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19 de março de 2014

O Manifesto dos 74 e as reacções que desencadeou 

Não fui contactada para assinar o Manifesto dos 74,  sobre a chamada reestruturação da divida.  Devo dizer que se tivesse sido, tinha-o assinado, mas pediria que se substituísse a palavra reestruturação por renegociação. 
Foi o que já fiz no chamado Congresso das Alternativas Democráticas que reuniu a 5 de outubro de 2012: pedi então que se substituíssem as expressões "denúncia do Mememorando de entendimento com a troika" e "reestruturação da divida" por "renegociação do memorando" e "renegociação da divida". 

A diferença não é apenas semântica, é de estratégia política: se queremos alcançar determinados objectivos através da negociação com os nossos credores e com os nossos parceiros na UE, convém sabermos enunciar de forma favorável para os nossos objectivos o que pretendemos. E eu não tenho hoje, em 2014, como não tinha em 2012, a menor dúvida que para essa negociação no quadro europeu (que é, clara e correctamente, a proposta pelos os signatários do Manifesto) é melhor e mais astucioso falar em "renegociar"  a dívida do que em reestruturá-la. 

Usar a palavra "reestruturar" implica para muita gente, nos famigerados mercados financeiros e  nos círculos políticos dominados por eles, que se pede um perdão de parte da divida, um "haircut". Ora não é isso que pedem os signatários do Manifesto: eles não querem não pagar o que devemos ou parte disso. Querem, isso sim, que Portugal tenha condições para respirar e voltar a crescer e a criar emprego e riqueza, para poder viver, pois só assim pode pagar dividas. E isso implica ter condições muito diferentes de ajustamento do que o que se processa a ritmo de "mata portugueses" e com o qual a Troika e Passos/Portas se têm obstinado em asfixiar o nosso país.

Do ponto de vista da substância, estamos a falar do mesmo do que o PS vem propondo e explicando há dois anos persistentemente, cá dentro e na Europa, para os nossos credores representados pela Troika e para os nossos parceiros europeus: considerando que o nível para que escalou a divida pública em resultado das políticas desastrosas da Troika na versão ultra-troikista de Passos/Portas- (divida que era de 94% em 2010 e passou já para quase 130% ) é impagável, pedimos condições mais razoáveis que nos deixem sobreviver: extensão dos prazos de reembolso, alargamento das maturidades e descida de juros. Pedimos reforma do mandato do BCE e mutualização da gestão da divida pública além dos 60%.  O que é, no fundo, uma forma de reestruturar a  dívida, como seriam os Eurobonds, ou um Fundo de Redenção. E como  já o foram os incipientes ajustamentos ao Programa de Ajustamento que o governo Passos/Portas obteve da Troika. E não temos que ter vergonha, nem espinhas: pois se a Alemanha teve 100 anos para pagar as dívidas das guerras que causou, pois se o Banco Central Europeu hoje empresta dinheiro aos bancos comerciais a juros á roda dos 1 por cento, porque razão e com que justiça deverá Portugal e deverão outros Estados em situação semelhante ser supliciados e arrasados com exigências desproporcionadas, contraproducentes e injustas? 

Ainda por cima quando, se chegámos a esta situação, não foi apenas por imprevidência de quem pediu emprestado em nome do país e dos nossos bancos e empresas, mas foi também por irresponsabilidade de quem nos emprestou e activamente nos empurrou para pedir emprestado, para que os seus bancos e empresas pudessem facturar: os nossos parceiros,  como a Alemanha, que viram as suas economias crescer e reforçar-se à conta do euro - um euro manco e incompleto, sem um verdadeiro banco central, sem uma união bancária e sem harmonização fiscal - enquanto a nossa economia se vulnerabilizava. 

Quanto à substância da análise, quanto as propostas e também quanto à oportunidade de confrontar o Governo e a Troika com alternativas para a desgraça a que têm conduzido o nosso pais, não posso estar eu, como socialista, mais de acordo com o Manifesto. E não posso valorizar mais o facto de  ele ter surgido finalmente e agora, provando que o consenso em Portugal, da esquerda à direita, é perfeitamente possível entre quem mantém uma réstia de lucidez e põe os interesses de Portugal - que o mesmo é dizer dos portugueses - acima de tudo.

Por isso não posso deixar de condenar  o comportamento do Primeiro-ministro, do Governo e da maioria em que se apoia e de uma série de vozes supostamente bem pensantes e opinantes, sobretudo na área do jornalismo económico e ao serviço dos interesses dos grupos económicos que o financia, que se lançaram em ataques irados e soezes  contra o patriotismo do Manifesto e dos signatários do Manifesto. 

Para além de imaturidade democrática, estas reacçoes demonstram incompetência ,espírito resignado e  também sujeição a interesses inconfessáveis .

E a mim preocupa-me a incompetencia que demonstram o Primeiro Ministro e o seu Governo, incapazes de compreender que o dito Manifesto, mesmo não concordando com o que nele se exige, pode ser  uma arma diplomática e política , um instrumento valioso e oportuno para esgrimir na negociação que vão ter de conduzir, em nome de Portugal, com os parceiros e instituições europeias para determinar o que se vai passar depois da saída da Troika. Isto é, o grau de limpeza ou sujidade da saída ou, por outras palavras, o grau de condicionalidade inerente a um programa cautelar, imediato ou futuro.

Preocupa-me que o Primeiro Ministro hoje vá a Berlim, e em vez de ir escudado nos pesados  sacrifícios e absurdas injustiças infligidas aos portugueses com tão desastrosos resultados, e ir armado do Manifesto,  se apresente de novo de baraço ao pescoço a estender a mão à compaixão da suserana Merkel. Não é apenas por incompetência e por incapacidade diplomática para negociar na Europa e com a Europa, por Portugal. É por manifesta submissão aos interesses que estão a destruir Portugal e a Europa. É contra esses interesses que o Manifesto conseguiu demonstrar haver consenso em Portugal.


NOTA: este é o texto em que me baseei para a minha crónica no "Conselho superior" na ANTENA 1, de ontem

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