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1 de maio de 2011

O anátema 

Por Vital Moreira

Tirando a esquerda radical, que acha que o equilíbrio e a disciplina orçamental são uma invenção burguesa e que o défice e o endividamento público são virtuosos, poucos duvidam hoje seriamente de que finanças públicas estruturalmente equilibradas são condição para o crescimento sustentável e para a equidade intergeracional. A questão está em como estabelecer e manter tal equilíbrio: jogando tudo na redução da despesa pública e no "Estado mínimo", como quer a ortodoxia neoliberal, ou incluir também na equação uma melhoria das receitas públicas, de modo a salvaguardar o funcionamento do Estado e os serviços públicos essenciais?

O problema é de importância crucial na actual circunstância do país, obrigado a um severo programa de reequilíbrio financeiro, depois do choque orçamental de 2009 e da "crise das dívidas soberanas" na Europa. Quando se fala em reduzir o défice das contas públicas, a opinião dominante só pensa no corte drástico da despesa pública, no despedimento maciço de funcionários públicos, na anulação de todo o investimento público, enfim em matar à mingua de financiamento os sistemas públicos de educação, de saúde e de protecção social. Na impossibilidade de fechar o Estado, a nossa direita radical, imitando o que se passa hoje nos Estados Unidos, quer asfixiá-lo financeiramente. Nada melhor do que uma grave crise orçamental para avançar com essa agenda (pouco) escondida.

Sim, é imprescindível um programa de substancial redução e racionalização da despesa pública. O país não pode continuar a financiar serviços e entidades públicas redundantes, o desperdício e a ineficiência da administração, auto-estradas gratuitas, universidades quase gratuitas, transportes públicos ruinosos, inúmeros subsídios sem justificação, regalias corporativas escandalosas, um sistema judicial custoso e inoperante, gastos excessivos de autarquias territoriais e regiões autónomas, responsabilidades incomportáveis nas Forças Armadas, níveis de protecção social insustentáveis, pensões elevadas sem qualquer relação com a vida contributiva, etc. etc.

Todavia, só por estultícia ou reserva mental é que se pode defender que se pode atingir, dentro de poucos anos, um saldo orçamental primário (de modo a começar a reduzir o stock da dívida) apenas por via do corte selvagem da despesa, uma cura que mataria o doente tornando o Estado verdadeiramente inoperacional. É preciso também pensar em elevar a receita pública, pelo menos a título transitório, durante a fase de saneamento das contas públicas, quanto mais não seja para compensar a redução da receita provocada perla recessão económica gerada pela contração da despesa pública. O défice orçamental não é somente um excesso de despesa mas também um défice de receita publica. A austeridade orçamental não quer dizer somente redução dos gastos públicos mas também agravamento da carga contributiva. O aumento da receita não pode ser um anátema.

Para começar, muitos dos problemas acima referidos traduzem-se em escassez de receita pública, como sejam as generosas deduções fiscais, os serviços públicos indevidamente fornecidos a custo zero (Scuts, estacionamento automóvel) ou a custo pouco mais do que simbólico (propinas do ensino superior) ou muito abaixo do custo efectivo (transportes públicos, taxas de uso de infra-estruturas públicas, etc.). Depois há isenções e reduções fiscais que nada justifica, como sucede em muitas das taxas reduzidas de IVA.

Em segundo lugar, numa crise destas é intolerável o nível de fuga e de evasão fiscal. A prestação de muitos serviços e mesmo muitas transações de bens (por exemplo automóveis usados) fogem ao IVA. Muitos serviços profissionais escapam ao IRS e ao IRC, mediante o abuso da sociedade unipessoal, com todas as deduções de custos reais ou fictícios que isso permite. A maior parte das empresas não paga IRC. Muitas rendas imobiliárias não são tributadas em IRS (até porque não beneficiam das "taxas liberatórias" das demais rendimentos de capital). A própria tributação da propriedade imobiliária é contornada pelo seu registo em offshores. Num período em que tanto se exige a quem cumpre, é inadmissível a complacência com quem foge à lei ou abusa das facilidades da lei.

Em terceiro lugar, mesmo excluindo um agravamento da taxas normais dos impostos gerais (IRS, IRC, IVA), há ainda muito espaço para aumentar a receita fiscal, pelo menos a título excepcional e transitório. Cite-se desde logo a proposta do CEO do BPI, Fernando Ulrich, de uma sobretaxa sobre as empresas com lucros mais volumosos, bem como a diminuição do âmbito de taxas de IVA reduzidas, a subida da tributação da propriedade (comparativamente baixa entre nós), a aplicação de taxas sobre crédito ao consumo (com a vantagem de reduzir o endividamento das famílias e até as importações).

Finalmente, num situação de aperto como esta, é verdadeiramente escandaloso que não tenhamos um imposto sobre as sucessões e doações de valor elevado, que é porventura o imposto mais justo que jamais existiu. Eliminado pelo último governo PSD-CDS (2003-2005), nunca mais se ouviu falar dele, numa conspiração de silêncio que traduz bem a influência política e mediática do que beneficiam da sua abolição. Tributa-se fortemente a aquisição onerosa de bens, isenta-se de imposto específico a aquisição gratuita de grandes patrimónios...

É de crer que a generalidade dos portugueses aceitam os sacrifícios necessários para equilibrar as contas públicas e quebrar a maldição do endividamento excessivo, mas desde que os seus custos sejam socialmente equilibrados e equitativamente distribuídos. As vítimas da austeridade orçamental não podem ser sobretudo os que mais dependem do Estado social que uma direita serodiamente liberal quer agora aproveitar para desmantelar.

[Público, terça-feira, 19 de Abril de 2011]

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