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1 de maio de 2011

Dois equívocos 

Por Vital Moreira

Há duas ideias contraditórias que ocorrem todos os cinco anos, aquando das eleições presidenciais. Por um lado, muitos candidatos presidenciais apresentam programas e objetivos como se o Presidente fosse omnipotente; por outro lado, há sempre comentadores a defender que, com poderes presidenciais tão limitados, talvez não se justifique a eleição direta do Presidente da República. Trata-se de dois equívocos políticos.

O primeiro decorre da chamada "tese semipresidencialista" como chave de leitura da nossa Constituição. Na verdade, porém, praticamente desde o início - desde a revisão constitucional de 1982 -, o nosso sistema constitucional não apresenta nenhum dos traços característicos de um genuíno sistema semipresidencial. Nem o Presidente da República compartilha da função governativa - que incumbe exclusivamente ao Governo, chefiado pelo primeiro-ministro -, nem o executivo depende da confiança política do Presidente da República - que não pode demiti-lo por esse motivo -, mas antes da confiança exclusiva da Assembleia da República. As eleições decisivas para a formação do Governo e as políticas públicas são as eleições parlamentares e não as eleições presidenciais. O chefe do Governo é em princípio o líder do partido mais votado nas eleições parlamentares, salvo quando ele não consiga formar Governo, por falta de suficiente apoio parlamentar.

É evidente que o Presidente da República pode exercer influência na formação dos governos, quer em situações de falta de maioria parlamentar (se o partido vencedor não optar por governar em maioria relativa), quer em caso de crise política (no seguimento de demissão de Governo), desde logo optando entre a formação de novo Governo ou a convocação de eleições antecipadas. E também pode excecionalmente determinar o fim dos governos, mediante a dissolução parlamentar - mas somente se as eleições parlamentarem subsequentes trouxerem diferente maioria.

É ainda mais limitada a capacidade do Presidente da República para interferir na ação governativa, que é definida e executada pelo Governo. Os seus instrumentos mais eficazes são puramente impeditivos, podendo vetar politicamente as leis e decretos-leis e suscitar a fiscalização da sua constitucionalidade. Trata-se porventura do mais visível dos poderes presidenciais, onde o inquilino de Belém pode afirmar o seu distanciamento ou a sua discordância face às orientações governamentais. O mesmo vale para a nomeação de certos titulares de cargos políticos ou institucionais que precisam do seu assentimento, desde o procurador-geral da República às chefias militares.

Ao invés, o Presidente não dispõe de qualquer meio para impor ao Governo alguma medida ou orientação política. Os seus meios de influência situam-se ao nível do conselho ou da recomendação, sem nenhuma força vinculativa. Menos eficaz, mas mais visível, pode ser a defesa pública de certas orientações ou soluções, mediante declarações avulsas, entrevistas, comunicações, etc.. Também por essa via o Presidente da República pode exprimir os seus pontos de vista e exercer pressão sobre o Governo.

Todavia, por mais limitados que sejam os poderes presidenciais, nada disso pode fazer questionar a eleição direta. Primeiro, os poderes presidenciais estão longe de ser tão reduzidos como os dos presidentes da República em sistemas parlamentares típicos (por isso não escolhidos em geral por eleição direta). Segundo, existem vários exemplos de eleição direta do Presidente da República sem que lhe caiba qualquer poder político efetivo (casos da Áustria, da Irlanda, entre outros). Por último, é muito mais difícil trocar a eleição direta pela eleição indireta do que o contrário.

Acima de tudo, a eleição direta é condição da legitimidade e autoridade política pessoal do Presidente da República para desempenhar as suas importantes funções de moderação e arbitragem política que estão no cerne da sua função constitucional entre nós. É a eleição direta, numa base de escolha pessoal, que lhe confere autonomia política face ao Governo e à oposição e que lhe proporciona a legitimidade para as suas funções mais intrusivas, como vetar leis votadas pelo Parlamento ou para convocar eleições antecipadas.

A alternativa à eleição direta seria a eleição parlamentar ou por um colégio eleitoral mais alargado, incluindo representantes das assembleias regionais e locais, entre outros (à imagem do que sucedeu na fase final do Estado Novo, entre 1958 e 1974). Em qualquer caso, tratar-se-ia sempre de uma eleição determinada por força de negociações e coligações partidárias, como ocorre em casos semelhantes, com o inerente condicionamento da independência e da legitimidade própria do Presidente. Com a eleição direta, sobretudo se não depender dos partidos para a sua própria candidatura, o Presidente da República não fica refém dos partidos que o possam ter apoiado. A nossa história política desde 1976 mostra que o voto do Presidente eleito vai normalmente para além das fronteiras dos partidos que o apoiam, sem muitas vezes conseguir o sufrágio pleno do eleitorado desses partidos. Não faz nenhum sentido entre nós o conceito de "maioria presidencial", para referenciar a base eleitoral do Presidente da República a uma certa coligação partidária.

Não há nenhum sistema de Governo perfeito, todos sendo fruto da história política e das conjunturas constituintes. Mas não existe nenhum fundamento para alterar o nosso sistema de Governo no sentido de dar mais poderes ao Presidente da República em relação ao Governo nem no sentido de enfraquecer a sua legitimidade e autoridade política própria. Os males do nosso sistema político, designadamente os relativos à instabilidade política e à debilidade dos governos minoritários, pouco dependem do estatuto do Presidente da República.

(Público, terça-feira, 28 de DEzembro de 2010)

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