9 de julho de 2011
Tirar partido das crises
Por Vital Moreira
A julgar pela opinião dominante, há um espetro que ensombra a Europa - a ameaça da desagregação do euro e do reforço político dos movimentos antieuropeístas em vários países, com risco para a própria União Europeia. Há obviamente quem deseje tal desenlace, por ser contra um e contra outra, ansiando por que os seus desejos se tornem realidade. Mas há também muitos genuínos europeístas que temem que a atual situação de dificuldade da moeda única e de crescimento do antieuropeísmo se deteriore sem recuo e sem remédio. Urge questionar o bem fundado das esperanças dos primeiros e dos temores dos segundos.
Se esta é sem dívida a curva mais apertada da curta história do euro, não é menos verdade que não é a primeira situação de crise da integração europeia. Pelo contrário, ao longo do meio século desta não faltaram situações de impasse e de incerteza sobre o futuro, desde a "birra" de De Gaulle em 1966 ("crise da cadeira vazia") até à rejeição do Tratado Constitucional em 2005. Em todos os casos, com mais ou menos demora e dificuldades, a Europa "deu a volta por cima", conseguindo sair mais forte e mais coesa do que antes. Não falta quem desde há muito tenha defendido uma teoria da virtude das crises europeias. É na resposta e superação das dificuldades que se lhe têm deparado que a integração europeia tem dado os seus mais largos passos em frente. Sem os obstáculos que tem sido obrigada a superar, a União Europeia (nos seus diversos avatares ao longo do tempo) não seria o que é hoje.
O mesmo se pode dizer da presente crise, cuja primeira fase se traduziu na crise bancária (e logo depois económica) importada dos Estados Unidos em 2008, tendo afetado quase todos os países da União, e cuja segunda fase se desencadeou com a crise da dívida soberana grega de 2010, tendo depois passado à Irlanda e a Portugal, mantendo sob pressão outros países menos vulneráveis mas ainda assim sob a mira dos mercados. Ao longo dos dois últimos anos a União foi tomando um conjunto de medidas políticas e legislativas para responder a estas duas crises que antes ninguém imaginaria pudessem vir a ser tomadas, mesmo que muitas delas já tivessem sido defendidas por espíritos mais avisados e mais precavidos desde o lançamento do mercado interno, há vinte anos, e da moeda única, vai para dez anos.
Em resposta à crise bancária de 2009, foi lançado um vasto pacote de medidas, de onde se destaca o sistema de supervisão financeira a nível da União (autoridades europeias de supervisão para a banca, seguros e valores mobiliários), juntamente com um reforço da própria regulação substantiva, incluindo as agências de notação de crédito, os fundos de investimento alternativos, o aumento dos requisitos de capital dos bancos, os prémios dos gestores, etc. É evidente que todas essas iniciativas se traduzem num reforço da integração financeira europeia, colmatando o défice de regulação e supervisão pan-europeia que a integração dos mercados e a união monetária tinham tornado evidente mas que só a crise tornou insustentável.
O mesmo se está a passar com a necessária resposta à crise da dívida pública, ainda que com mais hesitações, divisões e resistências. Embora também aqui houvesse desde há muito quem alertasse para o facto de que uma união monetária não poderia dispensar um nível exigente de integração das políticas orçamentais e económicas, a verdade é que as dificuldades não poderiam deixar de ser maiores, primeiro porque uma maior integração nesta matéria afeta mais claramente domínios sensíveis da soberania orçamental e política dos Estados-membros e em segundo lugar porque a crise da dívida pública não atingiu a maior parte dos Estados-membros nem obedeceu ao mesmo padrão em relação aos que afetou mais diretamente, ou seja, Grécia, Irlanda e Portugal. Se é verdade que todos os casos foram desencadeados pela crise financeira e pela subsequente crise económica, não faltam, porém, fatores peculiares assaz distintivos em cada um deles.
Ainda que com imperdoável demora, a União tomou primeiro medidas de emergência para socorrer a Grécia, seguidas da criação (em associação com o FMI) de um mecanismo específico de ajuda a outros países em dificuldades de financiamento no mercado, o que veio a suceder com a Irlanda e com Portugal. E não tardou a preparar as iniciativas necessárias para reforçar no futuro os mecanismos de disciplina orçamental e da sua coordenação a nível europeu (o chamado "semestre europeu"), bem como as propostas de reforço da supervisão e das sanções por incumprimento dos limites ao défice orçamental e à dívida pública. O mesmo se verificou com o novo programa de medidas para a competitividade (programa Euro+), visando a correção dos défices da balança externa desses países e o crescimento económico, sem o qual nenhuma disciplina orçamental poderá ser suficiente.
Por tudo isto, nunca será de mais pôr em relevo a importância do chamado pacote legislativo da "governação económica" que a Comissão Europeia propôs e que o Parlamento Europeu acaba de aprovar. Ele visa em geral suprir o défice de meios da União em matéria de "enforcement" da disciplina orçamental, bem como o défice de coordenação "federal" das políticas económicas e sociais, que a união monetária desde o início reclamava.
Pode suceder que desta crise não se possa já sair sem baixas, ainda que controladas. Se a União não fez o necessário para prevenir a crise e talvez não tenha feito o suficiente para a superar sem perdas, não se pode dizer, porém, que não tenha feito o que tinha de ser feito para tirar lições dela e para evitar a sua repetição futura. Mais uma vez, a crise foi parteira de novos passos em frente na integração europeia. Há crises assim, como as doenças: quando não sejam fatais, ajudam a criar antídotos para o futuro.
[Público, terça-feira, 28 de Junho de 2011]
A julgar pela opinião dominante, há um espetro que ensombra a Europa - a ameaça da desagregação do euro e do reforço político dos movimentos antieuropeístas em vários países, com risco para a própria União Europeia. Há obviamente quem deseje tal desenlace, por ser contra um e contra outra, ansiando por que os seus desejos se tornem realidade. Mas há também muitos genuínos europeístas que temem que a atual situação de dificuldade da moeda única e de crescimento do antieuropeísmo se deteriore sem recuo e sem remédio. Urge questionar o bem fundado das esperanças dos primeiros e dos temores dos segundos.
Se esta é sem dívida a curva mais apertada da curta história do euro, não é menos verdade que não é a primeira situação de crise da integração europeia. Pelo contrário, ao longo do meio século desta não faltaram situações de impasse e de incerteza sobre o futuro, desde a "birra" de De Gaulle em 1966 ("crise da cadeira vazia") até à rejeição do Tratado Constitucional em 2005. Em todos os casos, com mais ou menos demora e dificuldades, a Europa "deu a volta por cima", conseguindo sair mais forte e mais coesa do que antes. Não falta quem desde há muito tenha defendido uma teoria da virtude das crises europeias. É na resposta e superação das dificuldades que se lhe têm deparado que a integração europeia tem dado os seus mais largos passos em frente. Sem os obstáculos que tem sido obrigada a superar, a União Europeia (nos seus diversos avatares ao longo do tempo) não seria o que é hoje.
O mesmo se pode dizer da presente crise, cuja primeira fase se traduziu na crise bancária (e logo depois económica) importada dos Estados Unidos em 2008, tendo afetado quase todos os países da União, e cuja segunda fase se desencadeou com a crise da dívida soberana grega de 2010, tendo depois passado à Irlanda e a Portugal, mantendo sob pressão outros países menos vulneráveis mas ainda assim sob a mira dos mercados. Ao longo dos dois últimos anos a União foi tomando um conjunto de medidas políticas e legislativas para responder a estas duas crises que antes ninguém imaginaria pudessem vir a ser tomadas, mesmo que muitas delas já tivessem sido defendidas por espíritos mais avisados e mais precavidos desde o lançamento do mercado interno, há vinte anos, e da moeda única, vai para dez anos.
Em resposta à crise bancária de 2009, foi lançado um vasto pacote de medidas, de onde se destaca o sistema de supervisão financeira a nível da União (autoridades europeias de supervisão para a banca, seguros e valores mobiliários), juntamente com um reforço da própria regulação substantiva, incluindo as agências de notação de crédito, os fundos de investimento alternativos, o aumento dos requisitos de capital dos bancos, os prémios dos gestores, etc. É evidente que todas essas iniciativas se traduzem num reforço da integração financeira europeia, colmatando o défice de regulação e supervisão pan-europeia que a integração dos mercados e a união monetária tinham tornado evidente mas que só a crise tornou insustentável.
O mesmo se está a passar com a necessária resposta à crise da dívida pública, ainda que com mais hesitações, divisões e resistências. Embora também aqui houvesse desde há muito quem alertasse para o facto de que uma união monetária não poderia dispensar um nível exigente de integração das políticas orçamentais e económicas, a verdade é que as dificuldades não poderiam deixar de ser maiores, primeiro porque uma maior integração nesta matéria afeta mais claramente domínios sensíveis da soberania orçamental e política dos Estados-membros e em segundo lugar porque a crise da dívida pública não atingiu a maior parte dos Estados-membros nem obedeceu ao mesmo padrão em relação aos que afetou mais diretamente, ou seja, Grécia, Irlanda e Portugal. Se é verdade que todos os casos foram desencadeados pela crise financeira e pela subsequente crise económica, não faltam, porém, fatores peculiares assaz distintivos em cada um deles.
Ainda que com imperdoável demora, a União tomou primeiro medidas de emergência para socorrer a Grécia, seguidas da criação (em associação com o FMI) de um mecanismo específico de ajuda a outros países em dificuldades de financiamento no mercado, o que veio a suceder com a Irlanda e com Portugal. E não tardou a preparar as iniciativas necessárias para reforçar no futuro os mecanismos de disciplina orçamental e da sua coordenação a nível europeu (o chamado "semestre europeu"), bem como as propostas de reforço da supervisão e das sanções por incumprimento dos limites ao défice orçamental e à dívida pública. O mesmo se verificou com o novo programa de medidas para a competitividade (programa Euro+), visando a correção dos défices da balança externa desses países e o crescimento económico, sem o qual nenhuma disciplina orçamental poderá ser suficiente.
Por tudo isto, nunca será de mais pôr em relevo a importância do chamado pacote legislativo da "governação económica" que a Comissão Europeia propôs e que o Parlamento Europeu acaba de aprovar. Ele visa em geral suprir o défice de meios da União em matéria de "enforcement" da disciplina orçamental, bem como o défice de coordenação "federal" das políticas económicas e sociais, que a união monetária desde o início reclamava.
Pode suceder que desta crise não se possa já sair sem baixas, ainda que controladas. Se a União não fez o necessário para prevenir a crise e talvez não tenha feito o suficiente para a superar sem perdas, não se pode dizer, porém, que não tenha feito o que tinha de ser feito para tirar lições dela e para evitar a sua repetição futura. Mais uma vez, a crise foi parteira de novos passos em frente na integração europeia. Há crises assim, como as doenças: quando não sejam fatais, ajudam a criar antídotos para o futuro.
[Público, terça-feira, 28 de Junho de 2011]