26 de fevereiro de 2014
Em Kiev, Ucrânia, Europa
Por Ana Gomes
Estou para escrever sobre a Ucrânia desde que vim de Kiev, no final de Janeiro, como membro de uma delegação do Parlamento Europeu que falou com os principais actores no conflito. Tardei em escrever por me custar transpor para papel o pessimismo com que regressei: pesava-me a suspeita de que, com o fim dos Jogos Olímpicos de Sochi, viria o enfrentamento violento, de tal modo as posições estavam extremadas e irredutíveis, facultando a Putin pretextos para intervir... Enganei-me apenas no "timing": na noite em que finalmente escrevo, os Jogos ainda prosseguem, Putin degusta a extravagância olimpicamente, mas Kiev já está há horas a arder...
Lembro-me do fervor revolucionário da pop-star Ruslana, a contar-nos como contava que os generais seus conhecidos não aceitassem lançar tanques contra o povo. Lembro-me da jornalista Tatyana, ainda a recuperar do brutal espancamento que a desfigurou, a dizer-nos solenemente que a sua vida não importava, importava era libertar a Ucrânia. Lembro-me de Dimitri, o jovem académico, a perguntar porque tardava a UE em aplicar sanções direccionadas contra a clique corrupta que guardava os proventos em bancos alemães, holandeses, austríacos. Lembro-me de Poroshenko, o pueril magnata do chocolate que sugeria uma estátua aos mortos da EuroMaidan em Bruxelas. Lembro-me das mãos suadas e dos olhos medrosos de Kluijev, o Chefe da Casa presidencial que pretendia negociar com o Comissário Füle uma saída pacífica para a crise. Lembro-me de Klitchko, o cândido pugilista que no desporto aprendera "sem luta não se ganha!"
Com a ofensiva brutal contra a Euromaidan, Viktor Ianukovich não confirmou apenas estar disposto a tudo para salvar pele e proventos tentando servir Putin: mostrou ter andado a endrominar a UE através dos Füle e Ashton que tiveram a veleidade de julgar que negociavam com um cadastrado do seu calibre. Os partidos da oposição, incluindo o da desacreditada Yulia Timoshenka, também demonstraram, mais uma vez, nada liderar e muito menos controlar os manifestantes da EuroMaidan, na sua determinação radical, mortal, de substituir oligarquia corrupta por Estado de direito democrático.
Quando deixámos Kiev, já as Euromaidans alastravam, incluindo a cidades do leste, surpreendendo sobretudo aqueles que veiculam a tese de Putin de que "a Ucrânia não é um país, antes criação artificial". Recrudesceu a propaganda, na Rússia e da Rússia na Europa, de que os manifestantes não passavam de hordas de extrema-direita nostálgicas do nazismo. Nada como ter ido ver com os meus olhos à Euromaidan: claro que do Svoboda ao "Sector Direita", os reaccionários também procuravam cavalgar a onda de genuína fúria popular contra um regime ladrão e opressor.
Quando deixámos Kiev, uma solução política para o fim da crise parecia passar pela libertação incondicional de todos os prisioneiros políticos e pessoas desaparecidas e a desocupação dos edifícios públicos invadidos pelos manifestantes, além do regresso a um quadro constitucional capaz de assegurar equilíbrio de poderes e eleições legislativas e presidenciais credíveis. Por isso, e para ajudar a focar esforços, já em Fevereiro o Parlamento Europeu aprovou uma resolução acenando com sanções a membros do regime, designadamente o congelamento de haveres em bancos na UE e a recusa de vistos para governantes e seus patrocinadores oligarcas, responsáveis pela corrupção e repressão no país.
Vindo de encontrar Putin em Sochi, Yanukovitch não perdeu tempo em desencadear a repressão sobre os manifestantes, sem tentar sequer encenar uma provocação ultranacionalista violenta.
Entre Moscovo de um lado, e a Europa e os EUA do outro, Ianukovich voltou a escolher Putin: com ou sem acordo formal, uma parceria com a UE implicaria a auto-destruição do regime, tão determinados se mostravam os ucranianos a usá-la para se livrar da oligarquia corrupta. Perdido por cem, perdido pelos mil que Putin lhe acena: salva o que puder, mesmo que precipite a divisão da Ucrânia e a guerra na Europa.
A UE e os europeus podem preparar-se para sofrer também o impacto desta repressão sangrenta, incluindo os refugiados que procurarão a segurança em Estados Membros da UE. É hora de sermos solidários com o corajoso povo ucraniano. E de reconhecer que, quando falamos de Ucrânia, falamos de Europa. Se agirmos imediatamente com sanções contra a clique de Yanukovitch, a guerra civil neste país de leste pode ser evitada e vir a selar a eficácia da política de vizinhança da Europa. Em alternativa, poderemos estar a encerrar o mais longo capítulo de paz da história da Europa.
NOTA: este artigo foi escrito para o Suplemento Europa do "Acção Socialista" em 18.2.14
Estou para escrever sobre a Ucrânia desde que vim de Kiev, no final de Janeiro, como membro de uma delegação do Parlamento Europeu que falou com os principais actores no conflito. Tardei em escrever por me custar transpor para papel o pessimismo com que regressei: pesava-me a suspeita de que, com o fim dos Jogos Olímpicos de Sochi, viria o enfrentamento violento, de tal modo as posições estavam extremadas e irredutíveis, facultando a Putin pretextos para intervir... Enganei-me apenas no "timing": na noite em que finalmente escrevo, os Jogos ainda prosseguem, Putin degusta a extravagância olimpicamente, mas Kiev já está há horas a arder...
Lembro-me do fervor revolucionário da pop-star Ruslana, a contar-nos como contava que os generais seus conhecidos não aceitassem lançar tanques contra o povo. Lembro-me da jornalista Tatyana, ainda a recuperar do brutal espancamento que a desfigurou, a dizer-nos solenemente que a sua vida não importava, importava era libertar a Ucrânia. Lembro-me de Dimitri, o jovem académico, a perguntar porque tardava a UE em aplicar sanções direccionadas contra a clique corrupta que guardava os proventos em bancos alemães, holandeses, austríacos. Lembro-me de Poroshenko, o pueril magnata do chocolate que sugeria uma estátua aos mortos da EuroMaidan em Bruxelas. Lembro-me das mãos suadas e dos olhos medrosos de Kluijev, o Chefe da Casa presidencial que pretendia negociar com o Comissário Füle uma saída pacífica para a crise. Lembro-me de Klitchko, o cândido pugilista que no desporto aprendera "sem luta não se ganha!"
Com a ofensiva brutal contra a Euromaidan, Viktor Ianukovich não confirmou apenas estar disposto a tudo para salvar pele e proventos tentando servir Putin: mostrou ter andado a endrominar a UE através dos Füle e Ashton que tiveram a veleidade de julgar que negociavam com um cadastrado do seu calibre. Os partidos da oposição, incluindo o da desacreditada Yulia Timoshenka, também demonstraram, mais uma vez, nada liderar e muito menos controlar os manifestantes da EuroMaidan, na sua determinação radical, mortal, de substituir oligarquia corrupta por Estado de direito democrático.
Quando deixámos Kiev, já as Euromaidans alastravam, incluindo a cidades do leste, surpreendendo sobretudo aqueles que veiculam a tese de Putin de que "a Ucrânia não é um país, antes criação artificial". Recrudesceu a propaganda, na Rússia e da Rússia na Europa, de que os manifestantes não passavam de hordas de extrema-direita nostálgicas do nazismo. Nada como ter ido ver com os meus olhos à Euromaidan: claro que do Svoboda ao "Sector Direita", os reaccionários também procuravam cavalgar a onda de genuína fúria popular contra um regime ladrão e opressor.
Quando deixámos Kiev, uma solução política para o fim da crise parecia passar pela libertação incondicional de todos os prisioneiros políticos e pessoas desaparecidas e a desocupação dos edifícios públicos invadidos pelos manifestantes, além do regresso a um quadro constitucional capaz de assegurar equilíbrio de poderes e eleições legislativas e presidenciais credíveis. Por isso, e para ajudar a focar esforços, já em Fevereiro o Parlamento Europeu aprovou uma resolução acenando com sanções a membros do regime, designadamente o congelamento de haveres em bancos na UE e a recusa de vistos para governantes e seus patrocinadores oligarcas, responsáveis pela corrupção e repressão no país.
Vindo de encontrar Putin em Sochi, Yanukovitch não perdeu tempo em desencadear a repressão sobre os manifestantes, sem tentar sequer encenar uma provocação ultranacionalista violenta.
Entre Moscovo de um lado, e a Europa e os EUA do outro, Ianukovich voltou a escolher Putin: com ou sem acordo formal, uma parceria com a UE implicaria a auto-destruição do regime, tão determinados se mostravam os ucranianos a usá-la para se livrar da oligarquia corrupta. Perdido por cem, perdido pelos mil que Putin lhe acena: salva o que puder, mesmo que precipite a divisão da Ucrânia e a guerra na Europa.
A UE e os europeus podem preparar-se para sofrer também o impacto desta repressão sangrenta, incluindo os refugiados que procurarão a segurança em Estados Membros da UE. É hora de sermos solidários com o corajoso povo ucraniano. E de reconhecer que, quando falamos de Ucrânia, falamos de Europa. Se agirmos imediatamente com sanções contra a clique de Yanukovitch, a guerra civil neste país de leste pode ser evitada e vir a selar a eficácia da política de vizinhança da Europa. Em alternativa, poderemos estar a encerrar o mais longo capítulo de paz da história da Europa.
NOTA: este artigo foi escrito para o Suplemento Europa do "Acção Socialista" em 18.2.14