9 de julho de 2011
Troca de posições
Por Vital Moreira
A frase de Paulo Portas, há dias, segundo a qual o CDS se encontra agora "mais à esquerda do que o PSD", nunca poderia ter sido proferida até agora sem ser tomada como simples "boutade" política. O que a tornou inesperadamente credível não foi nenhuma deslocação do primeiro para a esquerda, mas sim uma notória deriva do segundo para a direita. Quais são as implicações desta transfiguração política?
Do projeto de social-democracia nórdica que alegadamente Sá Carneiro sonhava para Portugal só restam hoje "resquícios", como reconheceu o próprio Passos Coelho numa recente entrevista. Começou aliás cedo o distanciamento do PSD em relação ao modelo de que reivindicou o nome, sem nunca ter feitio jus a ele. Todavia, ao longo das três primeiras décadas de regime constitucional, se o PSD sempre contestou o excessivo intervencionismo económico do Estado, nunca porém se demarcou do modelo de Estado social garantido na Constituição de 1976, baseado num elevado grau de proteção dos direitos laborais e na responsabilidade pública pela efetivação do direito à saúde, à educação e à segurança social. Mesmo sem ter tomado nenhuma iniciativa relevante nessa área, tendo-se mesmo oposto a algumas (como o rendimento mínimo garantido), a verdade é que posteriormente, uma vez no Governo, o PSD absteve-se em geral de as revogar ou reformular drasticamente
Sem grande simplificação, pode dizer-se que ao longo de todos estes anos de rotativismo governativo entre o PS e o PSD (com o CDS à mistura por vezes), se o PS se conformou com as medidas de privatização e de liberalização económica antes tomadas pelo PSD, este por sua vez foi-se conformando com as iniciativas daquele no plano social, como a criação do SNS, a instituição do sistema geral de segurança social, o alargamento e expansão do serviço público de educação, entre outras. Por isso, se a Constituição foi sendo profundamente reconvertida no que respeita à ordem económica - que sofreu uma verdadeira metamorfose, como escrevi noutro lugar -, já tal não ocorreu nem no capítulo dos direitos laborais nem na "constituição social".
Tudo mudou com a chegada da Passos Coelho à liderança do PSD. Embora os sinais viessem de trás, designadamente desde a proposta de Marques Mendes, há uns seis anos, de privatização substancial do sistema de pensões, foi com o atual líder que apareceu uma agenda caracterizadamente neoliberal na esfera social (e não somente na esfera económica). Desde o polémico projeto de revisão constitucional de há um ano até ao presente programa eleitoral em vista das eleições de 5 de Junho, tornaram-se claros os contornos da ofensiva "laranja" contra o "acquis social" pós-revolução de 1975. Dela fazem parte, entre outros aspetos, o estabelecimento de um teto nas contribuições para o sistema público de pensões, desviando o resto para fundos de pensões privados, a redução do SNS a um programa básico de cuidados de saúde, lançando o resto no mercado, ao mesmo tempo que se propõe a chamada liberdade de opção entre o sistema público e o privado, à custa do orçamento, o mesmo se propondo para o ensino, que seria rapidamente privatizado a expensas do Estado.
Quando o líder do PSD se permite dizer, aliás sem receio de contestação, que o seu programa eleitoral é bem mais radical do que o programa da troika, ele não quer referir-se somente às medidas de ajustamento orçamental e financeiro mas também ao programa de privatizações e, bem entendido, à referida reconfiguração dos três pilares básicos do Estado social que são a educação, a saúde e a segurança social. O PSD conseguiu o que desde o verão de 2010 era o seu objetivo prioritário, ou seja, fazer tudo para forçar o pedido de ajuda externa, para depois utilizar as condições políticas daquela para alavancar uma ofensiva em forma contra o nosso Estado social. Antes de combater a crise orçamental, o PSD está sobretudo interessado em servir-se dela para acionar o seu próprio programa económico, social e ideológico.
Como se não bastasse o fundamentalismo liberal em matéria económica e social, o líder do PSD resolveu inesperadamente juntar uma dose de reacionarismo ideológico, ao ensaiar um despudorado flirt com a cruzada da direita católica contra a despenalização do aborto. Este deprimente episódio não revela somente oportunismo na disputa desse eleitorado ao CDS, antes mostra também que para tentar ganhar mais uns votos (ainda que provavelmente à custa da perda de outros...) o PSD está disponível para reabrir a "guerra do aborto" entre nós. Não se conhece lá fora nenhum caso de retrocesso nesta matéria. Mesmo quando não foi a própria direita a despenalizar o aborto (como em França), ela respeitou em geral como irreversível essa mudança, quando da responsabilidade da esquerda. Aparentemente, o PSD quer assumir a responsabilidade de abrir um triste precedente entre nós, retrocedendo numa questão-chave para a liberdade individual. E que se seguirá depois: rever a lei do divórcio, questionar a lei do casamento de pessoas do mesmo sexo, repensar a despenalização das drogas leves?!
Ao ultrapassar o CDS pela direita, o qual adotou posições menos aventureiras e mais prudentes em qualquer dos referidos domínios, o PSD não questiona somente a dimensão social e o liberalismo moderado da sua herança política e doutrinária, por mais indefinida que esta fosse. Reposiciona-se também no nosso espetro político-partidário, baralhando as tradicionais fidelidades ideológicas e sociológicas. Decididamente, o nosso sistema político não precisava de mais este fator de imprevisibilidade e de instabilidade...
[Público, terça-feira, 31 de Maio de 2011]
A frase de Paulo Portas, há dias, segundo a qual o CDS se encontra agora "mais à esquerda do que o PSD", nunca poderia ter sido proferida até agora sem ser tomada como simples "boutade" política. O que a tornou inesperadamente credível não foi nenhuma deslocação do primeiro para a esquerda, mas sim uma notória deriva do segundo para a direita. Quais são as implicações desta transfiguração política?
Do projeto de social-democracia nórdica que alegadamente Sá Carneiro sonhava para Portugal só restam hoje "resquícios", como reconheceu o próprio Passos Coelho numa recente entrevista. Começou aliás cedo o distanciamento do PSD em relação ao modelo de que reivindicou o nome, sem nunca ter feitio jus a ele. Todavia, ao longo das três primeiras décadas de regime constitucional, se o PSD sempre contestou o excessivo intervencionismo económico do Estado, nunca porém se demarcou do modelo de Estado social garantido na Constituição de 1976, baseado num elevado grau de proteção dos direitos laborais e na responsabilidade pública pela efetivação do direito à saúde, à educação e à segurança social. Mesmo sem ter tomado nenhuma iniciativa relevante nessa área, tendo-se mesmo oposto a algumas (como o rendimento mínimo garantido), a verdade é que posteriormente, uma vez no Governo, o PSD absteve-se em geral de as revogar ou reformular drasticamente
Sem grande simplificação, pode dizer-se que ao longo de todos estes anos de rotativismo governativo entre o PS e o PSD (com o CDS à mistura por vezes), se o PS se conformou com as medidas de privatização e de liberalização económica antes tomadas pelo PSD, este por sua vez foi-se conformando com as iniciativas daquele no plano social, como a criação do SNS, a instituição do sistema geral de segurança social, o alargamento e expansão do serviço público de educação, entre outras. Por isso, se a Constituição foi sendo profundamente reconvertida no que respeita à ordem económica - que sofreu uma verdadeira metamorfose, como escrevi noutro lugar -, já tal não ocorreu nem no capítulo dos direitos laborais nem na "constituição social".
Tudo mudou com a chegada da Passos Coelho à liderança do PSD. Embora os sinais viessem de trás, designadamente desde a proposta de Marques Mendes, há uns seis anos, de privatização substancial do sistema de pensões, foi com o atual líder que apareceu uma agenda caracterizadamente neoliberal na esfera social (e não somente na esfera económica). Desde o polémico projeto de revisão constitucional de há um ano até ao presente programa eleitoral em vista das eleições de 5 de Junho, tornaram-se claros os contornos da ofensiva "laranja" contra o "acquis social" pós-revolução de 1975. Dela fazem parte, entre outros aspetos, o estabelecimento de um teto nas contribuições para o sistema público de pensões, desviando o resto para fundos de pensões privados, a redução do SNS a um programa básico de cuidados de saúde, lançando o resto no mercado, ao mesmo tempo que se propõe a chamada liberdade de opção entre o sistema público e o privado, à custa do orçamento, o mesmo se propondo para o ensino, que seria rapidamente privatizado a expensas do Estado.
Quando o líder do PSD se permite dizer, aliás sem receio de contestação, que o seu programa eleitoral é bem mais radical do que o programa da troika, ele não quer referir-se somente às medidas de ajustamento orçamental e financeiro mas também ao programa de privatizações e, bem entendido, à referida reconfiguração dos três pilares básicos do Estado social que são a educação, a saúde e a segurança social. O PSD conseguiu o que desde o verão de 2010 era o seu objetivo prioritário, ou seja, fazer tudo para forçar o pedido de ajuda externa, para depois utilizar as condições políticas daquela para alavancar uma ofensiva em forma contra o nosso Estado social. Antes de combater a crise orçamental, o PSD está sobretudo interessado em servir-se dela para acionar o seu próprio programa económico, social e ideológico.
Como se não bastasse o fundamentalismo liberal em matéria económica e social, o líder do PSD resolveu inesperadamente juntar uma dose de reacionarismo ideológico, ao ensaiar um despudorado flirt com a cruzada da direita católica contra a despenalização do aborto. Este deprimente episódio não revela somente oportunismo na disputa desse eleitorado ao CDS, antes mostra também que para tentar ganhar mais uns votos (ainda que provavelmente à custa da perda de outros...) o PSD está disponível para reabrir a "guerra do aborto" entre nós. Não se conhece lá fora nenhum caso de retrocesso nesta matéria. Mesmo quando não foi a própria direita a despenalizar o aborto (como em França), ela respeitou em geral como irreversível essa mudança, quando da responsabilidade da esquerda. Aparentemente, o PSD quer assumir a responsabilidade de abrir um triste precedente entre nós, retrocedendo numa questão-chave para a liberdade individual. E que se seguirá depois: rever a lei do divórcio, questionar a lei do casamento de pessoas do mesmo sexo, repensar a despenalização das drogas leves?!
Ao ultrapassar o CDS pela direita, o qual adotou posições menos aventureiras e mais prudentes em qualquer dos referidos domínios, o PSD não questiona somente a dimensão social e o liberalismo moderado da sua herança política e doutrinária, por mais indefinida que esta fosse. Reposiciona-se também no nosso espetro político-partidário, baralhando as tradicionais fidelidades ideológicas e sociológicas. Decididamente, o nosso sistema político não precisava de mais este fator de imprevisibilidade e de instabilidade...
[Público, terça-feira, 31 de Maio de 2011]