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3 de setembro de 2014

O estado de Portugal reflecte o da Europa 

Por Ana Gomes


Reiniciamos ontem em Bruxelas os trabalhos do Parlamento Europeu, numa conjuntura internacional tão preocupante que leva alguns parlamentares veteranos, de esquerda e da direita, do norte e do sul, de oeste e de leste, de países ricos e de outros empobrecidos, como o nosso, a pensar e a dizer alto que já não julgam mais impossível voltar a ver guerra na Europa.

É o meu caso - acreditei que a construção europeia era o melhor antídoto contra conflitos armados e era empreendimento indispensável para consolidar liberdade, democracia, direitos humanos e justiça, na Europa e globalmente. Ainda acredito.

Mas o que está a falhar, o que nos está a falhar, clamorosamente, são os governantes europeus, é a própria governação europeia. Como pode, assim, construir-se a Europa? Como pode, assim, a Europa influenciar o resto do mundo e ajudar a determinar a governação global? Como pode a Europa ser credível aos olhos de outros actores e interlocutores internacionais, antigas potências e potências emergentes, propondo políticas e soluções, se na sua própria casa está dramaticamente a falhar?

Não, não é apenas pela extrema tensão nas relações com a Rússia, motivada pela agressão que Putin conduz, embora o negue, contra a Ucrânia. Na verdade, foi a própria UE que Putin erigiu como inimiga: é ver a escalada da retórica dos últimos anos em Moscovo culminar, há dias, em vergonhosa e perigosa ameaça com o poderio nuclear russo... Todos sabemos ineficaz - e rejeitamos firmemente - a guerra para ultrapassar a crise na Ucrânia. Mas há governantes europeus a julgar que podem amolecer Putin, pensando nos cifrões que os seus exportadores e agentes financeiros deixarão de ganhar no mercado russo, em vez de preparar os seus cidadãos para os custos - económicos e não só - das sanções necessárias para tentar travar as provocações de Putin. E de confrontar esses cidadãos com a alternativa, muito mais tragicamente custosa, que pode mesmo ser a guerra...

Além da frente leste, a UE tem também em brasa a vizinhança a sul: da Síria e Iraque à Libia, passando pelo Egipto, todos estes vizinhos da Europa se consomem às mãos de velhas rivalidades religiosas - como as que opõem sunitas e xiitas, Irão e Arábia Saudita, e que se projectam mais além, no Paquistão e Afeganistão. E às mãos de novos e mais sanguinários extremismos - como os que decapitam jornalistas, aterrorizam e expulsam minorias, escravizam mulheres e planeiam não apenas mudar fronteiras no Médio oriente, mas ameaçam a Europa, directa e indirectamente, imediatamente e a prazo - inclusivé com os jihadistas europeus nas suas fileiras.

A todos estes excessos, afrontas e regressões civilizacionais, esta Europa falha, não avançando nada senão a assistência dita humanitária, de mal pagador - o que paga porque tem má consciência. Como a que resulta da placidez cúmplice que a UE continua a conceder ao governo israelita, que na mais recente campanha arrasadora de Gaza, voltou a fazer o jogo das forças radicais no campo palestino, dando corda ao relógio que corre contra o povo de Israel - placidez europeia recompensada com mais provocações: ainda esta semana Telavive anunciou a maior anexação de território dos últimos trinta anos.

O problema não está tanto, ao contrário do que se possa pensar, na política externa e de segurança da UE, embora no mundo interdependente e em mudança tectónica em que vivemos, seja fundamental identificar onde está e como se realiza o interesse comum europeu: da segurança e independência energética, à política de migrações, em maior interesse pela vizinhança e menor pelo alargamento, no combate aos paraísos fiscais e respectivas implicações para políticas comerciais e de cooperação responsáveis.

O problema é, por tudo isto, mais fundo do que substituir a britânica Sra. Ashton pela italiana Sra. Mogherini, que está neste preciso momento aqui no Parlamento Europeu, a responder à Comissão de Relações Externas.

A UE falha nas relações externas porque está a falhar no essencial, que é a própria governação europeia: a estratégia austeritária só fez crescer desconfiança e descontentamento entre os cidadãos e criou níveis de desemprego insuportáveis, com um quarto da população jovem impedida de encontrar emprego (e quantos dos jihadistas europeus não são jovens revoltados por se sentir desprezados e sem futuro).

A UE falha porque a estratégia austeritária não só não a extraiu da crise, como agora ameaça também os indicadores económicos e sociais dos seus mais fortes e ricos Estados Membros.

A UE está a falhar porque a estratégia austeritária é anti-solidária e, logo, anti-europeia. Ou a UE arrepia rapidamente caminho relativamente à austeridade que a está a arruinar, ou será arrasada pela guerra.


(Notas da minha intervenção ontem no Conselho Superior, Antena 1)







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