um mês das eleições, se está a pôr o carro à frente dos bois. Sem dúvida que, para além do programa de austeridade, há necessidade de entendimento entre os dois partidos sobre os bloqueamentos estruturais de que o país padece (justiça, sistema eleitoral, administração territorial, etc.), mas isso não requer uma coligação de Governo. Face aos resultados eleitorais, um entendimento governativo pode vir a mostra-se imperioso, mas não se ganha nada, de lado a lado, em dá-lo por inevitável desde o início, muito menos em ignorar as suas dificuldades.
Senso certo que neste momento nenhum partido pode ter esperanças de obter uma maioria absoluta e dando por adquirido, depois da amarga experiência do último ano e meio, que um Governo minoritário não é solução nos tempos que correm, pode impor-se como inevitável uma qualquer forma de coligação, não podendo os partidos descartar essa provável hipótese. Mas isso não quer dizer que deva dar por antecipadamente adquirida uma coligação entre o PS e o PSD. Tal como o PSD continua a jogar no seu acordo pré-eleitoral com o CDS, também o PS deve abster-se de conceder desde já em que a única hipótese governativa, caso ganhe as eleições, é uma aliança com o PSD. Deve antes manter em aberto todas as alternativas - sem mesmo excluir liminarmente um improvável acordo com o PCP e/ou o BE, pois, embora estes não tenham nenhuma disponibilidade para assumir compromissos de Governo, não deve ser o PS a marginalizá-los antecipadamente, devendo deixar que sejam eles a auto-excluir-se.
Aparentemente, há mesmo quem pense que poderia ser repetido o compromisso pré-eleitoral de 1983 entre o PS e o PSD, quando Mário Soares e Mota Pinto se comprometeram antecipadamente numa coligação pós-eleitoral de ambos os partidos, quem quer que as ganhasse.
As condições são, porém, muito diferentes. Primeiro, tratou-se então de formar um Governo de largo suporte político e parlamentar para negociar e implementar o inevitável acordo de saneamento financeiro com o FMI, ao passo que agora o acordo já estará concluído e politicamente assumido pelos dois partidos antes das eleições. Segundo, ao contrário do que se pensa, as clivagens políticas entre os dois partidos são hoje mais fundas do que eram então, não se afigurando que o PSD esteja disponível para abdicar da sua nova agenda liberal do "Estado mínimo". Terceiro, nem Sócrates nem Passos Coelho são Soares e Mota Pinto, que se estimavam mutuamente (Mota Pinto tinha mesmo sido ministro independente de um Governo de Soares), ao contrário do que sucede agora, como revela o inaceitável veto pessoal do líder do PSD ao líder do PS.
Governos de grande coligação ao centro, cancelando a natural dialética alternativa entre os dois partidos de Governo do nosso sistema político, favorecendo uma lógica de "loteamento" do aparelho de Estado entre ambos (como mostrou a perniciosa experiência do "bloco central" de 83-85) e deixando a oposição exclusivamente nas mãos dos partidos mais radicais, só podem ser aceites como soluções excecionais e transitórias, com cláusulas políticas contra o "fogo amigo" e contra o "abuso de posição dominante" e com um mandato muito claro e temporalmente limitado.
[Público, terça-feira, 26 de Abril de 2011]