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24 de novembro de 2011

Queridos amigos alemães 

por Ana Gomes

A Europa fez-se para esconjurar a guerra, integrando a Alemanha num projecto solidário de progresso e democracia. Sentindo-a hoje à beira do precipício, falemos claro: se o euro ruir, a Europa desfaz-se. Morre-vos a galinha dos ovos de ouro – sem mercado único e euro, a Alemanha perde influência, mercados e boa vizinhança. A responsabilidade será sobretudo vossa. Por não assumirem as obrigações como mais forte e rica potência europeia.
Políticos e media populistas venderam-vos que portugueses,gregos, italianos e espanhóis são PIIGS chafurdantes em ócio e desperdício. Não contam que quem encorajou os nossos governos, bancos, empresas e cidadãos a endividar-se foram os vossos banqueiros, empresários e caixeiros viajantes, instigando-nos a tirar partido do baixo juro do euro para lhes comprar submarinos, carros, equipamentos,tecnologias. Em muitos contratos formatados para esbulhar os nossos Estados à conta de subornos, contrapartidas fictícias e depósitos em paraísos fiscais (para os nossos e os vossos corruptos). Não faltam investigações ao Deutsche Bank, Siemens, Man/Ferrostaal, Daimler, Infineon, Volkswagen, Ratiopharm, Linde, etc., nos nossos países e EUA, Argentina, África do Sul, Índia...
O vosso empresariado descobriu a China para vender o que produzíamos nas vossas fábricas. Para lá tratou de deslocalizá-las, substituindo-nos (e a vocês) por explorável mão-de-obra local. A falta de competitividade das nossas economias não é só culpa nossa: a UE desindustrializou-se nas últimas décadas, pagou a agricultores para não produzirem a pescadores para não pescarem. E agora, que não temos fábricas, agricultura ou barcos, vêm empresas alemãs buscar-nos jovens qualificados mas sem trabalho. Dão jeito também para conter os vossos salários.
O euro pode ruir amanhã: por mais cimeiras que façam, esses aprendizes de feiticeiro não controlam o feitiço que puseram à solta nos mercados financeiros. Os vossos bancos, com o choque do Lehman Brothers, terão aprendido a livrar-se do subprime tóxico incautamente acumulado. Mas não despacharam obrigações emitidas pelos nossos Estados e desvalorizadas quando a Sra. Merkel negou que dívidas soberanas pudessem ser resgatadas. Depois tiveram mesmo de ser. E os especuladores ficaram a perceber que valia a pena especular, muitos apostados em arrasar o euro. Ao exigir «haircuts» aos privados no resgate da Grécia, a Sra. Merkel deu-lhes gás: dispararam juros e o contágio na zona euro.
A especulação já dobra Espanha e Itália e ameaça França. É urgente que a Alemanha deixe o BCE assumir-se como financiador de último recurso na zona euro. Na verdade, o BCE já acorre a aflições, mas compra dívida a investidores, em vez de directamente aos Estados. Quanto ao reforço do FEEF, já se viu que não vamos longe, com o patético apelo aos chineses...
Os portugueses estão a penar para equilibrar contas. Perigosamente, sem equidade social e em dose cavalar de austeridade recessiva, ditada pela nossa direita, mais “troikista” que a troika. Mas só com austeridade ninguém paga dívidas!
Precisamos de estratégia e recursos para relançar crescimento e emprego. E de políticas de coesão e convergência para contrariar crescentes desequilíbrios macroeconómicos entre países do euro. Os vossos superavites orçamentais, amigos alemães, são contrapartida dos nossos défices.
Para não terem de nos sustentar, deixem mutualizarmos a dívida, para voltarmos aos mercados a juros comportáveis; respeitando regras, bem-entendido, mas beneficiando da boa notação que vocês e poucos na zona euro ainda mantêm. Chamem-lhes eurobonds, “obrigações de estabilidade” ou o que queiram.
Queremos mais Europa, incluindo união fiscal, contra a evasão, a fraude e o «dumping» fiscal que priva os nossos Estados de cobrar impostos a empresas que se domiciliam no Luxemburgo ou na Holanda sem declarar o que ganham pelo mundo. Queremos o imposto sobre transacções financeiras que propõe o ministro Schauble, para fúria do Cameron e da City — além do que renderá para investirmos
a economia, trava a drenagem para off shores.
Os vossos governantes foram recuando no que tinham por impensável, atascando a UE em reacções tardias e insuficientes. Mas agora ensaiam uma fuga para a frente: querem uma alteração limitada e rápida do tratado, para impor sanções automáticas aos incumpridores do Pacto de Estabilidade e Crescimento (não abona a moralidade
de quem, como Alemanha e França, o violou em 2004/5). Mas a mudança não é necessária: o Tratado de Lisboa permite avançar na integração política e económica. Falta é ser aplicado. E os nossos povos, exasperados com a
crise e a inacção europeia, não estão nada virados para
tratar do tratado. O Parlamento Europeu já avisou: não
embarcará sem processo democrático, ou seja, sem convenção com PE e parlamentos nacionais. O que nunca será rápido, nem limitado.
Queridos amigos alemães: não criámos a UE para a ver agonizar agora, com mezinhas Merkozy. Digam aos vossos governantes que queremos a Alemanha europeia, mas
nunca engoliremos uma Europa alemã.


publicado no PÚBLICO em 23 Novembro, 2011

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