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1 de maio de 2011

Uma proposta imprestável 

Por Vital Moreira

Corre no Parlamento Europeu (PE) um projeto de revisão da respetiva lei eleitoral, tendente, entre outras coisas, a criar um círculo eleitoral de âmbito europeu, sobreposto aos atuais círculos eleitorais de base nacional ou regional, e a estabelecer uma regra geral sobre a repartição do número global de deputados pelos Estados-membros, de modo a permitir a sua redistribuição automática a cada nova eleição em função da adesão de novos Estados-membros ou de mudanças demográficas. Mas nenhuma dessas propostas tem pés para andar.

Sendo a única instituição europeia diretamente eleita, o Parlamento Europeu representa os cidadãos da União, ainda que os deputados sejam eleitos em circunscrições eleitorais de âmbito nacional ou subnacional. De acordo com o Tratado de União (na redação do Tratado de Lisboa), o PE é composto pelo máximo de 751 deputados, os quais são repartidos pelos Estados-membros de acordo com um princípio de "proporcionalidade degressiva", não podendo porém nenhum país ter mais do 96 lugares, por maior que ele seja, nem menos de seis, por menor que seja.

E por aqui se fica o Tratado em matéria de composição e eleição do PE. Tudo o mais deve ser regulado pela lei eleitoral europeia, aprovada em 1976, entretanto revista por diversas vezes. Quanto ao modo de eleição, a lei estabelece que os deputados são eleitos ao nível de cada país, em círculos eleitorais de âmbito nacional ou regional, e de acordo com o princípio da proporcionalidade, sem prejuízo de estabelecimento de "cláusulas-barreira", exigindo uma percentagem mínima de votos para haver eleição de um deputado. Quanto à repartição dos deputados pelos Estados-membros, a sua distribuição é decidida, por unanimidade, pelo Conselho Europeu (composto pelos chefes de governo nacionais) sob proposta e mediante aprovação do próprio Parlamento. É evidente que sempre que haja a entrada de um novo país na União é necessário refazer a repartição global dos deputados.

Vejamos agora as referidas propostas de alteração, começando pela primeira, ou seja, a criação de um círculo eleitoral transnacional, sobreposto aos atuais círculos nacionais ou regionais, e destinado a eleger 25 deputados adicionais.

Compreende-se o objetivo da proposta, que consiste em conferir uma verdadeira dimensão europeia à eleição do Parlamento Europeu, com listas plurinacionais propostas por partidos europeus (e não pelos partidos nacionais) e com uma campanha eleitoral necessariamente transfronteiriça. Em contrapartida, porém, uma tal solução complicaria o processo eleitoral (com dois votos e duas contagens diferentes) e poderia levar à criação de dois tipos de deputados, os "nacionais" e os "verdadeiramente europeus".

Em todo o caso, porém, essa proposta não tem nenhuma hipótese de vingar nas atuais circunstâncias. Primeiro, ela necessitaria de uma prévia revisão do próprio Tratado da UE, o que neste momento não se pode encarar seriamente. Segundo, ela teria obviamente a oposição de vários Estados-membros, que não poderiam deixar de a acusar de "ultrafederalista", sabendo-se que nem nos Estados federais existe eleição de deputados numa base federal.

A segunda das referidas propostas tem ainda menos pés para andar. É certo que ela visa resolver um problema real, que é o da falta de um critério geral e abstrato que permita proceder à redistribuição "automática" dos eurodeputados antes de cada eleição, tendo em conta a adesão de novos Estados ou as mudanças demográficas, desse modo dispensando a "mercearia" política que habitualmente acompanha essa operação.

No entanto, é bom de ver que a solução em discussão é inaceitável, na medida em que levaria à perda de deputados por quase 2/3 dos Estados-membros (entre os quais Portugal, que perderia nada menos do que 4 dos 22 deputados que atualmente lhe cabem) em benefício dos grandes países (Grã-Bretanha, França, Itália, etc.), ressalvado o caso da Alemanha, que não pode exceder o referido limite máximo de 96 deputados. Sabendo-se que o Tratado exige unanimidade na decisão do Conselho Europeu que decide a repartiação dos deputados do PE, fácil é verificar que haveria mais do que um veto à referida proposta.

Sucede que a proposta nem sequer é convincente quanto ao critério que propõe, no que respeita à observância do princípio constitucional da "proporcionalidade degressiva". Parece evidente que, de acordo com tal princípio, o número de deputados por país deve variar de acordo com a população de cada um - dentro dos limites mínimo e máximo estabelecido -, sendo tanto maior quanto mais populosos forem os países. Todavia, ao falar em "proporcionalidade degressiva", o Tratado só pode querer dizer que a relação deputados-população deverá ser tanto menos proporcional quanto maiores forem os países. Ora, o critério proposto, que consiste em atribuir à partida cinco deputados a todos os países e depois distribuir os restantes proporcionalmente à população de cada um, acaba por fazer com que a proporcionalidade seja tanto menos "degressiva" quanto maiores forem os países, o que vai claramente contra o espírito do Tratado. Acresce que a Alemanha, constitucionalmente impedida de ter mais de 96 deputados, veria a França e a Grã-Bretanha a encurtarem a atual diferença do número de deputados, tornando mais visível o corte da proporcionalidade no caso alemão.

Sendo indiscutivelmente meritório buscar um critério objetivo para a repartição dos deputados ao PE, a verdade é que o critério agora apresentado não é aceitável nem defensável. Enquanto não for proposto outro mais razoável, teremos de continuar a depender do pragmatismo e da prudência do Conselho Europeu.

[Público, terça-feira, 22 de Fevereiro de 2011]

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